Na época que a série
“Família Dinossauros” (1991-1994) ia ao ar no início dos anos 1990 não existia
a TV digital. Mas um episódio da série em 1993 explicava o porquê do atual
esforço concentrado e inédito envolvendo Governo, emissoras, Federação de
indústrias e ONGs para evitar que massas de telespectadores ficassem sem
televisão com o desligamento do sinal analógico na Grande São Paulo. Praça
responsável por 70% do faturamento das emissoras, apenas as possíveis
consequências financeiras da perda de telespectadores não explicam esse esforço
que até envolveu a entrega de Kits de TV digital gratuitos através do “assistencialista” e “populista” Bolsa Família. O humor ácido da “Família
Dinossauros” dizia que jamais em uma crise econômica o Governo permitiria que cobradores
tirassem a TV de pessoas endividadas: o sistema que as endivida precisa que a
TV mantenha os endividados distraídos e confiantes. Conhecemos bem a função da TV
em momentos de conflagração política (censura e manipulação das notícias) mas
prestamos pouca atenção à sua função cotidiana e silenciosa: fazer as pessoas
acreditarem que a força de vontade, o mérito e o trabalho são moralmente bons e
que vale à pena acordar toda manhã confiantes e cheios de esperanças.
“Caravanas da TV Digital” organizadas às pressas
para levar informações aos telespectadores sobre o desligamento do sinal
analógico; uma oficina itinerante chamada “Sintonize-se” para orientar como
instalar conversor e antena digital; seguidas reuniões em Brasília com o
presidente da Anatel e as emissoras de TV; programas assistenciais do Governo
como o Bolsa Família utilizados para a distribuição gratuita de kits de
conversão para TV digital; um projeto chamado “Patrulha Digital” feito em
parceria entre a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV) e
Fiesp (aquela federação de indústrias do gigantesco pato amarelo do Paulo Skaf) no qual alunos do SENAI orientaram a população e distribuíram kit digitais, entre outra série
de iniciativas na Grande São Paulo para orientar as pessoas a ter a TV digital
com o desligamento do sinal analógico.
A Grande São Paulo é a prova de fogo: “se vencermos
aqui, implementaremos a TV digital no restante do País”, disse Paulo Tonet
Camargo, presidente da Abert. Afinal, a região corresponde a 30% de audiência
do PNT (Painel Nacional de Televisão) e é a praça de onde se origina 70% do
faturamento.
A "Patrulha Digital" do SENAI: ninguém pode ficar sem TV Digital |
Confesso que esse humilde blogueiro jamais viu
tamanho esforço concentrado para “educar” as pessoas a lidar com uma novidade
tecnológica em décadas de história das comunicações no Brasil – a introdução da
TV em cores, o surgimento dos canais UHF, o videocassete, o controle-remoto, a
chegada dos canais a cabo, os CD-ROM, a Internet etc.
Até os então criticados programas assistenciais dos
governos lulo-petistas como o Bolsa Família (acusados de assistencialismo, populismo,
de “estimular a preguiça”, de “somente dar o peixe e não ensinar a pescar”
etc.) foram instrumentalizados para entrega gratuita de kits.
Nem em educação e saúde públicas foram vistas
tantas iniciativas publico-privadas concentradas – a não ser, claro, em
campanhas de vacinação contra pandemias imaginárias para favorecer grandes
laboratório bio-farmacêuticos – sobre isso clique aqui.
É o dinheiro?
O leitor pode argumentar: “é o dinheiro, estúpido!”.
As grandes emissoras de TV não querem perder grana e anunciantes pela queda de
audiência com milhões de telespectadores pegos de surpresa pelo desligamento do
sinal analógico.
Mas acredito que isso apenas explica parte da
questão. Afinal, os índices de audiência já vêm há décadas sendo manipulados
por metodologias e amostragens de pesquisas por grandes institutos, sempre
favorecendo a TV Globo e mascarando sua queda de audiência. Como deverá
acontecer agora, o impacto do desligamento do sinal analógico será diluído pelos
erráticos números das pesquisas. Como de praxe, favorecendo o “share” da
audiência global e com muito sigilo.
O atual complexo político-jurídico-midiático
golpista vem demonstrando que está sendo muito diligente no campo da
comunicação (bem diferente do que foram os governos petistas): a reforma do
ensino médio (com a agenda secreta de reproduzir o analfabetismo visual para
manter o atual sistema de comunicação – clique aqui), a contratação de
youtubers para dourar a pílula dessa reforma educacional, a co-produção Polícia
Federal e Netflix para produzir a série Lava Jato – Justiça para Todos como
parte da engenharia de opinião pública para normatizar a diversionista onda de
moralização nacional etc.
O atual esforço em “educar” as massas sobre a
necessidade de converter sua velha TV ao sinal digital (nem que seja na base do
terrorismo e da ameaça) é mais um capítulo nesse ousado arco do golpe que vai
da politica (a deposição de uma presidenta democraticamente eleita) às medidas
a fórceps de “flexibilização” dos direitos trabalhistas e previdenciários e a
resignação das pessoas em ver cortada na própria carne o custo da crise
econômica.
“Distraídas e confiantes”
Por que? Talvez aquele famoso seriado Família
Dinossauros do início dos anos 1990 (com os bordões “Querida, cheguei!” e
“Não é a mamãe”) possa nos ajudar a explicar o porquê de todo essa urgência em
torno da necessidade em garantir uma recepção perfeita de TV para as massas.
Embora muito de nós lembremos dela como uma série infantil, seu humor
era bem ácido e abordava temas polêmicos sociais e familiares como feminismo,
consumo exagerado, assédio moral no trabalho, misoginia, puberdade, racismo,
bullying etc.
No episódio 42 da terceira temporada, “O Casamento de Roy” (1993), o
chefe de família Dino e o seu amigo Roy perdem o emprego. Há uma grave crise
econômica em Pangeia que o governo acaba jogando a culpa nos dinossauros
quadrúpedes – a velha tática de criar um inimigo externo para unir uma nação
desesperada – assista ao vídeo no final da postagem.
A certa altura há uma sequência de impagável cinismo: “tenho que arrumar
um emprego logo, minhas conta estão virando um bolo enorme”, lamenta Roy. Dino
tenta ser otimista, dizendo que nessa crise os cobradores estão “mais
compreensivos ultimamente”. Puro engano: sua esposa, Fran, avisa: “Dino, tem um
cobrador tomando o seu carro!”.
“Essa tal de recessão está mal... daqui a pouco vêm aqui tomar a minha
televisão”, lamenta Dino abanando negativamente a cabeça. Mas o cobrador o
tranquiliza: “Não esquenta, o Governo nunca deixaria isso acontecer... a
televisão é uma ferramenta essencial para manter as massas empobrecidas
distraídas e confiantes”.
E Roy chama Dino: “Esquece essa recessão, vem ver os programinhas
novos”. E vemos na TV anúncios de novos programas de estreia que vendem
mensagens de otimismo, fé, força de vontade e o poder do amor para ajudar a superar
todas as dificuldades da vida.
Em geral prestamos mais atenção à função ideológica da mídia em momentos
de conflagração política: a censura, as manipulações das notícias, a
promiscuidade entre os interesses empresariais dos proprietários dos meios de
comunicação e partidos políticos, os desdobramentos políticos dos monopólios
midiáticos etc. São momentos em que as mídias exercem a sua função de “alarme”
para desestabilizar governos, criar ondas de choque na opinião pública e criar
pautas que desviem a atenção da opinião pública para os verdadeiros problemas –
a técnica de “agenda setting”.
Ideologia são as práticas cotidianas
Porém o episódio da Família Dinossauro aponta para uma função ideológica
mais cotidiana e, por assim dizer subliminar: divertir e tornar os
telespectadores confiantes.
“Ideologia são as práticas cotidianas”, é tese defendida por
pesquisadores como Dieter Prokop, Michael Buselmeir e Jesus Requena. Para além
da ação político-partidária mais explícita, há uma ação mais cotidiana, para
manter as pessoas mais otimistas e confiantes no sentido de que vale a pena,
depois do futebol ao vivo ou da telenovela da noite, acordar cedo no dia seguinte
para ter esperança no trabalho e no mérito.
Prokop, por exemplo, fala em “agilidade formal” como um dos traços
básicos da linguagem televisiva: o ritmo intenso, a sucessão de atrações na
grade de programação e o formalismo dos conteúdos do sexo à violência,
tornando-os superficiais e rápidos – o medo vira susto, a violência se reduz à
estética slash movie e exploited, o sexo ao pornográfico e o
amor ao casamento. Protegido de experiências que possam desestabilizar sua
monótona rotina de trabalho e lazer, sente-se confiante para enfrentar sempre
um “novo” dia – leia MARCONDES FILHO, Ciro (org.), Dieter Prokop, Coleção grandes cientistas sociais, Ática, 1988 e
MARCONDES FILHO, Ciro, A Linguagem da
Sedução, Perspectiva, 1988.
O que lembra o “discurso metonímico” discutido por Requena: lateral e
superficial, sempre pulando de um conteúdo para outro num fluxo infinito de
imagens. A aparente variedade de informações criaria uma ilusão de
“enriquecimento cultural” e “progresso” – REQUENA, Jesus Gonzalez. El Discurso Televisivo, Anagrama, 1988.
Tanto a agilidade formal como o discurso metonímico reforçariam a
ideologia da vontade individual (já que o discurso televisivo nunca se dirige
para o “nós” mas para o “você”). O que fundamenta a ideologia do querer, da força
de vontade e do mérito.
Coincidentemente, a próxima telenovela da Globo, estreando na vigência
do sinal digital, é a novela escrita por Glória Perez “A Força do Querer”. Sua
sinopse é a síntese do papel ideológico cotidiano da televisão: entreter e tornar
as pessoas confiantes:
Se existe algo comum a todo ser humano é que todos temos um sonho, um desejo, um querer – que diz respeito a amor, dinheiro, sucesso, identidade, poder, realização profissional. Os quereres são múltiplos e se interligam, interagem entre si nesse grande painel da convivência humana, harmonizando-se ou chocando-se uns com os outros. Movidos pelo querer, somos o tempo todo desafiados a fazer escolhas. Escolhas que nos fazem bem ou que se voltam contra nós. São questões que nos unem em um mundo em ebulição, no qual as certezas e os valores estão em pleno questionamento – (Rede Notícia – clique aqui).
Daí
começamos a compreender o porquê da urgência dos esforços concentrados em
garantir a TV para todos, sob o álibi da “concessão pública” e de a informação ser um “direito inalienável do cidadão à informação”.
Enquanto
as pessoas acreditarem no mérito e no trabalho, e de que preencher direito um
currículo e portar-se bem em uma entrevista são as chaves que abrirão portas
para o sucesso, a realidade torna-se simplificada – não existe o mundo mais
amplo das políticas públicas ou econômicas. Há apenas o querer e a vontade
férrea de amar e ter uma vida melhor.
Dessa maneira a
realidade fica menos assustadora, garantindo o sono dos justos e um despertar
cheio de esperanças.
Assim como
nos fala a música que abre o filme La La
Land “Another Day of Sun”: “por que amanhã será mais um dia de Sol!”,
exortando o ouvinte a se reerguer toda vez que estiver de baixo astral.
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