O final de domingo é um momento
reconhecidamente depressivo para os telespectadores que repentinamente voltam a
lembrar da segunda-feira. Nesse momento, a TV ataca com vídeos de pets
engraçados e acidentes domésticos, ou, como no caso da Globo, também vídeos
“motivacionais”. Como na introdução do “Fantástico” desse domingo na qual a
virada histórica do time do Barcelona na “Champions League” serviu de mote para reunir
várias outras histórias para provar que “o impossível acontece” e que “jamais
podemos desistir” como fossem lições de moral para todos enfrentarem o baixo
astral da vida e do próprio País. Ao sugerir que histórias sobre atletas e
profissionais de alto nível poderiam ser fontes de inspiração moral e
motivacional para os telespectadores comuns, revela a natureza da linguagem
televisiva: o discurso metonímico ou “lateral” que vem se tornando crônico com
o crescimento da doença do “tautismo” (autismo + tautologia) na grande mídia. A
consequência é a “motivação” através do esquecimento e despolitização do
telespectador, além da introjeção da culpa pelas mazelas do cotidiano.
Era um final de tarde de um sábado qualquer
perdido nos anos 1990. Minha cunhada, à época adolescente, voltava de uma tarde
no shopping com as amigas do colégio. “O que fizeram a tarde inteira no
shopping?”, perguntei para puxar assunto.
“Fomos ao cinema, depois passamos por uma
loja para comprar umas roupas e depois demos um tempinho na praça de alimentação
para comer um lanche e acabei encontrando com meu namorado”, ela disse.
“E então, o que achou do filme?”, comecei o
interrogatório. “Legal!”, respondeu... “E a loja de roupas, como era?”...
“Legal!”, respondeu de novo... “E como foi na praça de alimentação?”...
“Legal!”, respondeu da mesma maneira.
Depois, fiquei pensando: três experiências
qualitativamente diferentes (assistir ao filme, comprar roupas e encontrar o
namorado) foram definidas com a mesma expressão “legal!”. Pobreza de vocabulário?
Apenas jogou conversa fora?
Sintaticamente as respostas seguiram um mecanismo metonímico –
um pensamento que se desloca horizontalmente, sem aprofundamento ou distinções
semânticas. O que resulta num empobrecimento da percepção que transforma a
cognição numa espécie de tábula rasa. A realidade parece ser periférica e
superficial.
Acredito ser o reflexo de um tipo de
pensamento midiático que se desloca lateral ou horizontalmente cuja lógica reduz realidades e experiências qualitativamente distintas a um mínimo
denominador comum. Seria o reflexo da linguagem metonímica através da qual
diariamente as mídias constróem sua visão de mundo.
Metonímia: da TV ao tautismo
Estudos clássicos de mídia como os do
espanhol Jesús Gonzalez Requena (El
Discurso Televisivo: espectáculo de la posmodernidad, 1988) já apontavam
para essa natureza metonímica da linguagem televisiva – o discurso da TV ao
mesmo tempo que fragmenta e descontextualiza, volta a reunir fatos e eventos em
um fluxo metonímico infinito no qual gêneros televisivos, informação e
comercial, ficção e realidade, remetem-se um ao outro. Em essência, um discurso
auto-referencial.
Como
viemos discutido em seguidas postagens, a grande mídia (jornais, TV etc.),
particularmente a TV Globo, cada vez demonstra sintomas de um tautismo crônico
– “tautismo”, autismo + tautologia, conceito da Teoria dos Sistemas no qual a
hipertrofia de um sistema cria um “fechamento operacional” – o sistema torna-se
auto-referencial fechando-se ao mundo exterior. Ou melhor, os inputs do mundo
exterior passam a ser traduzidos por meio de uma descrição que o sistema faz de
si mesmo.
Nesse contexto, a linguagem metonímica (o
pensamento lateral) tende a se expandir pela crônica auto-referencialidade,
transformando-se em um liquidificador que reduz qualquer input (notícia, dado
histórico, evento etc.) a um denominador comum que reforce determinada pauta
interna.
O vídeo motivacional do “Fantástico”
Um flagrante exemplo dessa lateralidade que
domina a visão de mundo tautista foi apresentado na introdução do Fantástico
desse último domingo: antes da vinheta de apresentação do Fantástico, com a
narração do apresentador Tadeu Schmidt, o programa apresentou um vídeo, por
assim dizer, motivacional.
“Nossa história é feita de reviravoltas surpreendentes,
e não faltam histórias para nos lembrar que sempre vale à pena lutar!”, conclui
o apresentador depois de apresentar um desfile de “reviravoltas impressionantes”.
Como não poderia deixar de ser, o destaque foi a virada do time do Barcelona na
Champions League contra o PSG (6 a 1) com o gol da classificação feito no
último minuto. Depois, um desfile de episódios de “reviravoltas” – “quando
parece que tá tudo perdido, de repente tudo se encaixa e o impossível
acontece...”.
O homem que cai num buraco no meio do
deserto, fica com o braço preso e depois de cinco dias, sem conseguir chamar
por socorro, corta o próprio braço para poder escapar; a tripulação da Apollo
13 fadada a morrer no espaço mas que superou os problemas no último instante e
voltou para casa; o mergulhador que bateu a cabeça, ficou paralisado mas se
salvou; o time do Vasco que virou um placar adverso de 3 a 0; o Grêmio que
virou um jogo com quatro jogadores a
menos e fugiu do rebaixamento; e a
virada no futebol americano do “time do Tom marido da Gisele Bündchen” no
último instante. Todos exemplos de que “jamais podemos desistir”.
Domingo é o dia do baixo astral
Sabemos que a programação de domingo da TV,
e o próprio dia da semana, é depressiva. Basta ouvirmos a abertura musical do
programa do Faustão ou a do Fantástico, para cairmos na real de que o domingo
está morrendo e que amanhã é segunda-feira – voltam as pressões do trabalho (se
você ainda tiver um...), as contas para pagar, os velhos problemas do
dia-a-dia.
Principalmente no contexto atual no qual
programas como o Fantástico, seguindo
a atual pauta do jornalismo da emissora, está recheado com denúncias de
corrupção, Lava Jato e o martelar insistente de que os políticos são ladrões e
de que o País é uma merda... Baixo astral generalizado. Demais para um final de
domingo!
Enquanto a Record usa vídeos de pets
engraçados para elevar um pouco o ânimo, a Globo apresenta vídeos motivacionais,
como nesse domingo. Motivação tautista baseada no pensamento lateral e
metonímico, que lembra, por exemplo, a capa da revista Exame mostrando um feliz Mick Jagger e a questão: “O que você e ele
têm em comum”. Para justificar a reforma da Previdência e demonstrar que, sim!,
podemos trabalhar até o final da vida.
A longevidade de Jagger, milionário astro
do rock, é metonimicamente deslocada para o brasileiro comum – você poderá ser
como ele, desde que se “prepare bem”... apesar das perversas condições sociais
de um país que conspira contra os próprios brasileiros.
Da mesma forma, o Fantástico fez um
apanhado de diferentes histórias, de casos de naturezas tão diversas para, de
forma auto-referencial (confirmar a própria pauta), juntar tudo num único
denominador comum: mergulhadores, jogadores de futebol, astronautas etc.
A generalização do pensamento metonímico
Em primeiro lugar, todos eles são
profissionais muito bem pagos, onde a remuneração é proporcional ao risco que
correm. E as “viradas” e “superações” são qualidades esperadas de profissionais
tão bem treinados e especializados no que se predispuseram a fazer – enfrentar
o jogo, o acaso, a sorte, o acidente etc. São episódios naturalmente esperados
e treinados para serem enfrentados.
Até os esportes e diversões radicais,
feitos para pessoas comuns, simulam situações como essas (a proximidade do
acidente e da morte) para possibilitar a excitação pela descarga de adrenalina
– bungee jump, base jump, cave diving,
heli skiing etc. Os atletas e profissionais de alto nível são admirados não
por supostas lições de moral que por ventura venham “motivar” ou “inspirar” nossas
vidas, mas por um estilo de vida caracterizado pela excitação, adrenalina e
imprevistos. Bem diferente da vida cotidiana.
Fechado em si mesmo, o pensamento
metonímico midiático generaliza tudo ao “jamais podemos desistir” como lição de
moral e motivação para o telespectador já deprimido com a proximidade das
agruras do dia seguinte.
Mas o principal da linguagem tautista ou
metonímica é a descontextualização e
consequência decorrente: a despolitização.
Todos os casos citados pelo vídeo
motivacional da Globo enfrentaram o acaso, o acidente e o jogo. Decorrências de
uma realidade que não é regida pela causalidade, mas pelo acaso.
Bem diferente das mazelas cotidianas dos
telespectadores, originadas em um contexto social e politicamente perverso que
reproduz a desigualdade e a derrota – crise econômicas e desemprego, sem falar
no horizonte negativo que se avizinha: perda de direitos trabalhistas,
assistenciais e previdenciários.
Ao contrário, mazelas políticas e
econômicas, estas sim, são regidas por causalidades e contextos bem definidos.
Contextos sócio-políticos que o discurso tautista e metonímico esvazia para
tentar motivar os telespectadores através do esquecimento – através da metonímia,
reduzir ao mesmo denominador comum o acaso e o acidente de eventos esportivos
com os infortúnios sócio-econômicos.
A mensagem ideológica “motivacional” é
simples: a introjeção da culpa - se alguma coisa der errado a culpa é toda do
telespectador. Afinal, não teve motivação suficiente para dar uma virada na
vida como fiveram Messi, Neymar ou o homem que cortou o próprio braço.
Postagens Relacionadas |