terça-feira, março 14, 2017

Tautismo da Globo vê na virada do Barça lição motivacional para brasileiros


O final de domingo é um momento reconhecidamente depressivo para os telespectadores que repentinamente voltam a lembrar da segunda-feira. Nesse momento, a TV ataca com vídeos de pets engraçados e acidentes domésticos, ou, como no caso da Globo, também vídeos “motivacionais”. Como na introdução do “Fantástico” desse domingo na qual a virada histórica do time do Barcelona na “Champions League” serviu de mote para reunir várias outras histórias para provar que “o impossível acontece” e que “jamais podemos desistir” como fossem lições de moral para todos enfrentarem o baixo astral da vida e do próprio País. Ao sugerir que histórias sobre atletas e profissionais de alto nível poderiam ser fontes de inspiração moral e motivacional para os telespectadores comuns, revela a natureza da linguagem televisiva: o discurso metonímico ou “lateral” que vem se tornando crônico com o crescimento da doença do “tautismo” (autismo + tautologia) na grande mídia. A consequência é a “motivação” através do esquecimento e despolitização do telespectador, além da introjeção da culpa pelas mazelas do cotidiano.

Era um final de tarde de um sábado qualquer perdido nos anos 1990. Minha cunhada, à época adolescente, voltava de uma tarde no shopping com as amigas do colégio. “O que fizeram a tarde inteira no shopping?”, perguntei para puxar assunto.

“Fomos ao cinema, depois passamos por uma loja para comprar umas roupas e depois demos um tempinho na praça de alimentação para comer um lanche e acabei encontrando com meu namorado”, ela disse.

“E então, o que achou do filme?”, comecei o interrogatório. “Legal!”, respondeu... “E a loja de roupas, como era?”... “Legal!”, respondeu de novo... “E como foi na praça de alimentação?”... “Legal!”, respondeu da mesma maneira.

Depois, fiquei pensando: três experiências qualitativamente diferentes (assistir ao filme, comprar roupas e encontrar o namorado) foram definidas com a mesma expressão “legal!”. Pobreza de vocabulário? Apenas jogou conversa fora?

Sintaticamente as respostas seguiram um mecanismo metonímico – um pensamento que se desloca horizontalmente, sem aprofundamento ou distinções semânticas. O que resulta num empobrecimento da percepção que transforma a cognição numa espécie de tábula rasa. A realidade parece ser periférica e superficial.

Acredito ser o reflexo de um tipo de pensamento midiático que se desloca lateral ou horizontalmente cuja lógica reduz realidades e experiências qualitativamente distintas a um mínimo denominador comum. Seria o reflexo da linguagem metonímica através da qual diariamente as mídias constróem sua visão de mundo.


Metonímia: da TV ao tautismo


Estudos clássicos de mídia como os do espanhol Jesús Gonzalez Requena (El Discurso Televisivo: espectáculo de la posmodernidad, 1988) já apontavam para essa natureza metonímica da linguagem televisiva – o discurso da TV ao mesmo tempo que fragmenta e descontextualiza, volta a reunir fatos e eventos em um fluxo metonímico infinito no qual gêneros televisivos, informação e comercial, ficção e realidade, remetem-se um ao outro. Em essência, um discurso auto-referencial.

 Como viemos discutido em seguidas postagens, a grande mídia (jornais, TV etc.), particularmente a TV Globo, cada vez demonstra sintomas de um tautismo crônico – “tautismo”, autismo + tautologia, conceito da Teoria dos Sistemas no qual a hipertrofia de um sistema cria um “fechamento operacional” – o sistema torna-se auto-referencial fechando-se ao mundo exterior. Ou melhor, os inputs do mundo exterior passam a ser traduzidos por meio de uma descrição que o sistema faz de si mesmo.

Nesse contexto, a linguagem metonímica (o pensamento lateral) tende a se expandir pela crônica auto-referencialidade, transformando-se em um liquidificador que reduz qualquer input (notícia, dado histórico, evento etc.) a um denominador comum que reforce determinada pauta interna.


O vídeo motivacional do “Fantástico”


Um flagrante exemplo dessa lateralidade que domina a visão de mundo tautista foi apresentado na introdução do Fantástico desse último domingo: antes da vinheta de apresentação do Fantástico, com a narração do apresentador Tadeu Schmidt, o programa apresentou um vídeo, por assim dizer, motivacional.

“Nossa história é feita de reviravoltas surpreendentes, e não faltam histórias para nos lembrar que sempre vale à pena lutar!”, conclui o apresentador depois de apresentar um desfile de “reviravoltas impressionantes”. Como não poderia deixar de ser, o destaque foi a virada do time do Barcelona na Champions League contra o PSG (6 a 1) com o gol da classificação feito no último minuto. Depois, um desfile de episódios de “reviravoltas” – “quando parece que tá tudo perdido, de repente tudo se encaixa e o impossível acontece...”.

O homem que cai num buraco no meio do deserto, fica com o braço preso e depois de cinco dias, sem conseguir chamar por socorro, corta o próprio braço para poder escapar; a tripulação da Apollo 13 fadada a morrer no espaço mas que superou os problemas no último instante e voltou para casa; o mergulhador que bateu a cabeça, ficou paralisado mas se salvou; o time do Vasco que virou um placar adverso de 3 a 0; o Grêmio que virou um jogo com quatro jogadores  a menos e fugiu do rebaixamento; e  a virada no futebol americano do “time do Tom marido da Gisele Bündchen” no último instante. Todos exemplos de que “jamais podemos desistir”.


Domingo é o dia do baixo astral


Sabemos que a programação de domingo da TV, e o próprio dia da semana, é depressiva. Basta ouvirmos a abertura musical do programa do Faustão ou a do Fantástico, para cairmos na real de que o domingo está morrendo e que amanhã é segunda-feira – voltam as pressões do trabalho (se você ainda tiver um...), as contas para pagar, os velhos problemas do dia-a-dia.

Principalmente no contexto atual no qual programas como o Fantástico, seguindo a atual pauta do jornalismo da emissora, está recheado com denúncias de corrupção, Lava Jato e o martelar insistente de que os políticos são ladrões e de que o País é uma merda... Baixo astral generalizado. Demais para um final de domingo!

Enquanto a Record usa vídeos de pets engraçados para elevar um pouco o ânimo, a Globo apresenta vídeos motivacionais, como nesse domingo. Motivação tautista baseada no pensamento lateral e metonímico, que lembra, por exemplo, a capa da revista Exame mostrando um feliz Mick Jagger e a questão: “O que você e ele têm em comum”. Para justificar a reforma da Previdência e demonstrar que, sim!, podemos trabalhar até o final da vida.

A longevidade de Jagger, milionário astro do rock, é metonimicamente deslocada para o brasileiro comum – você poderá ser como ele, desde que se “prepare bem”... apesar das perversas condições sociais de um país que conspira contra os próprios brasileiros.

Da mesma forma, o Fantástico fez um apanhado de diferentes histórias, de casos de naturezas tão diversas para, de forma auto-referencial (confirmar a própria pauta), juntar tudo num único denominador comum: mergulhadores, jogadores de futebol, astronautas etc.  

A generalização do pensamento metonímico


Em primeiro lugar, todos eles são profissionais muito bem pagos, onde a remuneração é proporcional ao risco que correm. E as “viradas” e “superações” são qualidades esperadas de profissionais tão bem treinados e especializados no que se predispuseram a fazer – enfrentar o jogo, o acaso, a sorte, o acidente etc. São episódios naturalmente esperados e treinados para serem enfrentados.

Até os esportes e diversões radicais, feitos para pessoas comuns, simulam situações como essas (a proximidade do acidente e da morte) para possibilitar a excitação pela descarga de adrenalina – bungee jump, base jump, cave diving, heli skiing etc. Os atletas e profissionais de alto nível são admirados não por supostas lições de moral que por ventura venham “motivar” ou “inspirar” nossas vidas, mas por um estilo de vida caracterizado pela excitação, adrenalina e imprevistos. Bem diferente da vida cotidiana.

Fechado em si mesmo, o pensamento metonímico midiático generaliza tudo ao “jamais podemos desistir” como lição de moral e motivação para o telespectador já deprimido com a proximidade das agruras do dia seguinte.

Mas o principal da linguagem tautista ou metonímica é a descontextualização e consequência decorrente: a despolitização.

Todos os casos citados pelo vídeo motivacional da Globo enfrentaram o acaso, o acidente e o jogo. Decorrências de uma realidade que não é regida pela causalidade, mas pelo acaso.

Bem diferente das mazelas cotidianas dos telespectadores, originadas em um contexto social e politicamente perverso que reproduz a desigualdade e a derrota – crise econômicas e desemprego, sem falar no horizonte negativo que se avizinha: perda de direitos trabalhistas, assistenciais e previdenciários.

Ao contrário, mazelas políticas e econômicas, estas sim, são regidas por causalidades e contextos bem definidos. Contextos sócio-políticos que o discurso tautista e metonímico esvazia para tentar motivar os telespectadores através do esquecimento – através da metonímia, reduzir ao mesmo denominador comum o acaso e o acidente de eventos esportivos com os infortúnios sócio-econômicos.

A mensagem ideológica “motivacional” é simples: a introjeção da culpa - se alguma coisa der errado a culpa é toda do telespectador. Afinal, não teve motivação suficiente para dar uma virada na vida como fiveram Messi, Neymar ou o homem que cortou o próprio braço.


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