Surpresa em festivais de cinema fantástico pelo mundo, a comédia francesa de horror “Rubber” (2010) nos brinda com a bizarra estória de um pneu assassino com poderes telepáticos que rola pelas estradas e desertos em busca de vingança. Somente o olhar de um diretor francês para ter a ironia e o distanciamento necessários para criar uma alegoria sobre o centro espiritual da civilização americana: o automóvel e o deserto.
O que podemos esperar de uma comédia francesa de horror com essa sinopse: “em algum lugar do deserto californiano, um pneu com poderes telepáticos acorda subitamente para uma missão demoníaca, isto é, assassinar todos os seres que ver pela frente. Os habitantes da região assistem incrédulos aos crimes cometidos por esta espécie de serial killer das rodovias, que se sente misteriosamente atraído por uma bela jovem. Em paralelo, uma investigação é lançada”.
A comédia do diretor francês Quentin Dupieux é um híbrido de “Road Movie” com “Slasher Movie” (onde sempre um assassino aparece do nada para atacar um grupo com requintes de tortura e sadismo). O olhar estrangeiro de Dupieux tem o distanciamento suficiente para, através da ironia, renovar os clichês de gêneros norte-americanos por excelência. E, indo além, o diretor consegue ainda destilar os principais símbolos da cultura pop americana: o deserto e o automóvel.
O Filme
Robert é um pneu usado que ganha vida em um aterro sanitário e descobre que possui poderes telepáticos e telecinéticos. Depois de treinar seus dons em objetos e animais pelo caminho no deserto (concentrando-se “mentalmente” ele simplesmente explode suas vítimas) ele decide seguir uma bela garota e espalhar uma trilha de sangue e cabeças explodidas em um vilarejo local.
O filme começa com um contador (Jack Plotnick) caminhando no deserto com vários binóculos nas mãos. Um carro de polícia chega vagarosamente, para, e do porta-malas sai um xerife (seu nome é Chad – Stephen Spinella) que entrega seus óculos escuros para o motorista em troca de um copo d água. Em seguida, olha para a câmera e inicia um discurso metalinguístico: “Por que o E.T. de Spielberg é marrom?" Ele mesmo responde: "Não tem nenhuma razão" ("no reason")". E continua: "Por que em JFK, de Oliver Stone, JFK é assassinado?"E responde novamente: "Não tem nenhuma razão".
Faz mais umas cinco perguntas, até mesmo sobre a vida real ("Por que não enxergamos o ar que respiramos?"), respondendo a todas as perguntas com "no reason". Termina seu discurso derramando o copo d'água no chão e a câmera se afasta para revelar que, na verdade, ele não estava falando conosco, mas sim com uma plateia de 10 a 12 pessoas a quem são finalmente entregues os binóculos que estavam no contador. O contador aponta na direção em que eles têm que assistir ao espetáculo e o filme "Rubber" finalmente começa
Faz mais umas cinco perguntas, até mesmo sobre a vida real ("Por que não enxergamos o ar que respiramos?"), respondendo a todas as perguntas com "no reason". Termina seu discurso derramando o copo d'água no chão e a câmera se afasta para revelar que, na verdade, ele não estava falando conosco, mas sim com uma plateia de 10 a 12 pessoas a quem são finalmente entregues os binóculos que estavam no contador. O contador aponta na direção em que eles têm que assistir ao espetáculo e o filme "Rubber" finalmente começa
Depois de uma recepção negativa na Semana da Crítica de Cannes, o filme teve boa recepção em vários festivais de cinema fantástico como o de Sitges (Catalunha) e o After Dark Festival em Toronto, tendo ainda boas críticas no Festival do Rio 2010.
Em diversas entrevistas Dupieux afirma que a sua principal inspiração foi o filme “Encurralado” de Spielberg. Por que em Spielberg um caminhão velho e sujo começa, do nada, a perseguir implacavelmente um pacato motorista numa estrada? “No reason!” Assim como em “Rubber”, qual o porquê de um pneu abandonado ganhar vida e se tornar um assassino psíquico?
É claro que a pegadinha metalinguística está na crítica aos roteiros que quebram o princípio da verossimilhança ao se utilizar o “deus ex-machina” (termo para designar soluções arbitrárias, sem nexo ou plausibilidade na narrativa, para solucionar becos sem saída encontrados em roteiros mal conduzidos). Mas percebe-se no filme que, consciente ou involuntariamente, Dupieux explora um plano arquetípico da civilização tecnológica: o pneu que se vinga de uma sociedade que não lhe deu o devido reconhecimento.
Pneu: a Alegoria do Automóvel
Se o automóvel é a metáfora da civilização contemporânea e se a alegoria é uma metáfora em movimento, então “Rubber” é uma alegoria da sociedade onde as suas principais indústrias do século XX (automobilística e bélica) foram consolidadas sobre borracha e o pneu.
Enaltecemos os motores, as potências dos canhões, a sofisticação do design e aerodinâmica, mas...jamais lembramos dos pneus que sustentam e resistem a tudo.
Em certa altura da narrativa “non sense”, Robert, o pneu, se detém diante de um depósito de pneus velhos e os vê sendo destruídos em uma enorme fogueira. Parece que isso faz aumentar ainda mais a sua fúria assassina.
É a alegoria ecológica de uma sociedade que não sabe o que fazer com seu próprio lixo e excrementos. É a vingança não mais da natureza, mas da “segunda natureza”: produtos sintéticos, processados e industrializados que podem ganhar vida e questionarem o motivo do descarte, da obsolescência e de todo desperdício. Sem dúvida Dupieux abriu uma nova veia temática para o cinema fantástico.
Mas, há algo mais nesse serial killer de borracha. Ele parece ser o paroxismo de uma sequência de filmes que se inicia com “Encurralado” (Duel, 1971), passando por “Christine, o Carro Assassino” (Christine, 1983) até o atual “Transformers” (2007) onde automóveis se revelam serem, na verdade, robôs alienígenas.
Vivemos em uma sociedade cujo consumo evoluiu para a aquisição não mais de objetos, mas de emoções, personas, ideais, sentimentos e virtudes que foram de forma fetichista incorporado a eles. Tal como na lógica invertida do fetichismo (a essência do pensamento mítico, mágico e religioso onde objetos e imagens se tornam entidades autônomas com poderes mágicos ou divinos) das sociedades arcaicas, a publicidade seculariza esse pensamento mítico-religioso nas relações econômicas.
As mercadorias passam a adquirir qualidades humanas e os homens se transformam em coisas. Para deixarem de ser “coisas” têm que adquirir as mercadorias que passarão suas qualidades humanas ao comprador.
Para a publicidade um automóvel tem que ser vendido não pela sua utilidade, mas por uma crença fetichista de que ele tem um poder mágico de transformação da vida. Devem-se adquirir qualidades humanas que deveriam surgir de relações humanas reais e não de uma relação mercantil de compra e venda. Da mesma forma como os objetos mágicos prometem proteção, sorte etc., o automóvel imantado pela imagem publicitária promete ao seu proprietário transformação pessoal e existencial: magicamente criará festas, sensualidade, alegria, amigos, etc. Magicamente você irá adquirir qualidades humanas contidas numa mercadoria. No modo de vida consumista temos uma sociedade fetichizada, ou seja, as mercadorias é que começam a dar o porquê das relações humanas. Ocorre uma inversão: os homens se relacionam porque existem mercadorias entre si e não por uma razão criada pelas próprias pessoas.
O pneu serial killer psíquico é a alegoria dessa relação mágica com as mercadorias. De repente, transforma-se numa entidade punitiva que se vinga de todos os abusos da civilização do descarte e da obsolescência planejada: como ousam jogar fora objetos que tanto amaram?
Desert For Ever
Em uma entrevista sobre o filme, Dupieux explicita outro tema arquetípico da narrativa:
Pergunta - Mas parece que há algo muito arquetípico da América no filme.
Quantin Dupieux - É basicamente o deserto. É muito cinematográfico porque é bom para se criar qualquer coisa, porque é um espaço morto, como estar em outro lugar. Outro planeta, talvez. É por isso que eu decidi fazer isso no deserto, porque tudo é possível no deserto. Você sabe, se a mesma história fosse na rua, na cidade, teria sido totalmente diferente. (“Quentin Dupieux (director of Rubber) Interview”, por Benjamin Pearson. Disponível em http://www.tinymixtapes.com/features/quentin-dupieux-director-irubberi)
É a mitologia do deserto na cultura americana. Na sua forma geológica rude, crua, áspera e seca inspirou diversas narrativas cinematográficas que vão do misticismo à violência e crueldade como o western, slash movies ou dramas de sobreviventes. O filósofo francês Jean Baudrillard em seu livro “América” descobre no deserto o centro arquetípico da civilização americana:
“Monument Valley, Dead Horse Point, Grand Canyon... toda essa região irradia uma presença mágica que nada tem a ver com a natureza. Compreende-se que tenha sido necessária muita magia aos índios, e uma religião bem cruel, para conjurar tamanha grandeza do evento geológico e celeste do deserto, para viver à altura de tal cenário. O que é o homem, se os sinais anteriores possuem tamanha força? Uma raça humana deve inventar sacrifícios iguais à ordem cataclísmica natural que a cerca” (BAUDRILLARD, Jean. “América”, Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 9
Os olhares europeus de Baudrillard e Dupieux convergem para a mesma percepção:o centro espiritual da América é violento e paranoico, herdeiro de tradições míticas onde a grandeza esmagadora da natureza era conjurada através do sangue e sacrifícios. Não é à toa que foi no deserto do oeste americano que surgiram os principais símbolos arquetípicos da civilização ocidental: Las Vegas, a detonação das bombas atômicas e a Área 51.
Somente nesse cenário poderia rolar pelas estradas um pneu assassino em busca de vingança.
Ficha Técnica
- Título: Rubber
- Diretor: Quentin Dupieux
- Roteiro: Quentin Dupieux
- Elenco: Stephen Spinella, Roxane Mesquida, Wings Hauser, Jack Plotnick
- Produção: Realitism
- Distribuição: Canal + (França) e Magnet Releasing (EUA)
- Ano: 2010
- País: França
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