sexta-feira, março 24, 2017

Uma ponte para a gnose no filme "Os Famosos e os Duendes da Morte"


"Os Famosos e os Duendes da Morte" (2009) é uma das raras incursões da produção do cinema nacional no imaginário arquetípico gnóstico. A narrativa é um exemplo de como, através do cinema, a subjetividade contemporânea é representada por meio de personagens gnóstico. No filme, caracterização do protagonista como o "Viajante" -  aquele que através do silêncio, melancolia e introversão busca um particular estado alterado de consciência: a "suspensão": a busca de uma ponte (no filme, ao mesmo tempo simbólica e literal) entre esse mundo e a iluminação espiritual.

- As vezes eu tenho nojo de mim. Queria que tudo acabasse de uma vez!

- Como? A ponte? (diálogo do protagonista digitado no MSN)
Em uma cidadezinha gaúcha habitada por descendentes alemães vive um jovem absolutamente deslocado, melancólico, a maior parte do tempo em silêncio. Fugindo do cotidiano entediante do lugarejo, o garoto se enclausura no seu quarto onde se conecta com o mundo exterior por meio da internet, sob o codinome de "Mr. Tambourine Man". 

Tal como na música de Bob Dylan, ele é influenciado pela melancolia das canções do compositor. Tenta expressar seu descontentamento com a vida por meio de contatos virtuais. Incapaz de expressar suas angústias para a sua mãe viúva e para os amigos, tem as ferramentas da internet como uma opção existencial.

Mas um mistério assombra a narrativa. Entre seus sonhos, devaneios e alucinações ronda a imagem de uma garota (que na internet assina como "Jingle Jangle", outra referência a Bob Dylan), tal qual um fantasma. Com a chegada de um homem misterioso que retorna à cidade após um acidente há anos atrás, a atmosfera do filme passa a beirar o realismo fantástico. Alucinações e realidade começam a se misturar. 


A Ponte


Tudo parece girar e convergir para a ponte de ferro da cidade, o elemento emblemático da narrativa: local não só de uma série de suicídios que ocorrem no vilarejo como, também, peça-chave do simbolismo final ao qual o filme pretende chegar.

Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), o primeiro longa-metragem de Esmir Filho (diretor de curtas como o famoso hit da Internet “Tapa na Pantera”), inspirado no romance de Ismael Canepele (“Música para Quando as Luzes se Apagam”) é mais do que um drama intimista adolescente que tenta emular tramas como as do filme "Paranoid Park" de Gus Van San. 

Mais além, Os Famosos... é mais um exemplo de como o cinema apresenta as formas de constituição da subjetividade contemporânea por meio de recorrentes personagens míticos da tradição do gnosticismo. Uma tradição que parasita literatura e cultura, garantindo as constantes ressurgências dos elementos gnósticos ao longo da história.

Detetives, Viajantes e Estrangeiros


Em postagens anteriores (veja links abaixo) descrevemos que os personagens fílmicos do cinema contemporâneo parecem se constituir em torno sempre de três tipos de protagonistas arquetípicos: o Detetive, o Viajante e o Estrangeiro. Uma sensação atravessa esses três personagens: prisioneiros dentro de um cosmos hostil, estrangeiros dentro do seu próprio país, um mal estar que perpassa toda a experiência humana como uma estranha sensação de deslocamento, de não fazer parte de uma totalidade, pressentida como corrompida e inautêntica.

O protagonista adolescente de Os Famosos...” é o arquétipo do Viajante, cuja subjetividade é marcada pelo silêncio, melancolia e Jogo. Ele não entre em confronto ou choque violento, apenas observa tudo em um estado de suspensão (para o pensador gnóstico Basilides, filósofo gnóstico do início da era cristã, importante estado alterado de consciência capaz de fazer o indivíduo alcançar a suspensão de todo o pensamento, o grau zero da linguagem, para, então, se alcançar a iluminação e Deus – a gnose).


Sua introversão e silêncio são extravasados pelas suas incursões pela Internet (“Jogo”, no sentido lúdico). O jogo faz o protagonista criar uma interzona entre ficção e realidade, criando o desejado estado de suspensão, em torno da qual gira toda a experiência sinestésica que o filme quer criar para o espectador: um relato sensorial marcado pela fotografia que quer marcar texturas e formas fluidas com muita contra-luz, cores estouradas e a alta definição de imagens como a dos dedos sujos que tocam a pela alva de Jingle Jangle ou os belíssimos takes dos seus cabelos finos ao vento, sob a luz do sol, na ponte.

Sempre a ponte de ferro, o grande simbolismo que caracteriza o protagonista o Viajante nesse filme. Estar no meio da ponte (imagem recorrente no filme) é o estado de suspensão. De lá, muitos do vilarejo saltam para a morte. Tal como em filmes como Vanilla Sky (2002) e Vidas em Jogo (The Game, 1997), o salto para o vazio é mais uma representação imagética desse estado de suspensão que busca a gnose, o “salto de fé”, mesmo sabendo, como diz o jovem protagonista, que nada existe depois.

                  Numa das sequências que se aproxima do final, o protagonista está no carro com o “estranho” que retornou à cidade, para dar “umas bandas” e não ter que ir para a chata feste junina da cidadezinha. Eles atravessam a ponte. A sequência é propositalmente alongada, dando a impressão falsa de erro de continuidade. O “estranho” é aquele que, no passado, teve um trágico envolvimento com Jingle Jangle. 




O protagonista tem um inexplicável fascínio por ele que o conduz através da ponte. Com esse proposital erro de continuidade, a narrativa sublinha ainda mais o estado de suspensão do protagonista. Ele, ansiosamente, busca uma “saída” (como diz o estranho forasteiro, falando sobre o que ele também buscava quando mais jovem) de toda aquela sensação (“Às vezes tenho nojo de mim. Queria que tudo acabasse de uma vez!”, digita no MSN o protagonista em certa altura da estória).

Sua “saída” está na ponte de ferro, para onde vai caminhar na sequência de significado aberto que encerra o filme.

Gnosticismo pop e cult


                Os Famosos e os Duendes da Morte é um dos raros filmes brasileiros a fazer uma incursão por narrativas místicas gnósticas. Diferente dos filmes gnósticos norte-americanos como Show de Truman, Vanilla Sky, A Passagem etc. onde temos roteiros que buscam uma espécie de gnosticismo pop para as massas, aqui temos um gnosticismo Cult.


A mão pesada da direção parece querer encher de simbolismos todos os vazios dos enquadramentos do filme. Tal como em filmes como O Fabuloso Destino de Amelie Poulin, parece que, em cada elemento do plano, o diretor que colocar aqui e ali detalhes para que o espectador busque simbolismos. Esta estilização extrema muitas vezes dá um quê de artificialismo, como se o filme pretendesse vir às telas desde o início como “Cult”.

Erik Wilson (The Secret Cinema: Gnostic Visions in Film) afirma que essa fase Cult (gnosticismo somente para um público intelectualizado) predominou nos anos 60 e 70 através de filmes como Zardoz (Zardoz, 1974) ou O Homem Que Caiu na Terra (The Man Who Fell to Earth, 1976) e que, na atualidade, entramos na fase pop do gnosticismo quando alcança o mainstream hollywoodiano por meio de roteiristas como, por exemplo, Charlie Kauffmann.

De qualquer forma, Os Famosos... é um filme ousado e bem vindo ao trazer para a produção cinematográfica brasileira o principal elemento narrativo gnóstico: o aprisionamento do protagonista não apenas por uma realidade política ou social hostil, mas por uma condição metafísica que envolve todas as outras.



Ficha Técnica

Título: Os Famosos e os Duendes da Morte
Diretor: Esmir Filho
Roteiro:  Esmir Filho baseado no livro de Ismael Caneppele
Elenco:  Ismael Caneppele, Tuane Eggers, Henrique Larré
Produção: Dueto Filmes, Casa do Cinema de Porto Alegre, Dezenove Som e Imagem
Distribuição: Warner Bros.
Ano: 2009
País: Brasil

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