Os inimigos dos EUA sempre os atacaram ou com o fundamentalismo
religioso-ideológico (islamismo, comunismo etc.) ou com a tática da guerra
total (os nazis na Segunda Guerra Mundial). E os americanos responderam com sua
principal arma: a simulação. Diferente das táticas ideológico-militares de dissimulação,
os EUA encontraram uma arma ainda mais insidiosa no interior da sua própria
cultura: do “Studio System” de Hollywood às mesas de pôquer de Las Vegas a arma
da simulação e do blefe. Os casos históricos de “Argo” em 1979 no Irã e a
inusitada tática de uma unidade militar chamada “Ghost Army” na Segunda Guerra
Mundial ilustram bem essa complexa conexão entre Guerra e Cinema que explica
porque a simulação conquistou o mundo.
Estamos acostumados a pensar o
cinema hollywoodiano como instrumento ideológico do complexo
governo-militar-diplomático dos EUA. Exemplos não faltam das evidências disso: desde os filmes patrióticos, a promoção dos novos heróis
pós-depressão econômica de um país revitalizado pela vitória na Segunda Guerra
Mundial e a “política de Boa Vizinhança” com Carmem Miranda e Zé Carioca para
agradar e cooptar os países da América do Sul na época da Guerra Fria e a
ameaça comunista; até os filmes e minisséries dos anos 1960-70 que tornaram o
american way of life desejáveis para nós e os filmes de ação de Rambo e Braddock
da era Reagan para levantar a imagem militar de um país derrotado no Vietnã.
Nesses casos
temos a submissão da produção cinematográfica às estratégias de dissimulação dos
interesses do Estado. É importante entender esse conceito de dissimulação: é a situação onde alguém
afirma não possuir algo que, na verdade, está escondendo. É o campo da mentira,
da manipulação e da ideologia.
Mas ao longo da
história das complexas conexões entre Cinema e Estado podemos encontrar uma
situação inversa onde o complexo governo-militar-diplomático se submete à lógica
do sistema cinematográfico, procurando imitá-lo em uma estratégia de simulação.
Desde a Política de Boa Vizinhança dos EUA com o Brasil dos anos 1930-40, as conexões entre Cinema e Guerra |
Para
entendermos essa relação inversa temos que compreender esse novo conceito. Por simulação entende-se o inverso da dissimulação: significa quando alguém
afirma possuir algo que na verdade não tem. Finge uma presença ausente. Não
estamos mais no campo do segredo e da mentira, mas do blefe. A simulação é uma
característica dominante na sintaxe cinematográfica: temos o “real” externo ao sistema
cinematográfico que é traduzido através de efeitos de realidade na narrativa
clássica hollywoodiana (edição e montagem simulando a continuidade do olhar
humano).
Esse conjunto de signos indiciais tenta recriar a realidade dentro do
espaço semiótico fílmico para depois ser “gramaticizado” através das convenções
cinematográficas de gênero, de linguagem de câmera e de todas as convenções da
linguagem fílmica, determinados pelas exigências de uma produção industrial. O
cinema simula existir na edição, montagem, cenografia e efeitos especiais uma
realidade que não existe.
Em dois momentos da história o sistema
governo-militar-diplomático procurou imitar essa estratégia de simulação
cinematográfica: o caso “Argo” e o episódio da Segunda Guerra Mundial conhecido
como “Ghost Army”.
O caso “Argo”: metalinguagem e auto-referência
Historicamente o
caso “Argo” foi sobre uma crise diplomática envolvendo os EUA e o Irã em 1979
onde 52 norte-americanos foram mantidos reféns após um grupo de militantes
islâmicos invadirem a embaixada americana em Teerã. No meio dessa crise, um
grupo de seis funcionários consegue fugir da embaixada e se esconde na casa do
embaixador canadense. Como retirá-los em meio à
crise da Revolução Iraniana e ameaçados de execução pública se fossem
localizados pelas milícias revolucionárias?
A CIA cria um ardiloso plano: a criação de um falso filme (uma ficção
científica chamada “Argo”) a partir de uma produtora fake criada pela CIA em Hollywood dirigida por veteranos
produtores do meio cinematográfico que aceitaram participar da simulação. Como
equipes de produção cinematográfica viajam pelo mundo em busca de locações, o
grupo de diplomatas foragidos simularia ser técnicos da equipe de filmagem,
conseguindo dessa forma sair do país.
Temos aqui uma referência à simulação, característica dominante da
sintaxe do sistema cinematográfico. Se historicamente o sistema cinematográfico
esteve em uma posição hierárquica inferior ao sistema militar-diplomático
(Hollywood como instrumento de propaganda ideológica externa dos EUA), nesse
caso temos uma inversão. O que permitiria essa semiose entre esses sistemas
diferentes é uma qualidade isomórfica – ambos lidam com aparências e imagens, o
primeiro ocultando existência de realidades e o segundo simulando a existência.
CIA no Irã: inspirando-se em Hollywood |
Temos uma decodificação pela CIA de todo o código cinematográfico (fases
da produção de um filme, elaboração de roteiros, storyboard etc.) para uma posterior recodificação a partir dos
estereótipos que os iranianos teriam sobre um filme norte-americano para dar
verossimilhança à estratégia de simulação. Temos aqui uma metalinguagem sobre o
próprio sistema cinematográfico.
No ano passado o próprio sistema cinematográfico vai construir uma
narrativa fílmica dessa metalinguagem feita dela mesma pelo sistema
militar-diplomático em 1979: o filme “Argo” (2012), premiado com o Oscar de
melhor filme esse ano. Temos novamente um movimento de decodificação e
recodificação, um movimento de retorno onde o sistema cinematográfico fará uma
recodificação de outra recodificação feita dela mesma por outro sistema.
Pois o filme “Argo” curiosamente fará, nessa recodificação de outra
recodificação, uma auto-referência ao próprio sistema cinematográfico em uma
passagem da narrativa bem significativa. Isso é
ironicamente demonstrado no filme quando o agente Tony Mendez (Ben Affleck),
travestido de produtor canadense com storyboards
e o roteiro do filme “Argo” debaixo do braço, se apresenta a um funcionário do
Ministério da Cultura iraniano e explica a necessidade de busca por locações
históricas para rodar o filme: “lugares históricos, entendo! O oriente
exótico... cobras encantadas, tapetes voadores... a função do nosso escritório
é a purificação, mas também a promoção da arte. Vou levar isso ao ministro”.
Nessa passagem a narrativa remete à sua
própria gramática fílmica que transcodifica a realidade exterior ao sistema
semiótico cinematográfico norte-americano (características culturais, étnicas e
sociais de outros países) em um sistema indexical que estereotipa e transforma
em clichês de rápida identificação, cujas origens estão no Studio System da primeira fase industrial hollywoodiana onde mundos
exóticos eram representados cenograficamente em gigantescos estúdios.
“Ghost Army”: a cultura da simulação norte-americana
Tanques infláveis: a simulação no campo de batalha |
Como são possíveis essas correspondências entre sistemas aparentemente
tão distantes, o Cinema e a guerra? Talvez somente seja possível pela
existência de um texto único ou moeda de troca que parece unificar toda a
semiosfera cultural norte-americana: a categoria de simulação.
O caso histórico do “Ghost Army” parece ilustrar bem isso. Algumas
semanas após o “Dia D”, uma unidade do exército norte-americano com pouco mais
de mil homens desembarcou na França para por em movimento um verdadeiro road show em plena Segunda Guerra
mundial usando tanques e caminhões infláveis, amplificadores com sons pré-gravados
de movimentação de tropas e caminhões e diversas ações cênico-teatrais,
incluindo efeitos especiais cenográficos. Munidos de compressores de ar e alguns
soldados-atores eram capazes de criar em uma hora falsos comboios militares que
aparentavam ter 30.000 homens. O objetivo era criar impacto psicológico nas
tropas nazistas (veja abaixo trailer do documentário The Ghost Army dirigido por Rick Beyer e exibido pela TV Public Broadcasting Service (PBS), EUA, 2013).
Essa unidade de táticas de camuflagem do Exército norte-americano ficou
conhecida como “Ghost Army” – oficialmente “23rd Headquarters Special Troops”.
Se os nazistas apresentaram a novidade da chamada “guerra total”
(moderno conceito de conflito de alcance ilimitado com mobilização total tanto
de civis como militares), os norte-americanos impuseram a novidade da
estratégia da simulação.
Pôquer, Las Vegas e blefe: a simulação é o núcleo da cultura americana |
Mais uma vez temos aqui a transposição do código do Studio System hollywoodiano no sistema militar-diplomático. Toda a
indexicalidade explorada pelo “Ghost Army” fez uma curiosa metalinguagem dos
índices que compõem o efeito de realidade e verossimilhança da cenografia e
efeitos especiais cinematográficos.
Mas por que essa categoria de simulação foi recodificada no interior de
um sistema aparentemente tão distante como o militar-diplomático? Para o pesquisador canadense McLuhan
a eletricidade é a informação no seu estado puro que trouxe uma mensagem
totalmente radical, difusa e descentralizada eliminando os fatores de tempo e
espaço da associação humana. Assim como fizeram mídias como o telégrafo, rádio,
telefone e televisão. Principalmente essa última mídia, onde a imagem formada a
partir de raios catódicos que bombardeiam pixels
cria uma imagem mais real que a própria realidade, mais limpa, vívida e
brilhante: a simulação.
Esse processo modelizante cria uma operação cognitiva, o “diagrama de
relações”: a simulação como “estesia”, isto é, uma dimensão sensível e
sensorial dos objetos da percepção e da cognição. Autores distantes dessa
discussão sobre semiótica da cultura como o crítico da cultura Neal Gabler (A Vida, O Filme – Como o entretenimento
conquistou a realidade, São Paulo: Companhia das Letras, 1999) ou o
historiador Daniel Boorstin (The Image: A
Guide to Pseudo-Events in America. Vintage Books, 1992) reconhecem que a categoria da simulação tornou-se uma categoria
dominante em diferentes fenômenos sociais.
Diferentes sistemas semióticos como a Economia (a perda do lastro
semiótico do valor com a financeirização), a Política (a crise da representação
com a dominância da sintaxe midiática) e o Técnico-científico (a crise de
representação com os sistemas recursivos e auto-referenciais das tecnologias
computacionais, de informação e das ciências cognitivas) passam a ter a
simulação como uma “moeda” ou “texto unitário” para as trocas de informações.
Do crescimento de Hollywood como indústria cinematográfica no início do
século, passando pelo crescimento de Las Vegas e toda a indústria de jogo e
entretenimento nas décadas de 1930-40, a categoria de simulação se interpõe
como metáfora, alegoria ou a própria “imagicidade” que dá sentido ou
inteligibilidade ao extra-semiótico da semiosfera da cultura norte-americana.
Por isso é sintomática a estratégia do “Ghost Army” como arma de
simulação. Enquanto os nazis davam sentido à realidade através da categoria de guerra total (talvez a “gestalt” de uma
cultura onde o impresso, o fotográfico e o artístico ainda eram dominantes) os
norte-americanos já figuravam uma estratégia militar baseada na simulação,
texto unitário de trocas de uma semiosfera cuja ordem sensorial dominante já
era marcada pela eletricidade e eletrônica.