Vinicius Aldino, instrutor gnóstico (?), fala em uma emissora de TV no
Rio Branco, Acre, sobre gnosis e o workshop “Meditação e Qualidade de Vida”.
Para esse blog, acostumado com as representações da gnose e do Gnosticismo nos
chamados filmes gnósticos como momentos radicais de iluminação espiritual que
levam ao questionamento não só do status quo mas também daquilo que entendemos
como “realidade”, surpreendeu a fala de Aldino: a meditação, como ferramenta
para alcançar a gnosis e, ao mesmo tempo, melhora da concentração e eficiência
profissional e dos afazeres do dia-a-dia, o que contraria toda uma filosofia historicamente herética, perigosamente aproximando-se das técnicas terapêuticas de autoajuda. Será que, paradoxalmente, o
gnosticismo pop está à frente da própria prática gnóstica atual? Ou será que estamos
enganados e Aldino pretende, na verdade, colocar um “Cavalo de Tróia” no
interior do imaginário das técnicas de autoajuda?
Para aqueles que pesquisam o
renascimento atual do Gnosticismo na cultura pop, como faz esse blog
particularmente com o Cinema, a gnose dos protagonistas das narrativas
ficcionais e toda a mobilização de simbologias e temas do esoterismo e
hermetismo em filmes são encarados como decisivos momentos de autoconsciência e
iluminação espiritual que desafiam sistemas opressores e explodem com aquilo
que chamamos de “realidade”. Momentos de virada e transformação não só de
personagens na ficção, mas, potencialmente, com os próprios espectadores desses
filmes gnósticos. Apesar de serem filmes comerciais dentro dos preceitos dos
gêneros hollywoodianos, eles virtualmente podem incutir a desconfiança em
relação a instituições, expressar o mal estar da nossa cultura e a crítica.
Paradoxalmente, parece que esse
renascimento pop do Gnosticismo apresenta um ímpeto mais transgressivo (e por
isso fiel à sua história como tradição filosófica herética) do que o dos
próprios gnósticos.
Pois nesta semana recebi um link
com uma entrevista dada por Vinicius Aldino para uma emissora de TV em Rio
Branco, no estado do Acre - veja o vídeo abaixo. O gancho da entrevista era um workshop que Aldino
daria no Sesc local sobre técnicas de relaxamento e meditação. A introdução da
entrevista feita pela apresentadora era essa: “saiba como melhorar a qualidade
de vida sem gastar dinheiro. Quem explica como é Vinicius Aldino, instrutor
gnóstico (?)”.
De início a expressão “instrutor
gnóstico” soou para mim como uma contradição de termos. O termo “instrutor”
sempre me pareceu carregado de uma conotação de gestão, recursos humanos,
treinamento e administração. O que teria a ver o gnosticismo com todo esse
imaginário de gerência de recursos? Bom, poderia ser implicação minha...
Gnosis: conhecer o conhecimento universal depositado em nós |
Vinicius Aldino começa com uma
ótima, didática e concisa definição do termo gnosis: “sabedoria universal que
está depositada na consciência humana”. Em seguida fala do tema de seu
workshop: “meditação e Qualidade de Vida”. E qual a relação da gnosis com
“qualidade de vida”? Novamente pensando que esse termo também está impregnado
com um imaginário terapêutico de cura, produtividade e todo um ideário que
tangencia com autoajuda, pensando a vida como uma questão de gerenciamento e
logística. Mas até aqui eram apenas impressões subjetivas minhas, e poderia
estar enganado.
Ele fala dos benefícios da
meditação: (a) saúde e eliminação do estresse aliviando das tensões do
dia-a-dia de trabalho e estudos; (b) melhora da capacidade de concentração no
trabalho e tarefas do dia-a-dia e (c) conhecer a si mesmo o que permite
“questionar a nós mesmos o que estamos fazendo aqui” para termos clareza do que
queremos na vida no aspecto familiar e profissional.
Para Aldino, a meditação é a
gnosis na prática, pois permite silenciar o pensamento e conhecer esse
conhecimento universal depositado em nós, embora desconheçamos.
A tradição Gnóstica subterrânea
Para quem está acostumado a
entender o Gnosticismo e seus derivados esotéricos como uma tradição que
historicamente nunca fez parte da cultura sancionada pelas instituições e
sempre sobreviveu por meio de canais subterrâneos, é estranha essa
correspondência entre gnose com a meditação como técnica de melhorar a eficácia
no trabalho, eliminar “sentimentos negativos” resultantes do estresse e trazer
uma confortável sensação de “paz e harmonia” que traga “clareza ao aspecto
profissional”.
Blavatsky e a Teosofia: o descontentamento com a vida prosaica e busca de estados incomunsde consciência |
Desde o triunfo do cristianismo
ortodoxo após Constantino, a tradição gnóstica entrou para o subterrâneo dos
movimentos sociais. Bem sucedido em seus canais subterrâneos, eventualmente
ofereceu a pensadores revolucionários subsídios importantes para críticas aos
sistemas opressivos políticos, sociais ou culturais. Esse amalgama de
pensamento esotérico com o trabalho contra- cultural trouxe a tradição gnóstica
para a política.
O Iluminismo, por exemplo, foi
um desses momentos em que os componentes da tradição gnóstica se
encontraram. Filósofos cosmopolitas por volta do século XVIII como Voltaire (de
forma implícita seus contos mencionam em tom favorável conhecimentos gnósticos)
e Goethe (explícito praticante de disciplinas esotéricas como a alquimia)
passam a contestar a hegemonia do Cristianismo e da Igreja Católica. A
predisposição ideológica contra cultural desses pensadores encontra nas ideias
gnósticas subterrâneas a fagulha que faltava para incendiar críticas e
insatisfações em relação à antiga ordem.
O descontentamento coma vida
prosaica e a busca deliberada por estados incomuns de consciência trouxe todo o
movimento de renascimento do Gnosticismo no Romantismo nos séculos XVIII e XIX
(Blake e Shelley, por exemplo, bebendo em fontes qlquímicas e cabalísticas para
desafiar o status quo) e na Sociedade Teosófica de 1875 de Blavatsky.
Para todos eles a gnosis representava uma radical forma de
iluminação e transcendência por dispensar qualquer forma de religião
institucionalizada ou hierarquia: tudo o que precisamos já estaria dentro de nós
mesmos e, para descobrirmos não eram mais necessários mestres ou elites com
conhecimentos herméticos.
A Sociedade Teosófica tornou o
gnosticismo acessível ao público fora da academia, o que preparou o caminho
para o gnosticismo de massas do século seguinte cujos filmes gnósticos no
cinema comercial é a última onde desse esoterismo popular.
A gnosis no gnosticismo pop
Nesses filmes a gnosis parece ter um forte componente
político, pois a sua consciência leva a um questionamento de poderes e
instituições. Em filmes como “Vanilla Sky” (2001) ou “O Pagamento” (Paycheck,
2003) a experiência da queda (literal em ambos os filmes como simbolismo do “salto
de fé”) e a gnosis como esvaziamento da mente e da racionalidade (a meditação
de Aldino) implicam em um confronto com instituições e poderes de cosmos físico
- em "Vanilla Sky" o confronto com a
corporação Life Extension e em O Pagamento a luta contra a conspiração da
empresa Allcom.
E
se partimos para a gnosis como resultante
da ascese e disciplina temos no filme “Clube da Luta” (Fight Club, 1999) o
exemplo de um violento despertar para a consciência do mal-estar e hipocrisia
dos valores de uma sociedade de consumo – “você compra o que não precisa, com dinheiro
que você não tem para impressionar pessoas que você não gosta”.
"Clube da Luta": o violento despertar da iluminação espiritual |
Portanto,
nas representações pop do gnosticismo (filmes, animações, animes japoneses, HQs
etc.) a gnosis é o mal estar que se torna consciente, possibilitando o
autoconhecimento que encontrará a sabedoria interior que dará os instrumentos
para retirar os véus da ilusão da realidade.
Essas representações pop da gnosis são bem diferentes do proposto
por Aldino, isto é, a gnosis como um benefício proporcionado pela ferramenta da
meditação para termos uma maior “clareza profissional e familiar do que
queremos”, isso sem falar na melhora de desempenho no trabalho com a maior capacidade
de concentração.
Se o estresse e os “sentimentos
negativos” decorrente são expressões dessa mal estar na cultura descrito desde
Freud, isso significa que a busca do conhecimento universal depositado em nós
mesmos dificilmente nos trará uma “clareza profissional”. Certamente esse
conhecimento universal entrará em choque com valores e propósitos de
instituições e corporações. Em outras palavras, talvez não saibamos o que
queremos, mas certamente teremos cada vez mais claro na consciência o que NÃO
queremos.
O preço da paz e
harmonia
Certamente, como afirma Aldino,
meditação e a gnosis resultante trazem a paz e harmonia com nós mesmos, mas
disso não decorre em harmonização, melhora de eficácia e performance
profissional ou nos afazeres do dia-a-dia. Esse tipo de sabedoria traz um
preço: a consciência da inautenticidade dos propósitos e valores das instituições
e da sociedade.
Essa defasagem entre as
expressões radicais da gnosis no gnosticismo pop e a aproximação do Gnosticismo
como técnica de autoconhecimento propõe algumas teses:
(a) Toda Autoajuda é uma
Teologia positiva secularizada. Como tal, parte da ideia de que a Verdade está no
Todo e o indivíduo, como fragmento desse todo, é incapaz de vislumbrar essa
Verdade porque imerso no erro – pecado, auto-engano, má-fé etc. Portanto a
Verdade só pode estar em instituições que conectem com esse Todo: Igreja,
hierarquias, etc. Ao contrário, o
Gnosticismo parte de uma Teologia Negativa onde o movimento é inverso: qualquer
um pode encontrar “Deus” porque Ele já está no interior do indivíduo. Possuímos
uma fagulha que nos conecta diretamente com Ele. A verdade não é o Todo. Isso
historicamente criou uma dissensão primeiro com a Igreja Católica e,
modernamente, com a oposição e o pensamento crítico contra formas de controle
de corporações e governos.
(b) A aproximação do Gnosticismo
a essas “tecnologias do espírito” da autoajuda faz esquecermos essa oposição
entre Teologia Positiva/Negativa. O resultado é o perigoso destino de
transformar o Gnosticismo em algo parecido com livros com temas como “A Cabala
do Dinheiro”, “A Cabala do Amor” ou “O Tao da Administração”, “O Tao dos
Negócios” e assim por diante.
Essas duas teses resultam em duas hipóteses sobre a fala de Vinicius Aldino que podem ser sintetizadas da seguinte maneira:
(a) Ou estamos diante de um caso
de neutralização ou esvaziamento engrendrado pela Indústria Cultural de tudo
que há de crítico, virulento e revolucionário no Gnosticismo.
(b) Ou a fala de Vinicius Aldino
pode ser um verdadeiro Cavalo de Tróia colocado no interior do ideário da
autoajuda: a inserção da bomba de efeito retardado da gnosis que, quando
acionada, trará desordem e desestabilização no interior das instituições. Algo
parecido com o que Freud disse para Carl Jung ao avistarem o porto de Nova York
e a Estátua da Liberdade em 1908: “eles não sabem que trazemos a peste”.
Sinceramente, espero que a segunda hipótese esteja correta.
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