Em um passado alternativo em 1985, Mark
Chapman matou Mick Jagger ao invés de John Lennon e os EUA vivem sob o domínio de
um Estado totalitário. Um grupo subversivo planeja incitar a revolução por meio
de hits musicais com mensagens subliminares.
E o líder, produtor da gravadora, é inspirado por epifanias
místicas enviadas pela VALIS (“Vasto Sistema Vivo de Inteligência Alienígena”)
por meio de um satélite que secretamente orbita o planeta. Esse é o filme
“Radio Free Albemuth” (2010), a melhor adaptação cinematográfica já feita de um
livro do escritor gnóstico Philip K. Dick. Uma produção que conseguiu ir além
dos cânones da ficção-científica (que sempre orientaram as adaptações hollywoodianas
de K. Dick – robôs, aliens e planetas distantes), traduzindo para a tela as
especulações filosóficas que sempre inspiraram o escritor: Gnosticismo, Cabala,
Hermetismo e Budismo. Mas, principalmente, como K. Dick, através da sua obra, conseguiu politizar o
Gnosticismo através do tema da paranoia.
Somente depois da morte do escritor Philip K.
Dick (1928-1982), sua obra ganhou notoriedade junto ao público e,
simultaneamente, a roteiristas e diretores de Hollywood – Blade Runner (1982), seguido por Vingador do Futuro (1990), Confissões
de um Louco (1992), Screamers –
Assassinos Cibernéticos (1995), O
Impostor (2001), Minority Report
(2002), O Pagamento (2003), O Homem Duplo (2007), O Vidente (2007) e Os Agentes do Destino (2011).
O gênero ficção científica tem como
principal postulado a antecipação do futuro, que pode ser confirmado ou
desmentido. É o que torna as obras ou visionárias, ou datadas. E muitas vezes prisioneiras
da sua época.
Ao contrário, a obra de Philip K.
Dick se coloca fora do tempo, não envelhece. O que o torna especial é que na
verdade o gênero sci-fi nunca o interessou. Tentou escrever romances, muitas
vezes de natureza autobiográfica, mas as editoras não demonstravam interesse.
Acabou optando pela ficção científica por perceber que seria o meio mais
viável para abarcar suas especulações em torno do Gnosticismo, Hermetismo,
Budismo e Cabala.
Philip K. Dick |
Philip K. Dick e o Cinema
Embora Hollywood sempre tenha
adaptado suas obras como fossem autênticos sci-fis (privilegiando os cânones do
gênero como robôs, mundos futuros e planetas distantes) a sensibilidade de K.
Dick sempre foi muito além: realidades alternativas que coexistem, dúvidas a
respeito da materialidade dos acontecimentos, questionamentos sobre a natureza
última do real etc.
Para críticos de cinema e
pesquisadores gnósticos (nos quais se inclui esse humilde blogueiro), poucas
adaptações no cinema conseguiram capturar essa sensibilidade dickiana. O Homem Duplo (Scanner Darkly, 2007) foi um desses filmes – uma sociedade
totalitária escaneada por um dispositivo holográfico cuja tecnologia não
consegue devassar o que torna o homem como ele é: a fagulha espiritual interior
– sobre o filme clique aqui.
Radio
Free Albemuth (2010) é outra
adaptação que conseguiu ser fiel ao misticismo de K. Dick. Não há uma história
de amor para tornar o filme mais comercial, nem há um final modificado para
forçar um happy end e muito menos
aliens vindo de planeta distante em um mundo futuro. Há apenas uma realidade
alternativa no passado - os EUA em 1985 sob um governo totalitário no qual Mark
Chapman matou Mick Jagger ao invés de John Lennon.
E muitos elementos autobiográficos
nos quais o próprio Philip K. Dick é um dos personagens que contracena com seu alter-ego – o protagonista que reencena no filme um incidente que teria
ocorrido com o próprio autor em 1974 no qual teria tido visões
extra-sensoriais, passando a viver a partir dali em dois mundos paralelos.
O Filme
No filme acompanhamos o paranoico
escritor de sci-fi Phil K. Dick (Shea Wigham) que tenta interpretar as
experiências extra-sensoriais do seu amigo Nicholas Brady (Jonathan Scarfe) que
trabalha em uma loja de discos.
Os EUA vivem sob a ditadura de um
presidente chamado Fremont que mantêm o país sob um constante estado de luta
anti-terror contra uma organização subversiva chamada “Aramchek”.
Aos poucos, as experiências
paranormais de Brady irão se conectar com a luta contra essa ordem opressiva:
Brady acredita que está recebendo mensagens de uma grande ordem cósmica chamada
VALIS – acrônimo em inglês para “Vasto Sistema Vivo de Inteligência
Alienígena”. Brady tem sonhos nos quais é transportado para um local no qual
tem contato com alguma forma de inteligência que lhe passa ensinamentos e
sugerindo decisões arbitrárias.
Então, Brady é orientado a se mudar
para Los Angeles com sua esposa na qual se tornará produtor em uma gravadora de
discos chamada Progressive Records. Um dia, conhece Sadassa Silvia (interpretado
pela cantora Alanis Morissette) que também teve visões similares a Brady.
Juntos, seguindo as recomendações do
VALIS, propõem lançar no mercado um hit musical para os jovens que contenha
mensagens subliminares de subversão e revolução. Porém, a polícia secreta do
Governo (a FAP – “Friends of the American People”) vigia tudo de perto – também
o Estado produz músicas com mensagens subliminares induzindo ao conformismo e
resignação.
A epifania de K. Dick
O mote autobiográfico que estrutura
a narrativa é o momento da epifania que faz Brady dar a guinada espiritual na
sua vida – segundo K. Dick, um episódio que ocorreu com ele em 1974. O livro Radio Free Albemuth é de 1976.
K. Dick tinha arrancado o dente do
siso e aguardava uma entrega da farmácia com os remédios prescritos. A campainha tocou e Dick abriu a porta. A
menina da entrega da farmácia estava diante dele, usando um colar delicado do
qual pendia um peixe dourado, símbolo do Cristianismo primitivo.
Como Dick relatou mais tarde, foi como um
raio laser cor-de-rosa atingisse a região do terceiro olho de Dick. Isso teve
um efeito extraordinário:
"De repente, experimentei o que é chamado de “anamnese” - a palavra grega que significa, literalmente, "perda do esquecimento". Lembrei-me quem eu era e onde estava. Num instante, num piscar de olhos, tudo voltou para mim. E não só eu podia lembrar, mas eu podia ver. A menina era como fosse os cristãos subversivos do passado. Nós estávamos com medo de sermos descobertos pelos romanos. Nós tínhamos que nos comunicar por meio de sinais cifrados. Ela tinha acabado de me contar tudo isso, e era verdade” ("How to Build a Universe that Doesn't Fall Apart Two Days Later" publicado como uma introdução para DICK, Philip K., I Hope I Shall Arrive Soon, NY, Doubleday, 1985).
A “Invasão Divina”
A partir dessa experiência de
epifania, K. Dick iniciou uma trilogia literária que começa com Radio Free Albemuth (1976), seguida de VALIS (1978) e A Invasão Divina (1981).
Toda a humanidade se conecta com a
constelação de Albemuth por meio de um satélite que secretamente orbita o
planeta há milhares de anos, enviando sinais, raios ou transmissões para
despertar nos homens o “fogo brilhante” – entidade plasmática presente em cada
um de nós. Vivemos sem percebê-lo devido ao esquecimento.
Assim como a organização subversiva
Aramchek, o satélite de Albemuth procura inspirar grupos revolucionários, como
aconteceu com os hebreus no antigo Egito ou os antigos cristãos contra o
Império Romano. E agora, contra o Estado totalitário norte-americano do
presidente Fremont.
Moisés, Jesus e, agora Brady, são
personagens da mesma “invasão divina” – líderes inspirados por meio das ondas
de radio do satélite Albemuth.
Se entre os hebreus o veículo foi a
tábua dos Dez Mandamentos e entre os cristãos os Evangelhos de Jesus, agora com
o líder Nicholas Brady serão as músicas subliminares da gravadora Progressive
Records.
É nítida a sensibilidade gnóstica de K. Dick na qual a humanidade é
vista como exilada das estrelas, feita prisioneira por governos totalitários
(os Demiurgos e Arcontes da mitologia gnóstica) que conspiram contra nós para
impedir que despertemos do esquecimento, descobrindo no interior de cada um de
nós o “fogo brilhante” – para os gnósticos, a fagulha de luz que nos liga às
nossas verdadeiras origens na Plenitude, o “Pleroma”.
O grande gênio de Philip K. Dick
foi, através do tema da paranoia que perpassa toda a sua obra, fazer a conexão
entre o Gnosticismo e a descoberta espiritual da gnose com a temática das
conspirações políticas. De certa forma, K. Dick politizou o Gnosticismo.
Os críticos apontam como o principal
problema do filme Radio Free Albemuth
o ritmo – a adaptação parece focar muito mais nas teorias, fatos e explicações
que vão até os créditos finais. Mas justamente por isso, é a adaptação mais
fiel a uma obra de K. Dick.
Assistindo ao filme, começamos a
entender porque Hollywood sempre procura colocar entre parêntesis o misticismo
gnóstico de K. Dick para realçar apenas os cânones do gênero sci-fi – ação,
efeitos especiais, robôs e aliens.
Ficha Técnica |
Título: Radio Free
Albemuth
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Diretor: John Alan Simon
|
Roteiro: John Alan Simon adaptado do livro de Philip
K. Dick
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Elenco: Shea
Whigham, Jonathan Scarfe, Katheryn Winnick, Alanis Morissette
|
Produção: Open Pictures
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Distribuição: Freestyle Digital Media
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Ano: 2010
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País: EUA
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