Em crise criativa, um
publicitário bem sucedido descobre que passou grande parte da vida mentindo
para ganhar dinheiro. Começa então a fazer o que ele chamará de “Publicidade
honesta”: “Linhas Aéreas United: nossos aviões caem menos que o da concorrência”
ou “Cigarros Amalfi: Câncer? Talvez. Sabor? Com Certeza!” são algumas das pérolas
que são vistas por todos na Agência da Madson Avenue como criações de alguém
que enlouqueceu. Logo o protagonista se vê internado em um manicômio, onde fará
uma nova agência de publicidade, dessa vez com os pacientes do hospital. “Gente
Louca” (Crazy People, 1990) com o comediante britânico Dudley Moore é uma
comédia romântica sem pretensões, mas que desenvolve um supreendente pano de
fundo crítico. O filme é uma ótima oportunidade para ilustrar a irônica
natureza da lógica da crença publicitária sugerida pelo pensador francês Jean
Baudrillard: a “Lógica do Papai Noel”.
Um filme despretensioso, uma
comédia romântica daquelas que passavam nas sessões da tarde da TV brasileira
quando espectadores ociosos (e talvez desempregados) ficam preguiçosamente na
frente da televisão digerindo o almoço. “Muito Loucos” (Crazy People, 1990)
certamente passaria despercebido pelo blog e nem faria parte do nosso foco de
interesse se ele não contivesse um brilhante insight: e se um publicitário
resolvesse da noite para o dia contar apenas a verdade dos produtos que anuncia
e da própria Publicidade?
Mais do que isso, e se ele
começasse a mostrar ao consumidor a verdadeira motivação que o faz querer
comprar determinados produtos, motivação que nada tem a ver com necessidades
reais ou racionalidades? Que o consumidor adquire muita coisa pela sua própria
inutilidade?
Pois essa é o argumento provocativo
no interior de um filme que é obviamente estruturado pelas convenções do gênero
e se perde nos clichês da comédia romântica com desencontros amorosos que têm
uma reconciliação final.
Loucos de um hospício cria uma agência de "Publicidade honesta" |
Além disso, “Muito Loucos”
oferece uma surpreendente oportunidade de ilustrar um dos conceitos menos
compreendidos do pensador francês Jean Baudrillard em sua obra semiológica de
1968 “O Sistema dos Objetos”: a noção de “lógica do Papai Noel” como crítica da
eficácia do discurso publicitário.
Mas antes vamos aos insights
oferecidos pelo filme. Estrelado pelo comediante britânico falecido em 2002,
Dudley Moore, ele é Emory Lesson, um executivo de publicidade da Madison Avenue
bem sucedido que chega a uma situação de estresse e esgotamento criativo. Em
meio a essa crise que se associa a uma crise conjugal, Emory cai em si de que
passou grande parte da vida mentindo para viver. “Quanto pode dizer sobre a
Chrysler e ainda ser honesto... e eu nem gosto de Chryslers”, diz Emory no meio
da sua epifania, diante do seu desesperado sócio Stephen (Paul Reiser) que não
consegue entender nada.
O prazo para entregas das
campanhas publicitárias está acabando e Emory obcecado com o seu novo conceito
de “Publicidade honesta”. E ele começa a criar uma série de slogans impagáveis
que dão o que pensar: “Aveia Quaker. Esse cereal é gostoso? Quem sabe. Mas pelo
menos a caixa é bonitinha”; “Jaguar, macio e vistoso. Para homens que querem
fazem sexo com mulheres que mal conhecem”; “United Airlines. Há muitos
acidentes aéreos e muita gente morre. Mas garantimos que mais gente chega com
vida ao destino nos nossos voos. United: a maioria chega lá com vida”.
Com os custos pagos pela
Agência, Stephen interna Emory em um hospital psiquiátrico. Mas sem ninguém
saber, as artes finais de Emory são levadas por engano para a gráfica e
distribuídas. Inesperadamente tornam-se um sucesso: os consumidores
simplesmente passam a amar o novo conceito de “Publicidade honesta” e
simplesmente adoram as campanhas “realistas” – “você é gordo e desleixado, faça
alguma coisa!” ou “Metamucil é prá você ir ao banheiro. Se não você terá câncer
e morrerá”.
Emory é considerado o novo gênio
da Publicidade, mas resiste em sair do hospital psiquiátrico. Decide montar lá
mesmo sua própria agência transformando os pacientes em publicitários: loucos
como são, para eles será muito fácil contar a verdade sobre os produtos. Bem
diferente dos publicitários da Madson Avenue que tentam de tudo para
conseguirem ser honestos como Emory. Depois de quebrarem a cabeça em
brainstormings intermináveis percebem que não conseguirão falar a verdade. Por
isso farão de tudo para trazer Emory de volta.
A Publicidade é uma fábula?
"United: a maioria dos passageiros chega vivo" |
Ao empreender uma análise
semiológica das nossas relações com os objetos e com a própria publicidade
deles, Baudrillard queria ir além das tradicionais visões sobre o
condicionamento comportamento que o discurso publicitário criaria com os seus
enunciados e a apresentação dos produtos. Ele via na Publicidade muito mais uma
lógica da fábula e da adesão, semelhante o que as crianças fazem com seus mitos
sem se interrogar sobre a existência deles.
Assim como o Papai Noel, onde
crianças e adultos não creem nele e nem na sua relação de causa e efeito com os
presentes.
“A crença no Papai Noel é uma fábula racionalizante que permite preservar na segunda infância a miraculosa relação de gratificação pelos pais (mais precisamente pela mãe) que caracteriza a relação da primeira infância. (...) se fundamenta no interesse recíproco que as duas partes têm em preservar a relação. O Papai Noel em tudo isso não tem importância e a criança só acredita nele porque no fundo não tem importância.” (BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos,São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 176).
Para Baudrillard a operação
publicitária seria da mesma ordem: nem slogans, textos publicitários ou
informações são decisivos para a compra. As pessoas não acreditam em
Publicidade mais do que acreditam em Papai Noel. Então para que serve a
Publicidade? Para racionalizar o
desejo da compra.
Aqui Baudrillard aproxima-se da
noção freudiana da racionalização como um álibi perfeito. O ser humano não é um
ser propriamente racional, mas racionalizante: a maior parte do tempo agindo
por impulso ou compulsão, sem ser “racional” no sentido de pensar antes de
agir. Por isso o indivíduo necessita de um álibi para justificar diante dos
outros e de si mesmo a razão dos seus atos. Tal como o criminoso que sabe que
cometeu o crime, ele necessita de um álibi. Ele não crê nele, mas é bastante
útil.
Slogans e toda a retórica
publicitária nada mais seriam do que Papais Noeis oferecidos para o consumidor
criar uma “desculpa” a si mesmo e aos outros do porquê da aquisição. Um motivo
nobre, aqui, uma promoção ali ou uma “relação custo benefício” acolá.
Publicidade: o Papai Noel dos adultos
Pois o filme “Gente Louca” nos
apresenta como seria a Publicidade sem esse Papai Noel da racionalização. Se na
verdade você pretende viajar para as Bahamas atrás de aventuras sexuais, Emory não
oferecerá racionalizações do tipo imagens cartões postais ou discursos
multiculturalistas: “Goze nas Bahamas!”, diz o impagável slogan. A
Publicidade
honesta, sem Papai Noel, racionalizações, álibis ou justificativas.
"Jaguar: para homens que querem fazer sexo com mulhres que mal conhecem" |
Se você é viciado em cigarros,
chega de álibis como “questão de bom senso” ou “baixos teores”: "Cigarros Amalfi: Câncer? Talvez.
Sabor? Com Certeza”, diz outro slogan impagável do filme.
Para o filme, o conceito de
Publicidade honesta não é a de cumprir aquilo que o produto promete, mas expor
a inutilidade ou os desejos impulsivos do consumidor sem discursos indiretos ou
pretextos.
“Gente Louca” desnuda a forma de
adesão dos consumidores ao discurso publicitário: ela não está no campo do
condicionamento-reflexo ou da persuasão por meio da retórica. Para Baudrillard,
a linguagem publicitária está no campo da crença e da regressão.
“O indivíduo é sensível à temática latente de proteção e de gratificação, ao cuidado que se tem de solicitá-lo e persuadi-lo, ao signo, ilegível à consciência, de em alguma parte existir alguma instância (no caso, social, mas que remete diretamente à imagem da mãe) que aceita informá-lo sobre seus próprios desejos, preveni-los e racionalizá-los aos seus próprios olhos” (BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos,São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 176).
O que Baudrillard e o filme
“Gente Louca” pretendem mostrar é que o consumidor mantém o mito da persuasão e
convencimento publicitário para esconder uma relação regressiva de proteção e
gratificação com uma instituição social. Assim como a criança mantém o mito do
Papai Noel (embora saiba que ele não exista) para racionalizar a relação de
gratificação com os pais, da mesma forma o adulto mantém o mito da Publicidade
(embora saiba que tudo que ela diz é mentira) para racionalizar a gratificação
dos seus impulsos, compulsões e vícios regressivos.
Ficha Técnica
- Título: Gente Louca (Crazy People)
- Diretor: Tony Bill, Barry Young
- Roteiro: Mitch Markowitz
- Elenco: Dudley Moore, Daryl Hannah, Paul Raiser, David Paymer
- Produção: Paramount Pictures, Intuitive TV
- Distribuição: Paramount Home Video
- Ano: 1990
- País: EUA
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