Em 15 de julho de 1974, ao vivo, no Canal 40
de Sarasota, Flórida, a jornalista investigativa Christine Chubbuck leu uma
breve nota. Sacou um revólver, colocou atrás da orelha e puxou o gatilho. O
filme "Christine" (2016) busca o porquê esse histórico suicídio diante das
câmeras procurando fugir dos tradicionais clichês: depressão, solidão,
frustração profissional diante das pressões do sensacionalismo televisivo,
machismo e misoginia que dominavam as redações nos anos 1970 etc. “Christine” se desvia dessas armadilhas narrativas ao privilegiar uma abordagem mais existencial
e gnóstica: há uma constante e insuperável sensação de deslocamento e alienação
de uma personagem que não encontra lugar nesse mundo, muito além de ideologias,
profissão e vida pessoal. Christine sempre foi uma Estrangeira mesmo nos
ambientes mais familiares porque sempre pressentiu que estava em um jogo cujo
propósito ela nunca entendeu. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
Naquele dia o telejornal começou com a tradicional
“escalada”: três notícias nacionais e uma sobre um tiroteio em um
restaurante local. Oito minutos depois, ela entrou no ar. Tirou os longos
cabelos do rosto, deu a volta nos papéis que segurava nas mãos e mordeu
nervosamente os lábios.
Então a apresentadora disse: “Seguindo a
política do Canal 40 de brindar seus telespectadores sobre as últimas notícias
de sangue e vísceras a cores, vocês estão prestes de ver, em primeira mão, uma
tentativa de suicídio”. Mantendo sua voz firme, sacou uma arma de sua bolsa,
colocou atrás da orelha e puxou o gatilho.
Os cabelos da apresentadora voaram com uma
rajada de vento e o rosto ficou todo contorcido. Seu corpo caiu violentamente
para a frente. A transmissão foi encerrada nesse ponto.
Isso aconteceu em 15 de julho de
1974. A apresentadora era a jornalista investigativa Christine Chubbuck do
canal WXLT-TV Channel 40 de Sarasota, Flórida, no tradicional programa matutino
Suncoast Digest.
Escrito por Craig Shilowich e
dirigido por Antônio Campos (filho do
jornalista Lucas Mendes, apresentador do programa Manhattan Conection, Globo News), o filme independente Chistine (2016) tenta escavar os motivos
dessa tragédia transmitida ao vivo. Não é uma tarefa fácil, sem cair nos
tradicionais clichês sobre a forma como o cinema vê o Jornalismo e os
jornalistas – corruptos, alcoólatras ou idealistas e engajados.
Christine Chubback em 1974 |
O que se sabe a partir de artigo de
jornal da época (clique aqui) ou pelo documentário Kate Play Christine (2016) é que ela era
aparentemente infeliz em sua vida amorosa (era virgem aos 29 anos e nenhum
amigo íntimo), deprimida e profundamente frustrada com a carreira. Suas ideias
sobre jornalismo investigativo, muito mais discursivas e intelectuais, eram
sempre despedaçadas em favor do viés sensacionalista que a emissora queria
adotar para elevar a audiência em um período onde a mídia era dominada pelo
machismo e misoginia.
Christine: a perfeita Estrangeira
Christine poderia transformar a tragédia num
drama banal sobre mais uma vítima moderna do transtorno bipolar. Ou então, num
enfoque feminista, a vítima do machismo dominante nas redações jornalísticas.
Ou ainda, num enfoque mais politizado, a revolta de uma profissional idealista
contra o sensacionalismo e manipulação das notícias. Ou quem sabe, partir para
um retrato narcisista, de auto-agressão
e excesso de auto-indulgência, como fez documentários como Control (2008) sobre outro suicida, o vocalista da banda pós-punk Joy Division, morto em 1980.
De forma inteligente, Christine foge de todas essas
armadilhas. A performance memorável da atriz Rebecca Hall (que injustamente não
teve indicação ao Oscar) sugere todas essas explicações. Mas apenas sugere, como
se quisesse jogar com todos esses clichês e as nossas expectativas.
Mas o filme escolhe um caminho
amargo, estranho: nenhum desses caminhos explicativos consegue dar conta da
tragédia de Christine. Por isso a narrativa transforma a protagonista numa
perfeita estrangeira – ela constantemente está deslocada, alienada e estranha
em todos os ambientes onde deveria estar à vontade: em casa com sua mãe, na
redação da emissora etc.
Christine
até esboça
críticas aos sensacionalismo do jornalismo, mas apenas de passagem. Ela parece
apenas querer fugir dali. E a visita do proprietário de uma rede de TV para
escolher novos profissionais trabalhar no núcleo da rede, em Baltimore, é a
última esperança.
O filme Christine é um exemplo de como o viés gnóstico transpassa gêneros e
temas no cinema. Para além do drama político, ideológico ou psicológico,
Christine imprime um enfoque existencial ou mesmo metafísico: a protagonista
parece viver em um não-lugar, um nowhere,
em algum tipo de exílio. Nada esgota ou explica o seu drama pessoal. Por que?
O Filme
O filme começa com Christine tendo
os primeiros atritos com o chefe de redação, Michael (Tracy Letts) do Canal 40
– a repórter de campo apresenta uma pauta sobre lei do zoneamento. Mas seu chefe pensa apenas na audiências e em
matérias de cunho mais “humano”: violência, acidentes, incêndios etc.
Nas horas vagas Christine é
voluntária em um hospital para crianças especiais onde encena um teatro com
fantoches. E em casa, vivencia atritos com sua mãe divorciada e tranca-se no
seu quarto onde coloca discos de John Denver na vitrola, enquanto ouve,
clandestinamente, num rádio-escuta as frequências de transmissão da polícia
buscando sempre novas pautas.
Nessa rotina de frustração e
alienação tudo de repente muda com uma esperança: o chefe da rede está na
cidade procurando jornalistas para iniciar um novo projeto em Baltimore. É a
chance de apresentar seu trabalho em uma redação formada por jornalistas
medíocres como o âncora George (Michael Hall), um ex-jogador de futebol
americano; e Andréa (Kim Shaw), uma glamorosa repórter esportiva. Além de
Steve, um meteorologista nerd e desengonçado (Tim Simons).
Christine tenta fazer de tudo para
mudar seu estilo de reportagem, tentando conciliar o enfoque investigativo com
o “humano”, esperado pela rede da emissora.
Tudo parece piorar com o stress e
uma dor abdominal, um enorme cisto em seu ovário. Se fizer a cirurgia, jamais
poderá engravidar – o que seria mais uma frustração aos seus 29 anos.
Guinada existencial
Frustração profissional, depressão,
narcisismo e machismo são temas apenas sugeridos para explicar a tragédia de
Christine. A guinada para o enfoque mais existencial começa quando a atração
afetiva que sente pelo âncora George transforma-se em um convite para jantar.
Lá saberá que George foi um ex-atleta drogado e que um grupo de apoio de
Análise Transacional o salvou. George leva Christine a uma reunião do grupo,
para também ajuda-la.
Nesse momento entramos em um
familiar terreno do existencialismo gnóstico: assim como no filme Show de Truman, onde se tenta
terapeutizar o protagonista para que abandone a paranoia e fantasias de fuga da
cidade fake de Sea Heaven, também
tentarão “ajudar” Christine a “curar” sua “depressão” – na verdade, a típica
melancolia gnóstica: sentir-se como um Estrangeiro em um lugar inautêntico e
aparentemente familiar.
Pelo ponto de vista da filosofia
gnóstica de Mani (profeta persa do século III) o mundo é essencialmente
dualista e mau. Mas não no sentido moral, mas intrínseco: há uma luta entre o Bem
e o Mal, sempre reversível no qual um conduz ao outro como as duas faces de uma
mesma moeda. Nunca haverá conciliação, mas simultaneamente dualidade e
reversão.
A última esperança de Christine era
Baltimore, a cabeça da rede, mais cosmopolita e próxima de Nova York. Lá,
acreditava, poderia levar seus conceitos de jornalismo investigativo, longe do
sensacionalismo de uma emissora local da Flórida.
Mas tudo vem abaixo quando descobre
que George e a glamorosa Andréa foram os escolhidos pelo chefe da rede.
O Bem e o Mal
Qual a saída? Ser “lobotomizada” por
um grupo de apoio transacional e seguir a trilha de George ou cair fora desse
mundo?
Todo o simbolismo de Christine é o Mal intrínseco gnóstico: o
cisto que crescia dentro da protagonista, o lar com uma mãe que mais parecia
uma hippie alienada que a tratava como fosse ainda uma criança, o cancro
sensacionalista que, na época, se expandia pelas redes de TV.
Essa reversibilidade entre Bem e Mal
(o homem é um Estrangeiro porque o Bem e o Mal, Deus e o Diabo, jogam um jogo
do qual o homem está alheio) ironicamente Christine performou diante das
câmeras – se vocês querem o sensacionalismo (o Mal que cresce em algo
aparentemente positivo que são as comunicações) então eu os darei...
A máxima ironia: uma pessoa boa
performou o próprio Mal diante das câmeras.
Talvez, esse seja o suicídio mais
autêntico para as câmeras. Não tanto por ter sido realista – afinal foi
dirigido para as câmeras, resultado naquilo que diversos pesquisadores chamam
de “pseudo-evento” (Umberto Eco – clique aqui) ou “não-acontecimento
(Baudrillard – clique aqui). Mas por ter sido irônico
e jogar com a reversibilidade entre o Bem e o Mal.
Ao contrário de outro suicídio
famoso para as câmeras, do secretário da Pensilvânia Budd Dwyer em 1987, com um
tiro na boca em uma coletiva para a TV – condenado por corrupção, o político se
auto-imolou diante das câmeras para provar inocência com o próprio sacrifício.
A diferença? O ato de Christine foi
tão subversivo em 1974 que as imagens foram imediatamente sequestradas pela
rede de TV e, até hoje, trancadas a sete chaves. Ao contrário do vídeo de Budd
Dwyer, disponível na Internet como mais um show sensacionalista. Justamente um
dos motivos pelos quais Christine teve que morrer.
Ficha Técnica |
Título: Christine
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Diretor: Antônio Campos
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Roteiro: Craig Shilowich
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Elenco: Rebecca
Hall, Michael C. Hall, Tracy Letts, Kim Shaw, Timothy Simons
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Produção: BorderLine
Films, Great Point Media
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Distribuição: Great Point Media
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Ano: 2016
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País: EUA, Reino Unido
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