"God Bless America" (2011) do diretor Bobcat Goldthwait parece ser um filme que segue a linha do chamado "cinema esquizo" com personagens paranoicos, psiquicamente instáveis e marcados pela revolta e cinismo contra uma sociedade racista, medíocre e xenófoba - a "América profunda". O filme faz um diagnóstico perfeito sobre uma cultura onde reality shows e programas como "American Superstars" são o objeto do desejo de milhões. Porém, Goldthwait parece cair vítima da fetichização das armas que Hollywood promove na atualidade: se o cigarro e as bebidas alcoólicas são extirpados da tela ou colocados somente nas mãos e bocas de vilões, com as armas é o contrário. Observamos uma fila interminável de armas lubrificadas, reluzentes, coldres e metralhadoras empunhadas ao nível da virilha prontas para entrar em ação com muito sex appeal.
Compare dois filmes clássicos com
Vincent Price (O Abominável Dr. Phibes de 1971 e As Sete Máscaras da Morte – Theater
of Blood, 1973) com o “God Bless America”. Nesses filmes com Vincent Price o
protagonista vinga-se de pessoas medíocres, indiferentes, arrogantes com
requintes cruéis, sádicos e com muito humor negro: vinga-se dos médicos que
mataram sua esposa por um erro na mesa de cirurgia e um ator shakespeariano que
despeja sua fúria em cima dos críticos de teatro que o atormentam.
Em “God Bless America” vemos
também protagonistas que querem vingar-se de uma classe média americana racista,
sexista, xenófoba e alheia a valores culturais. As situações de humor negro e
as mortes com requintes cruéis são parecidas. Porém, com uma diferença
fundamental: Vincente Price não usa arma de fogo uma única vez, preferindo
armadilhas e ardis perversamente elaborados; enquanto em “God Bless America” as
armas são a grande estrela do extermínio. Mais do que isso: no filme a arma se
reveste de um valor fetichista como instrumento de justiça, ordem e sex appeal.
“God Bless America” parece ser o
sintoma de uma fetichização hollywoodiana pelas armas de fogo: se o cigarro e
as bebidas alcoólicas são extirpados da tela ou colocados nas mãos e bocas de
vilões, com as armas é o contrário. Observamos uma fila interminável de armas
lubrificadas, reluzentes, coldres, metralhadoras empunhadas ao nível da virilha
prontas para entrar em ação. O diretor Bobcat Goldthwait quis fazer alguma
coisa na linha de “Assassinos por Natureza” (Natural Born Killers, 1994) de Oliver Stone ou “Bonnie Clyde” (1967) de
Arthur Penn onde anti-herois expõem a hipocrisia e a patologia da sociedade
norte-americana.
Mas tudo o que conseguiu foi
expor o fascínio fetichista pelas armas sob o pretexto de fazer uma crítica
ácida ao nacionalismo patológico norte-americano. Pelo menos os filmes de
Tarantino expõem esse fetiche cultural americano pelas armas sem precisar dar
lições morais: todos se matam porque apontar uma arma é sexy.
Os anti-herois de “God Bless America”
O filme é sobre Frank (Joel Murray), um solitário homem divorciado de meia idade no limite da
sanidade, que acumula um profundo ódio e desprezo pelo seu vizinho, pela
programação televisiva estúpida recheada de reality shows que exploram o mais
baixo da natureza humana, programas como “American Superstars” que
ridicularizam deficientes mentais, pastores fundamentalistas que semeam ódio e
sexismo; a repulsa ao conteúdo medíocre das conversas no escritório onde
trabalha que nada mais fazem do que repercutir todo o lixo televisivo das
fofocas de celebridades etc.
A vida de Frank desce ladeira a
baixo: é demitido por suspeita de assédio sexual (ele só queria ser educado
mandando flores para uma colega de trabalho), sua filha não quer passar os
finais de semana com ele por que na sua casa não tem videogames, sua ex-esposa
o despreza e, para completar, descobre que tem um tumor no cérebro do tamanho
de uma bola de ping pong.
Depois de uma espécie de
epifania religiosa a beira de se matar, decide que ele é que tem que eliminar a
mediocridade, para começar matando uma adolescente cheerleader mimada estrela de um reality TV. Após matá-la se torna
amigo de uma garota chamada Roxy (Tara Lynn Barr) que vislumbra todo o sentido
messiânico no brutal assassinato da cheerleader:
os dois partilharão do mesmo gosto em fazer justiça com sangue.
Odeia pessoas que conversam e
falam no celular no cinema? Frank e Roxy vão matá-los. Odeia aquela pessoa que
te dá uma fechada na rua? Frank e Roxy vão destruir o carro dele e matá-lo
também. Odeia estrelas de reality shows
que conseguem tudo que querem? Bem... você sabe o que acontece.
O roteiro força a barra para que
nos identifiquemos com os anti-herois para que toda a violência e rajadas de
balas se tornem momentos de intensidade catártica e de divertido humor negro. Assim
como Frank, a vida de Roxy não é fácil: é estuprada pelos namorados da sua mãe
viciada em crack...
Aparentemente “God Bless
America” aproxima-se daquilo que chamamos de cinema esquizo: conjunto de filmes marcado por narrativas
paranoicas e protagonistas psiquicamente instáveis e marcados pela revolta e
cinismo.
Percebe-se na história de Hollywood um movimento pendular entre o cinema esquizo onde o Outro é
identificado com alienígenas, monstros, femme
fatales e a própria sociedade doentia e corrupta (temática cujo auge foi
nos anos 1970 em filmes como Um Estranho
no Ninho, Taxi Driver, Sem Destino, Perdidos na Noite etc.) e o “cinema recuperativo” onde o mal estar
em relação ao Outro é reduzido a uma questão de assepsia e controle: extermínio
e violência sadística e exibicionista.
O Outro aqui é a loucura da “América profunda” que o
diretor faz um diagnóstico perfeito ao retratá-la como uma forma de pensamento
baseado em um misto de ignorância e arrogância nacionalista. Porém, a narrativa
embarca na violência exibicionista e fetichista do “cinema recuperativo” onde
os protagonistas iniciam uma catártica higiene social.
Quando
Frank prepara-se para matar um comentarista de TV fascistoide que defende o
extermínio de gays e acusa o presidente Obama de ser um “nazista negro”, ele
diz para Roxy: “Eu até concordo com algumas ideias dele”. “Exatamente com qual
opinião você concorda?”, pergunta Roxy atônita. “Menos controle sobre armas,
claro”, diz Frank. Claramente, o diretor Bobcat Goldthwait dá o tom do filme: o
exibicionismo sadístico em torno do fetiche das armas.
Durante todo o filme há uma
evidente tensão erótica entre a dupla, uma atração perversa pedófila reprimida
entre Frank e Roxy que acaba sendo sublimada através das armas e munições.
Arma é um fenômeno estético
Stephen March (MARCH, E. Guns
Are Beautiful.To stop gun violence, we need to stop fetishizing guns)
defende a tese de que as armas não
produzem violência: elas são antes, de mais nada, uma estranha forma de
expressão de beleza para a cultura americana, uma forma clara de fetiche e
simbolismo fálico. Valendo-se de um largo estudo feito pela Universidade de
Berkeley em 2007 que concluiu não existir uma causalidade clara entre filmes
violentos com a extensiva presença de armas de fogo na tela e a violência nas
ruas, March argumenta que a questão das armas é de outra natureza. Para
começar, o autor demonstra que todo o discurso que justifica as armas não tem
nenhuma aplicação prática: casas com armas são mais seguras? Estatisticamente
casas com armas são menos seguras do que casas sem armas. Defesa contra um
governo tirânico? Quanto tempo a melhor milícia armada resistiria contra um
simples destacamento de Mariners?
Para March, armas são um fenômeno
estético. Para começar um óbvio símbolo fálico no sentido atribuído por Freud
como uma reação do indivíduo à ameaça da castração. A possibilidade da privação
fálica conduz à sedução por esse simbolismo. Por isso, March argumenta que a
simples legislação que proíba ou restrinja a propriedade de armas, somente
alimenta esse imaginário da castração. A presença massiva e exibicionista de
armas nas telas de cinema é a expressão direta dessa ameaça da privação de um
simbolismo fálico tido como um dos direitos constitucionais do cidadão
norte-americano.
É curioso que muitos desses
filmes apresentem homens “veteranos” como Bruce Willis, Stallone,
Schwarzenegger etc., atores que surgiram nos anos 1980 (a grande década dos
filmes de ação da era conservadora do presidente republicano Ronald Reagan).
Eles envelheceram, perderam a relevância e os cabelos, estão enrugados e com
uns quilos a mais, mas ainda tentam provar que ainda têm munição: com as armas
a impotência se foi! Quanto mais velhos, maiores as armas e o arsenal bélico.
Talvez involuntariamente, por
trás das pretensões de fazer uma crítica social, Bobcat Goldthwait faz em “God
Bless America” a apologia de todos os elementos simbólicos desse imaginário
fetichista que a cultura americana investe nas armas: um protagonista loser,
socialmente impotente, ao lado de uma bela ninfeta e armados até os dentes,
vingam-se de uma América castradora. Se a arma é um instrumento de justiça, o
acerto de contas de “God Bless America” cai vítima da própria patologia que
tenta curar: será que o fetiche das armas, mais do que violência, no fundo
produz aquela forma de pensamento e estilo de vida medíocre e fascistoide que o
filme tenta combater?
Ficha Técnica
- Título: God Bless America
- Diretor: Bobcat Goldthwait
- Roteiro: Bobcat Goldthwait
- Elenco: Joel Murray, Tara Lynne Barr, Melinda Page Hamilton
- Produção: Darko Entertainment
- Distribuição: Magnet Releasing
- Ano: 2011
- País: EUA