“Haters”, “trolls”, “comandantes do caps lock”. Eles são os “guerreiros
da Internet”. Depois de uma pesquisa de quatro anos entrevistando-os por todo o
mundo, o cineasta e fotografo norueguês Kyrre Lien produziu uma série de
documentários curta-metragem chamada “The Internet Warriors”(2017). Lien ouviu
usuários que dedicam a maior parte do seu tempo para ficar diante da tela do
computador, “opinando” sobre qualquer coisa através de um discurso polarizado,
agressivo, intolerante, racista e preconceituoso. O documentário quer entender
como pessoas comuns, pessoalmente agradáveis e educadas com seus filhos e
esposas, são capazes de ocupar redes sociais e fóruns de discussão com um
discurso tão carregado de ódio.
Em um texto
provocador chamado “A Opinião Pública Não Existe”, o sociólogo francês Pierre
Bourdieu queria questionar dois simples postulados “ingenuamente democráticos”
por trás de toda pesquisa de opinião: primeiro, a suposição que todo mundo pode
ter uma opinião; segundo, que todas têm o mesmo valor.
Lendo esse pequeno texto, podemos pensar como
décadas de identificação da democracia com as pesquisas de opinião levaram
todos a acreditar que qualquer um pode ter uma opinião formada sobre qualquer
coisa – e que isso é Democracia, sem ninguém questionar o quanto nas perguntas
das pesquisas já está embutida a resposta que todos dão como fossem suas.
Esse mito da liberdade de opinião chega ao
paroxismo com a Internet e as redes sociais. Depois de anos acreditando que
qualquer um pode ter opinião, é como se alguém abrisse a Caixa de Pandora.
Facebook, Twitter, blogs etc., abriram a possibilidade de todos colocarem em
prática o mito que acreditaram por tanto tempo – finalmente todos podem opinar
sobre qualquer coisa sem ter que esperar algum pesquisador bater na sua porta.
E o resultado empurrou a liberdade
democrática ao seu limite, resultando num efeito inverso: a própria ameaça da
Democracia.
O curta documentário do cineasta e fotografo
norueguês Kyrre Lien The Internet
Warriors é o resultado de uma investigação sobre o fenômeno mais extremo
que saiu dessa caixa de Pandora – os “guerreiros dos teclados”, os “comandantes
do caps lock”, os “haters”, ou simplesmente “Trolls”. Usuários que dedicam a
maior parte do seu tempo para ficar diante da tela do computador, “opinando”
sobre qualquer coisa através de um discurso polarizado, agressivo, intolerante,
racista e preconceituoso.
O Documentário
Um metalúrgico inglês que acredita na
destruição da Grã Bretanha pelos imigrantes e refugiados – mas a sua esposa é
tailandesa; um homem da Pensilvânia que se prepara para uma guerra civil se
Hillary Clinton vencer a eleição; uma norueguesa que acha que Hitler errou: se
escolhesse matar muçulmanos ao invés de judeus o mundo seria muito melhor; uma
usuária do País de Gales que odeia Lady Gaga: “Aquela vadia me irritou muito” /Foda-se
SHOWGIRL TIRED ASS, volte para a cidade que lhe pertence/ – tweetou para Lady
Gaga.
O documentário apresenta uma verdadeira fauna
humana que, a princípio, desperta a mesma curiosidade antropológica que
inspirou Kyrre Lien.
Tudo começou quando Lien observava os
comentários de um site de notícias: “fiquei fascinado por tanto ódio e
ignorância. Comecei a olhar o perfil dessas pessoas para saber quem eram.
Muitos pareciam bastante normais. Tinham famílias e pareciam bastante
agradáveis, mas os comentários que escreviam publicamente eram extremos. Havia
algum tipo de desconexão” (The Guardian), explicou Lien. Daí veio
a ideia do documentário The Internet
Warriors.
No documentário assistimos aos trolls sendo
confrontados com seus próprios comentários impressos, trazidos por Lien para
que possam ser lidos e explicados pelos autores. Observamos eles em suas casas,
junto aos seus filhos e esposas. São calmos, educados e cordatos. Mas seus
comentários extremos, discriminatórios e preconceituosos.
Quatro anos de investigação
A investigação de Lien (que ocupou quatro
anos, de 2013 a 2017) o levou através do mundo, dos fiordes da Noruega aos
desertos dos EUA. Entrevistou 200 pessoas, racistas, homófobos e toda sorte de
intolerâncias e discriminações. E encontrou um paradoxo: embora se exponham
diariamente nas redes sociais, muitos deles não queriam falar publicamente em
um documentário. Parece que para eles a tela do computador é uma espécie de
escudo protetor. Como fala um dos “haters” do documentário, “nada disso vai atingir
a minha vida”.
Ao final, Kyrre Lien chegou à seguinte
conclusão:
“Muitos deles são solitários. Sentem que a sociedade ou o governo os deixou para trás. E que muitas pessoas foram vítimas de bullying. Mas aprendi que as pessoas são capazes de mudar. Não podemos fechar os olhos e fingir que eles não existem se quisermos mudar a forma de debatermos on-line. É importante ouvir essas vozes agora” (The Guardian).
As pessoas são capazes de mudar, como no caso
do balconista norueguês que aparece ao final do documentário: “Eu quero trazer
de volta o colonialismo”, defendia Kjell Tislevoll como a única forma de manter
“o terrorismo muçulmano sob controle”.
Ele defendia raivosamente essa opinião, até
que um centro para refugiados foi construído na sua cidade, coincidindo com a chegada
de um homem muçulmano no seu trabalho. Ao conhecer de perto a realidade dos
imigrantes, sua opinião rapidamente mudou: “se eu conhecesse meu ex-self em um
fórum da Internet provavelmente discutiria com ele. Meus problemas com os
imigrantes foram embora”, confessa Tislevoll.
O problema é o tempo dessa mudança.
Atualmente, o fenômeno dos “guerreiros da Internet” está deixando de ser uma
curiosidade sócio-antropológica para se transformar num fator político – muitos
deles transformam-se em profissionais, remunerados e cooptados para ações
políticas organizadas seja em campanhas eleitorais ou para desestabilizar
governos. Como bem documentado nas diversas “primaveras” que repentinamente
surgiram em países como Egito, Ucrânia, Jordânia, Argélia, Iêmen e Brasil.
E o pior é quando essas “opiniões” são
traduzidas politicamente em partidos ou movimentos extremistas que chegam ao
Poder, confirmando o discurso desses “guerreiros da Internet”.
Assista ao curta abaixo com legendas em inglês. Veja o projeto “The Internet Warriors” completo nesse
endereço: http://theinternetwarriors.com/