quinta-feira, agosto 26, 2010

O Gnosticismo Alquímico de Nikola Tesla

Em O Grande Truque (The Prestige, 2006), Christopher Nolan rende homenagem ao misterioso e controvertido cientista Nikola Tesla com uma performance memorável do gnóstico pop David Bowie. Tesla talvez tenha sido o último dos cientistas alquímicos, cuja tecno-utopia era redimir a matéria ao criar uma tecnologia fundamentada em princípios holísticos e alquímicos que conduziria a uma forma de energia livre e gratuita para a humanidade. Pagou o preço disso ao ter seu nome banido da história da Física e morrido no esquecimento.

Em postagem anterior sobre o filme “A Origem”, falávamos da surpresa de o diretor Chistopher Nolan , após filmes críticos e com sabor gnóstico como “Amnésia” e “O Grande Truque”, cair sob o fascínio das neurociências. Discutíamos que o protagonista Cobb não está interessado em iluminação ou qualquer tipo de reforma íntima.

Ele apenas procura deletar sua culpa, materializada nas insistentes projeções do seu subconsciente que atrapalham a sua missão corporativa e pessoal (voltar para seus filhos). Daí a surpreendente postura acrítica de Nolan diante das tecnociências contemporâneas.

Essa discussão fez-me lembrar de outro filme dirigido por Christopher Nolan, “O Grande Truque” (The Prestige, 2006) e, principalmente, do personagem histórico e misterioso cientista e físico Nikola Tesla, performado pelo gnóstico pop David Bowie nesse filme.

A figura controvertida e polêmica de Tesla é lembrada por um grande arco de discussões que vai desde as Teorias Conspiratórias (as aplicações militares das suas invenções e experiências pelo governo dos EUA e sua misteriosa morte quando seu arquivo com suas anotações e projetos estranhamente desapareceram) até as discussões sobre as possíveis relações entre tecnologia e motivações místicas (no auge da sua carreira, Tesla começou a lidar com noções teosóficas da ciência védica).

Mas, acompanhar sua trajetória (muitos afirmam que suas descobertas teriam sido mais importantes que as de Einstein) é perceber o desparecimento de um tipo de concepção da ciência e tecnologia de cunho alquímico, que progressivamente, no século XX, deu lugar à tecnognose cabalística, identificada com códigos de controle e exclusão.

Uma Física Alquímica
“Através do século XIX, símbolos e práticas em torno da eletricidade mantiveram acesa a chama da velha Alquimia. O vitalismo elétrico e os transes magnéticos mantiveram vivo o espírito do animismo em plena era do mecanismo. Comunicação elétrica, a fotográfica captura das ondas de luz, e a descoberta do espectro eletromagnético ajudaram a dissolver o mundo do materialismo atomista no interior de um universo de vibrações incorpóreas. Mas a eletricidade e o espectro eletromagnético também materializaram a mais prometéica e tecno-utópica dimensão da mentalidade alquímica.”(DAVIS, Erik. Techgnosis. London: Serpents Tail, 2004, p. 84.

Em pleno século do paradigma do mecanismo, a descoberta dos fenômenos da eletricidade e do eletromagnetismo acenderam a imaginação científica prometéica e alquímica. Esses fenômenos de natureza etéria e imprevisível ameaçaram quebrar o paradigma cabalístico da ciência mecanicista, marcada pelas ideias de confinamento, especialização, abstração, controle e segregação. Em outras palavras, uma certa visão de que a matéria seria algo disforme, necessitando de uma codificação abstrata fornecida pela ciência (números, cálculos etc.) para criar ordem, hierarquia, direcionamento, tudo sob o controle de uma elite esclarecida.

O sérvio Nikola Tesla (nascido em 1856 na Croácia) talvez tenha sido o mais prometéico dos cientistas que lidaram com esses fenômenos que fascinaram a imaginação popular na virada de século. Tesla chegou à América em 1884, sem um tostão no bolso e com uma ideia na cabeça: duas bobinas, posicionadas em ângulo reto e alimentadas com uma corrente alternada com noventa graus de fase entre sí fazendo um campo magnético girar, sem a necessidade do comutador utilizado em motores de corrente contínua. Era a descoberta da Corrente Alternada (AC), superior tecnologicamente a Corrente Contínua de Thomas Edison. A vantagem era a possibilidade de transportar a eletricidade a longas distâncias.

Na verdade, essa “ideia” de Tesla surgiu como uma imagem completa na sua cabeça na juventude. Tesla era avesso a papéis e arquivos, evitava-os o máximo possível. Seu raciocínio científico era analógico e intuitivo. Era contrário aos métodos dedutivos ou indutivos: "No momento em que uma pessoa constrói um aparelho para levar a cabo uma idéia crua, ela se encontra inevitavelmente envolvida com os detalhes deste aparelho", Tesla escreveu em sua autobiografia. "Conforme ele procede em tentar melhorar e reconstruir o aparelho, sua força de concentração diminui e ele perde de vista o Grande Propósito".

Esse ponto de partida alquímico estruturou toda sua visão sobre o propósito da ciência e tecnologia. Da ideia da AC, Tesla partiu para intensas pesquisas no laboratório de Colorado Springs, financiado por George Westinghouse. Mas Tesla queria ir além dos interesses econômicos monopolistas dos seus financiadores. Ele vislumbrava não mais a eletricidade confinada em fios e ordenada por sistemas de distribuição, mas livre para todos, a eletricidade sem fios, transmitida por ressonância através da atmosfera e do próprio planeta! Energia de graça para todos!

Ressonância e mutação. Dois princípios analógicos, alquímicos. Uma pequena quantidade de energia seria capaz de exponencialmente expandir em escala e frequência, ampliando a potência até cobrir toda a atmosfera e atravessar todo o planeta. Tesla tinha em seu poder a pedra filosofal: uma energia poderosa a partir de princípios holísticos simples, assim como era simples a “bobina Tesla”, simples o bastante para qualquer interessado construir, e totalmente funcional em modelos caseiros. Uma inovação impressionante, que foi a base para o rádio, televisão, e meios modernos de comunicação sem fio.

A Maior Descarga Elétrica da História

O relato da experiência em ressonância com eletricidade posta em prática em uma noite em Colorado Springs, em 1899, é impressionante:
“Certa noite em 1899, Tesla acionou sua máquina em força total, na esperança de produzir um fenômeno que ele chamou de "crescente ressonante". Sua torre descarregou na Terra dez milhões de volts. A corrente atravessou o planeta na velocidade da luz, forte o bastante para não morrer antes do final. Quando ela chegou ao lado oposto do planeta, ela foi rebatida de volta, como círculos de água voltando à sua origem. Ao voltarem, a corrente estava em muito enfraquecida, mas Tesla estava emitindo uma série de pulsos que se reforçavam um ao outro, resultando em um tremendo efeito cumulativo.
No ponto focal, aonde Tesla e seus assistentes assistiam, a crescente ressonante manifestou-se como uma demonstração alienígena de raios que ainda estão até hoje catalogados como a maior descarga elétrica da história. A corrente de retorno formou um arco voltaico que elevou-se até o céu por dezenove metros. Trovões apocalípticos foram ouvidos a trinta e três quilômetros de distância. Tesla, anteriormente, estava preocupado com a possibilidade de haver um limite para a geração de descargas ressonantes, mas, naquele evento, ele passou a crer que o potencial era ilimitado. A demonstração teve um fim inesperado, quando as descargas fizeram com que o gerador de força de Colorado Springs se incendiasse. Tesla não mais recebeu energia grátis dos donos da companhia desde então.” TRULL, D. Tesla: The Eletric Magician. Disponível em http://www.parascope.com/en/1096/tesindex.htm).

Após descobrirem o seu tecno-utópico propósito, seus financiadores como JP Morgan e Westinghouse o abandonaram. Tesla ainda tentou ludibriar Morgan ao dizer que a torre que construía era para construir um equipamento de transmissão de rádio intercontinental que lhe garantiria o monopólio das comunicações mundiais. Mas o propósito era outro: a transmissão de energia grátis para o planeta.

Aos poucos Tesla aproximou-se da Teosofia através dos ensinamentos de Swami Vivenkanada, na época (1891) em visita aos EUA. Tesla passou a descrever os fenômenos que manipulava em termos sânscritos como Akasha, Prana e o conceito de “Éter Luminífero” para descrever a fonte, existência e construção da matéria.

Mas se Tesla com seus princípios alquímicos pretendia a mutação da matéria em termos de ondas, ressonância, éter etc., enquanto isso o mainstream científico apenas queria a transcodificação da matéria, isto é, confiná-la, represá-la para direcioná-la por meio de uma linguagem codificada e hermética (isto é, acessível somente a uma elite esclarecida) para fins de dominação econômica e política. O digital, a linguagem, a tecnologia sobrepondo o analógico, o sensual, a ciência.

Por isso Tesla, como um dos últimos cientistas alquímicos, pagou seu preço: morreu em 1943, solitário em um quarto de um hotel onde morava em Nova York. Financeiramente quebrado e na companhia de um bando de pássaros, que considerava seus únicos amigos. E seu nome jogado na obscuridade e banido da história da Física, apesar da sua mais de 700 patentes registradas em equipamentos diversos que foram surgindo como decorrência das pesquisas sobre o maior propósito: a energia livre para todos.

Postagens Relacionadas:

sábado, agosto 21, 2010

Filme "A Origem": Nolan cai sob o fascínio das neurociências

Apesar da embalagem gnóstica (questionamentos sobre a natureza do real, os sonhos como um mundo paralelo, e personagem feminino que exorta o protagonista a despertar do sono da realidade) "A Origem" (Inception, 2010) de Christopher Nolan é extremamente reacionário ao fazer a apologia da engenharia do espírito das neurociências. O simbolismo dos sonhos substituído pela cartografia invasiva da mente.

É sabido que nos EUA a Psicanálise freudiana não goza de credibilidade científica. Conceitos como psiquismo e inconsciente são ignorados por não serem científicos, sem comprovação empírica. Discutir os sonhos e desejos humanos a partir da sexualidade e das relações infantis com a boca e excrementos é bizarro demais para o puritanismo norte-americano.

A cultura norte-americana é mais prática: se Freud pretendia analisar o simbolismo dos sonhos, o imaginário tecnológico atual pretende fazer uma cartografia e topologia dos sonhos. Muito mais prático, como bem comprovam as neurociências e o neuromarketing. Símbolos são filosóficos demais, enquanto uma cartografia e uma topologia é muito mais eficaz para apontar caminhos para inserir ideias nas mentes.

“A Origem” (Inception, 2010) comprova essa agenda tecnológica. Embora a narrativa do filme ocorra nos sonhos, nenhuma vez ouvimos a palavra inconsciente. Ela é substituída pelo genérico conceito de subconsciente, expondo essa matriz do pragmatismo neurocientífico.

Embora a princípio "A Origem" pareça ser um filme gnóstico, esotérico ou “filosófico”, tal como “Matrix”, ele tem um profundo sentido pragmático: a exploração do último refúgio do indivíduo (a mente, os sonhos) no invasivo mundo atual dos interesses corporativos (marketing, publicidade, fusões, aquisições etc.).

Embalagem Gnóstica

A narrativa de “A Origem” utiliza muitos elementos e tiradas dos filmes gnósticos, atribuindo uma roupagem “séria” à estória, dando a entender ao público que estamos diante de profundos insigths filosóficos. Por exemplo, quando os protagonistas vão para Mombasa recrutar um farmacêutico especialista em drogas pesadas para auxilia-los na missão, encontram em um porão dezenas de pessoas adormecidas. Elas vão para lá diariamente para viverem seus sonhos como uma realidade paralela. “Elas vêm aqui não para dormir, mas para despertar”, diz o responsável pelo local. Evidente tirada gnóstica que lembra as questões do personagem Morpheus no filme “Matrix”. Mas os protagonistas estão naquela farmácia de manipulação menos para discutir a natureza filosófica ou místicas dos sonhos, mas para usar pragmaticamente as drogas para resolver os problemas corporativos do cliente de Cobb (Leonardo Di Caprio).

Ou ainda a personagem Mal, a falecida esposa de Cobb. Aparentemente ela representa o personagem mítico gnóstico de Sophia, ao alertar Cobb sobre a natureza fictícia da realidade, apelando para que seu marido desperte. No sonho está a realidade e a realidade é uma ilusão! Ela constantemente fala para Cobb “retornar para casa” com ela, ou seja, retornar a uma origem idílica perdida durante o sono da realidade. Ela fala para Cobb: “você não se sente atormentado, perseguido pelo mundo por empresas anônimas?” Uau! Parece até que estamos diante das tramas gnósticas de Philip K. Dick! A personagem feminina que vai conduzir o protagonista para o despertar, como no filme O Pagamento (Paycheck, 2003).

Puro engano. Mal não passa de projeção do subconsciente de Cobb, originado pelo sentimento de culpa pela morte da esposa. Tal como nas terapias baseadas em neurociências (PNL, Cientologia etc), ele apenas quer deletar a culpa da sua consciência. Toda a aventura dos protagonistas nos diversos níveis dos sonhos em inserir (inception) a semente de uma ideia na mente de uma pessoa por interesses corporativos, servirá apenas para resolver os problemas de Cobb com sua consciência: deletar a projeção subconsciente da culpa.

O Reacionarismo de "A Origem"

Por isso, “A Origem” é um filme extremamente reacionário. Comparado com filmes como “Brilho Eterno de uma Mente Sem lembranças” (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004), O Pagamento (Paychek, 2003) e Vanilla Sky (Vanilla Sky, 2001), “A Origem” glorifica as tecnologias neurocientíficas que querem basear a felicidade no esquecimento. Se nos filmes gnósticos há a denúncia da secreta aliança da tecnologia servir aos interesses que nos aprisionam a uma realidade por meio do esquecimento, em “A Origem” temos a apologia da eficácia das tecnociências.

Se em “Brilho Eterno”, “O Pagamento” e “Vanilla Sky”, os personagens femininos Clementine, Rachel e Sofia são peças-chave para o despertar (a gnose) do protagonista, em “A Origem” a parsonagem Mal é a mera projeção subconsciente da culpa. Com a mesma tecnologia que serve os interesses corporativos, ele “cura” a si mesmo eliminando a culpa dos seus sonhos.

Isso é surpreendente, já que Christopher Nolan vem de autênticos filmes de questionamentos gnósticos da realidade como “Amnésia” (Memento, 2000) e “O Grande Truque” (The Prestige, 2006 com a participação do gnóstico pop David Bowie como o misterioso cientista NiKolas Tesla).

Se em "Brilho Eterno" toda a tecnologia que quer manipular os sonhos e memórias cai diante da irrupção do insconsciente como a única resistência que o indivíduo ainda possui para enfrentar os interesses corporativos, em “A Origem” isso desaparece para dar lugar a um subconsciente que aparece como mera disfunção ou obstáculo para a aventura dos protagonistas.

Se em “Vanilla Sky” e “Brilho Eterno” as tecnologias da engenharia do espírito (neurociências) são tematizadas criticamente ao ponto da ironia e ridicularização, em “A Origem” elas são enaltecidas (as engenhosas descrições da utilização das arquiteturas impossíveis de Escher nos sonhos – paradoxos, loopings etc.) e vendidas ao espectador como instrumentos para a felicidade de uma vida sem culpas.

Para a psicanálise freudiana a questão sonho é simbólica, isto é, o conhecimento das chaves que abrem as portas para resgatarmos aquilo que nos foi esquecido pelos mecanismos represssivos da realidade. Mas para as neurociência o sonho é uma simples questão de cartografia e topografia: um mapa de associações mentais para mais facilmente deletarmos as disfunções que nos incomodam.

Assim como no neuromarketing onde colocam-se eletrodos na cabeça de um consumidor prototípico para mapearmos as reações mentais diante de peças publicitárias.

Por que esse retrocesso em Christopher Nolan? Em “Amnésia” ele nos apresentou brilhantes e gnósticos insigths sobre a natureza da percepção, memória e realidade e em “O Grande Truque” um brilhante cenário das origens da tecnologia moderna num ambiente histórico (virada de séculos XIX-XX) onde ciência, misticismo e magia se confundiam. Talvez Nolan tenha se rendido ao fascínio pelas neurociências que, afinal, oferecem um modelo simplificado, visual (cinematográfico) e muito mais pragmático do que as complicadas interpretações simbólicas. Projeções subconscientes com armas na mão e o inconsciente traduzido como cofres dentro do qual guardamos nossos segredos e depois jogamos fora a combinação são imagens muito mais convincentes e compreensíveis. “A Origem”, assim como as neurociências, não quer descobrir a combinção, mas apenas destruir o cofre.

Portanto, o filme apresenta uma aparência gnóstica por supostamente ter profundos questionamentos filosóficos ou existenciais sobre a natureza da realidade. A brilhante e complexa narrativa (marca dos filmes de Nolan) de sonhos dentro de sonhos e o final ambíguo (que leva o espectador a questionar o próprio ponto de partida do filme – onde termina o sonho e começa a realidade?), marca da ironia narrativa dos filmes gnósticos, estão em “A Origem” como uma embalagem atraente para seduzir públicos “cabeças”. Mas o seu interior é extremamente reacionário e sintonizado com a agenda tecnognóstica da glorificação das engenharias do espírito.

Ficha Técnica:
  • Título: A Origem (Inception)
  • Diretor: Christopher Nolan
  • Roteiro: Christopher Nolan
  • Ano: 2010
  • Elenco: Leonardo Di Caprio, Joseph Gordon-Levitt, Ellen Page, Tom Hardy.
  • Produção e Distribuição: Warner Bros.
  • País: EUA
Postagens Relacionadas:

domingo, agosto 08, 2010

Cães e Arquétipos: a Ad-Gnose em Ação

Por serem registros mnemônicos da espiritualidade e da Luz da espécie, os arquétipos naturalmente aspiram à transcendência. Mas a Ad-Gnose (Advertising+Gnose), como toda a indústria do entretenimento, as captura e as confina dentro da instrumentalidade comercial. Um exemplo prosaico da ação da Ad-Gnose é o novo vídeo publicitário de uma marca de ração para cães.

Em posts anteriores abordamos o conceito de Ad-Gnose para indicar a nova fase que a Publicidade está entrando onde, paradoxalmente, o produto tende a desaparecer dos anúncios, transformando-o muito menos em algo para ser adquirido do que ser experimentado como evento, jornada, descoberta ou renovação pessoal.

Vimos que as técnicas de convencimento e persuasão em Publicidade passaram por diversas fases (táticas psicológicas, comportamentais, motivacionais, subliminares, psicanalíticas etc.), mas, em todas elas, estava implícito um imperativo: “Aqui está o produto. Agora compre-o!” Com a Ad-Gnose, toda essa verdadeira engenharia espiritual tem um salto qualitativo: separação entre o desejo e a aquisição imediata do produto, para transformar o ato do consumo, per si, num evento de autoconhecimento e renovação espiritual ao instrumentalizar todo um repertório de arquétipos do inconsciente coletivo da espécie humana.

Claro que estamos sendo irônicos ao usar nesse conceito a palavra “Gnose”, já que a suposta renovação espiritual proposta pelo consumo é a tradução das experiências do sagrado, do religioso e da transcendência dentro paradigma da Auto-Ajuda.

A engenharia espiritual da Ad-Gnose vai além das várias camadas existenciais do indivíduo (percepção, comportamento, subconsciente, psiquismo e inconsciente) para atingir a última dimensão: o próprio espírito com a instrumentalização dos arquétipos.

Em Jung os arquétipos são símbolos do inconsciente coletivo, símbolos atualizados por diversos meios (misticismo, religião, lendas, mitos até chegar à forma mais mística da publicidade contemporânea) onde são aglutinadas aspirações, desejos e grandes questões metafísicas e existenciais da espécie humana.

Como já apontou Victoria Nelson (veja The Secret Life of Puppets. Cambridge: Havard UP, 2001), arquétipos são como instrumentos mnemônicos da suprema arte da memória. Em sociedades antigas, pré-literárias, toda uma série de técnicas orais (lendas, fábulas, ritmo, rimas, repetição etc.) serviam como um repositório do conhecimento humano. Os arquétipos pertencem à sagrada arte da mnemotécnica, guardando na biblioteca do inconsciente coletivo as questões mais profundas da espécie. Num sentido gnóstico, símbolos das reminiscências sobre nossas origens e nosso exílio nesse cosmos.

O funcionamento da Ad-Gnose

Mas na prática qual o mecanismo de funcionamento da Ad-Gnose? Vamos nesse post fazer um rascunho de um método de análise do discurso publicitário dentro da Ad-Gnose. Se por um ponto de vista gnóstico a indústria do entretenimento necessita extrair dos indivíduos sua “espontaneidade” (Partículas de luz ou a energia espiritual vital, reminiscência das nossas verdadeiras origens) para por em funcionamento as estruturas-clichês ocas e sem vida, esse rascunho de método que traçaremos aqui tem como objetivo descrever o momento em que essas estruturas-clichês capturam e confinam esses elementos espirituais, representados nos arquétipos.

Podemos considerar os diversos níveis semióticos das técnicas de convencimento e persuasão do discurso publicitário como formas-pensamento vazias, sem espírito ou energia própria. No nível perceptivo ou comportamental imediato elas até podem sensibilizar o indivíduo, motivando nele respostas imediatas, subliminares ou comportamentais. Mas são de curta duração. Não há sensibilização, fixação ou elaboração.

Partindo para um didatismo semiótico podemos subdividir estas técnicas da seguinte maneira:

a) Nível das estruturas-clichê: Recursos gráficos, psicodinâmica das cores, fotogenia, packshot, lettering, roteirização. Ou seja, todo um aspecto da sinalização pura, recursos que atingem os aspectos mais instintivos ou comportamentais.

b) Nível Retórico: a utilização do repertório das figuras de retórica clássicas, aristotélicas (metáforas, hipérboles, oximoros etc.). É o nível da persuasão pura através da estética da argumentação do discurso. Depois da sinalização imediata (chamar a atenção), transforma-se em informação, discurso, argumentação.

Vamos pegar um exemplo bem prosaico, como o novo comercial da ração para cachorros Pedigree (título "Vida" da Agência Lara/TBWA e da produtora Paranoid BR). Nesse simples vídeo publicitário podemos encontrar todos os elementos da Ad-Gnose em funcionamento, principalmente o aspecto arquetípico.

De imediato, vemos os aspectos clássicos da fotogenia ou videogenia publicitária: um cão (golden retriever) correndo em slow motion, cores em tons pastéis, trilha acústica em tom folk, os longos pelos do animal em movimento ao vento. São aspectos clichês (o tom pastel associado ao primaveril, matinal, a raça do cão retriever etc.). Sobreposto a esse nível, temos o discurso retórico. A comparação entre a motivação de correr para o humano e para o cachorro segue o modelo da figura de retórica chamada de Sístrofe, técnica de suspensão do sentido onde uma série de características é enumerada sem sabermos com precisão sobre do que se trata o discurso.

Embora sejam recursos engenhosos, esteticamente bonitos, envolventes e emocionantes, são, por curto prazo, vazios. Seu efeito se esgota logo depois de encerrado o filme publicitário porque ainda falta um elemento do espírito que ainda não consideramos: o arquétipo.

Vejamos o que diz o áudio desse vídeo publicitário:
“Tem gente que corre por esporte, para superar os adversários. Ou para não se atrasar. Mas nós temos mais sorte. Somos cachorros. Não precisamos de um motivo para correr. Seu cão tem muita vida pela frente. Só falta dar qualidade para ela.”

Esse discurso instrumentaliza o arquétipo do Inocente: um desejo por pureza, simplicidade. A aspiração pelo lúdico e idílico, quebrar a ordem do princípio do desempenho (eficácia, eficiência e performance) que governa nossas vidas. Injeta nas formas-clichês vazias do discurso publicitário a reminiscência da aspiração pela transcendência das inautênticas normas sociais que aprisionam o espírito.

Mas se esse é o momento de verdade desse filme publicitário, essa reminiscência deve ser confinada nos estritos objetivos comerciais. Duas técnicas são usadas para confinar o arquétipo: primeiro, a resignação: os cães têm “sorte” de correr sem motivos. Implicitamente quer dizer que os humanos não têm tal sorte. Resignamo-nos a correr por desempenho, por metas, sem o prazer lúdico dos cães.

Segundo, a inversão fetichista. Projetamos nos cães a humanidade perdida (qualidade de vida, ludismo, pureza, inocência etc.). O arquétipo é vivenciado por delegação, através da vida do cachorro. Nele projetamos as aspirações por uma vida que, resignadamente, desistimos de buscar. O cão se torna progressivamente mais humano do que o seu próprio dono.

O filme Marley e Eu (Marley & Me, 2008), é o exemplo flagrante dessa resignação e inversão fetichista. O filme termina com a lição de que o cão é o melhor amigo do homem por, paradoxalmente, ser mais humano do que seus donos (“um cão não se importa se você é rico ou pobre, um cão não vê utilidades em casarões, roupas de grife... um graveto serve para ele”, conclui o protagonista no final do filme). Resignação pela humanidade perdida e projeção da aspiração representada no arquétipo do Inocente em um animal: esses são os dois momentos em que a “espontaneidade”, o arquétipo ou a energia espiritual são capturados e confinados na instrumentalidade publicitária.

Por serem registros mnemônicos da espiritualidade e da Luz da espécie, o arquétipo naturalmente aspira à transcendência. Mas a Ad-Gnose, como toda a indústria do entretenimento, as captura e as confina dentro da razão instrumental que, para nosso azar (o cachorro tem mais sorte!), não podemos escapar: continuamos a correr para superar os adversários e para não chegar atrasados.

Vídeo "Vida"



Ficha Técnica:
  • Título: "Vida"
  • Agência: Lew, Lara\TBWA Publicidade Ltda.
  • Cliente: Másterfoods Brasil Alimentos Ltda.
  • Produto: Pedigree
  • Criação: Pedro Rosa e Roberto Kilciauskas
  • Direção de Criação: Jaques Lewkowicz, André Laurentino, Manir Fadel e Luciano Lincoln
  • Produção: Paranoid Br
  • Direção do Filme: Luis Carone
  • Locutor: Hilton Raw
  • Ano: 2010
  • País: Brasil

terça-feira, agosto 03, 2010

Morte e Ressurreição em "Riverworld"

Apesar dos evidentes problemas de produção e roteiro, ao lidar com clássicos elementos da simbologia gnóstica Riverworld (piloto de uma possível série) torna-se um candidato a sucessor da série Lost. Morte/ressurreição é o tema central, acompanhado do simbolismo gnóstico de Sophia e na cisão cabala/alquimia na busca pela saída do pesadelo que representa o mundo de Riverworld.

Exibido pelo SciFi Channel, Riverworld é a adaptação, por Robert Hewitt Wolfe (Star Trek: Deep Space 9, Andromeda e The Dresden Files) de uma série de livros de ficção científica escritos por Phillip José Farmer. A história gira em torno de um jornalista fotográfico, Matt, e sua namorada Jessie. Após morrerem em um atentado terrorista numa casa noturna são transportados para o mundo misterioso de Riverworld, local para o qual as pessoas que já viveram na Terra são levados, em uma espécie de ressurreição.

Em Riverworld as pessoas acordam mais jovens e livres de qualquer doença ou problemas genéticos. Sem envelhecer, elas são capazes de se regenerar. Lá estão as almas de todos aqueles que um dia já passaram pela Terra em toda a História. Um lugar que é uma espécie de segunda chance ou talvez uma espécie de purgatório.

Em Riverworld encontramos desde anônimos até grandes personagens históricos que cruzam o caminho do protagonista Matt, tais como o escritor e romancista norte-americano Mark Twain ou o conquistador e explorador espanhol Francisco Pizarro. Ao despartarem nesse mundo (as pessoas acordam submersas e desorientadas num rio para emergirem e nadarem até às margens), veem-se, involuntariamente, no meio de uma guerra travada por dois grupos de seres: os chamados “Salvacionistas” que querem destruir aquele mundo e libertar todas as almas, e o outro grupo que quer manter o status quo. Com seus poderes, esses seres (com rostos azuis em trajes de monge) interferem no curso dos acontecimentos, criando uma espécie de jogo de xadrez.

Como afirma Jeff Kripal (professor de Estudos da Religião da Rice University, Houston Texas), os comic books e livros de ficção científica se tornaram os evangelhos pós-modernos do Gnosticismo (sobre isso clique aqui e leia "The Postmodern Gnosticism & Gnosis" do Aeon Byte Gnostic Radio).

Descontando os flagrantes problemas de roteiro e produção (produção de baixo orçamento, muitos diálogos clichês e desnecessários, narração em vários momentos arrastada etc.), a estória de Riverworld é repleta de clássicos elementos míticos do Gnosticismo.

Para começar, a natureza ambígua do local onde acontece a narrativa (Riverworld) é ambígua: será um purgatório de almas? Um outro planeta? Almas humanas aprisionadas por ETs? Ou um simples pesadelo coletivo? Essa ambiguidade dá à estória um caráter de fábula, uma fábula gnóstica sobre o homem aprisionado num cosmos, servindo de joguete numa batalha entre deuses que não o amam. Onde nem a morte é saída. Após morrer, quase que imediatamente é ressuscitado para retornar ao jogo.

Vemos, então, após a morte ou um suicídio desesperado de alguém (falam em “suicídio express”), uma vasta região onde corpos em estado de dormência são mantidos como que depositados (visual que lembra Matrix) para serem despertados pelos seres que governam Riverworld, de acordo com suas conveniências táticas no jogo.

Talvez esse seja o tema mítico gnóstico principal explorado pelo filme: a visão desesperançada da morte e da reencarnação. Como já discutimos em postagem anterior, o Gnosticismo vê a reencarnação como uma perversa estratégia do Demiurgo para manter a humanidade aprisionada num círculo infinito. Na morte/reencarnação não há evolução, aprendizado. Há esquecimento, condenado a recomeçar sempre do zero.

Mas em Riverworld, esse mito gnóstico da reencarnação como prisão é levado ao paroxismo e desespero. Sthephen King em um dos seus livros de suspense e terror dizia que o inferno é a repetição. Pois bem, é exatamente isso que temos no filme: não há, pelo menos, a ilusão de recomeçar, a esperança de um novo dia. Todos são ressuscitados para recomeçarem do ponto em que morreram. O jogo não tem fim.

No gnóstico filme de Alex Proyas, Cidade das Sombras (Dark City), esse mesmo tema foi explorado: ETs que aprisionam seres humanos em uma cidade fake para, a cada meia-noite, serem colocados em estado de dormência para que as identidades sejam trocadas, com o objetivo de encontrar a essência humana no transitório.

Na mitologia gnóstica, um personagem feminino é de vital importância na trajetória humana no cosmos hostil: Sophia. Um dos mais importantes aeons na mitologia gnóstica essa personagem é explorada nos filmes gnósticos em três aspectos: como aquela que decaiu sob o jugo do Demiurgo, como aquela que desperta no protagonista a necessidade da gnose e como aquela que, secretamente, doa seu amor e sabedoria aos homens ao contribuir com importantes padrões arquetípicos à Criação.

Em Riverworld a personagem Jessie é aquela que motiva Matt a seguir em frente e lutar naquele mundo estranho. A personagem cumpre os dois primeiros aspectos enumerados acima: ela cai sob o jugo do “vilão” Burton (torna-se sua namorada, após perder as esperanças de encontrar Matt), que quer, a todo custo, mandar pelos ares aquele mundo através de uma bomba com potencia nuclear. Mas a busca de Matt por Jessie é a chave para a compreensão da natureza daquele mundo. Simbolicamente, fará o protagonista ir ao encontro da “nascente” do rio cujas almas vivem aprisionadas às suas margens.

Por fim, a ambiguidade do personagem Burton. Aparentemente é o “vilão” (utiliza-se de métodos violentos para conseguir seu objetivo), mas, no final, ele pretende destruir aquele mundo para libertar todas as almas humanas aprisionadas. Explodir tudo por meio de uma espécie de bomba atômica não parece ser a melhor das soluções: ele, na verdade, pretende um “suicídio express” final, sem volta, rompendo com o inferno da repetição. É a proposta de um gnosticismo cabalístico: transcender a alma pela aniquilação da matéria, sem redimi-la.

Todo gnosticismo nutre um ódio pela matéria, ao vê-la como uma prisão criada pelo Demiurgo para aprisionar a Luz. Porém, a forma de trasncendê-la é controversa: de um lado o gnosticismo cabalístico (um atalho rápido para a fuga do espírito) e, do outro, o gnosticismo alquímico (a transcendência somente é possível após redimir a matéria, isto é, resgatar nela os elementos sagrados que auxiliem a gnose).

Riverworld, ao lidar com todos esses simbolismos gnósticos, lembra essa dicotomia cabala/alquimia ao opor os personagens Matt/Burton: o primeiro quer resgatar Jessie/Sophia daquele cosmos. O segundo, só quer mandar tudo pelos ares.

Ficha Técnica:
  • Filme: Riverworld
  • Diretor: Stuart Gillard
  • Escritor: Phillip Jose farmer (livro) e Robert Wolfe e Randall Badat (roteiro)
  • Gênero: Drama/Sci-Fi
  • Elenco: Tahmoh Penikett, Mark Deklin, Peter Wingfield, Jeananne Goossen.
  • Ano: 2010
  • Produção: Reunion Pictures, Riverworld Productions
  • Distribuição: SyFy TV
  • País: EUA

Trailer Riverworld


Postagens Relacionadas:

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review