segunda-feira, março 06, 2017

O Barão de Munchausen, reforma da Previdência e a lógica do refém


O material de propaganda do PMDB cujo slogan é “Se Reforma da previdência não sair, tchau Bolsa Família, adeus Fies, sem novas estradas, acabam programas sociais”, mais do que desespero de um governo que corre contra o relógio (Lava Jato e Eleições 2018) revela a natureza do Estado contemporâneo: o terrorismo e a lógica do refém. Se antes o terrorismo era restrito a territórios como aeroportos e embaixadas, agora tornou-se prática de governo: todos nós somos reféns sob a estratégia da chantagem dos rombos e dívidas que se transforma na nova função do Estado. Lógica que se sustenta em um mito, assim como aquele que o Barão de Munchausen, no filme clássico de Terry Gilliam de 1988, destruiu: não existem exércitos turcos por trás dos muros que mantém a cidade submissa pelo medo e a ignorância.

Na última sequência do filme As Aventuras do Barão de Munchausen (1988), de Terry Gilliam, o herói Barão termina de contar suas histórias sobre como conseguiu derrotar o exército turco e salvar o dia.

“Pare com essas idiotices! O Sr. está preso por espalhar histórias ridículas num momento de grande perigo quando o inimigo está às portas...”, ordena o prefeito que completa: “Sou ou não sou representante eleito do povo?”.

Supostamente a cidade está sitiada e os turcos estão diante da gigantesca porta da muralha. Mas o Barão grita: “Abram os portões, aproveitemos o dia... nada destrói mais um homem do que o medo e a submissão”. À frente, conduz a todos em direção da muralha da cidade para abrir os portões, sob a mira dos rifles da exército do prefeito. São tantos cidadãos que seguem o Barão, que nenhum soldado consegue atirar.

Os portões são abertos e tudo é revelado: o Barão dizia a verdade. O exército turco foi há muito tempo derrotado. O prefeito mantinha o mito do perigo turco para submeter a população através do medo e ignorância.

Nessa sequência que encerra as loucas histórias contadas pelo Barão de Munchausen está fantasticamente resumida uma prática de engenharia de percepção que é repetida ad infinitum pela propaganda política: a lógica da chantagem e do refém.

"Abram os portões!"

A chantagem e o refém


Para o pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007), a chantagem e o refém são as figuras políticas de manipulação que representariam o estágio final da evolução do Estado: primeiro o Estado foi criado para gerir o exercício da liberdade; depois para suprir a necessidade de segurança; e agora, a prática institucional do terrorismo ao tomar com refém a população por meio da aposentadoria, seguridade e assistência social.

Porém, Baudrillard alerta: essa é uma estratégia fatal do “gênio maligno do social”. Ao contrários dos antigos terroristas de aeroportos e embaixadas que exigiam algo em troca para a libertação dos reféns, na atual forma fatal de terrorismo de Estado o governo não negocia a vítima – ela será imolada em um espetáculo midiático, assim como o são os reféns do Estado Islâmico, decapitados em série para as câmeras – leia BAUDRILLARD, Jean. As Estratégias Fatais, Rocco, 1996.

Para além da truculência e oportunismo do governo do desinterino Temer (que parece seguir à risca o conselho do publicitário Nizan Guanaes: “torne-se impopular, mas faça o necessário”), a peça publicitária do PMDB “Se a reforma da previdência não sair, tchau Bolsa Família, adeus Fies, sem novas estradas, acabam programas sociais” é uma fratura exposta reveladora da função terrorista do Estado atual.

 Se fosse apenas o desespero de um governo ilegítimo que corre contra o relógio (eleições 2018 e a espada da Operação Lava Jato sobre suas cabeças) para executar o serviço sujo, poderíamos acreditar que a restituição da Democracia resolveria tudo, recolocando a função do Estado como gestor do exercício da liberdade.


Porém, esse material publicitário não se restringe a uma legenda partidária. Criado pela agência Benjamin Digital, do marqueteiro Lula Guimarães (que comandou a campanha do tucano João Dória Jr. em São Paulo), foi uma iniciativa tomada pelo Palácio do Planalto – após estudos de inteligência de rede e monitoramento da Internet e diante da forte resistência no Congresso contra a reforma previdenciária, perceberam o predomínio da narrativa da oposição no debate virtual.

A ameaçadora peça publicitária segue a trilha de um debate iniciado em países laboratórios do chamado “Consenso de Washington” – Chile e Coréia do Sul nos anos 1990, cujos resultados foram catastróficos para a população: no Chile, média da aposentadoria reduzida à metade do salario mínimo e crescimento da desigualdade; e na Coréia do Sul o desmonte de um secular sistema previdenciário e o desmoronamento de um contrato social confuciano ao transformar idosos em não-pessoas - entre 2011 e 2015 cresceu em 56% as mortes de idosos abandonados pelas suas famílias.

A função terrorista do Estado

 Por que o Estado evolui para a função terrorista? Antes mesmo que os neoliberais defendessem a necessidade de um “Estado mínimo”, ironicamente o Estado já foi minimizado com o esvaziamento do próprio Poder que  o reduziu historicamente, de topos da luta política para a produção de alguma finalidade social, em aparelho de gestão da reprodução macroeconômica, da reprodução da força de trabalho e consumo e do endividamento público .

Por isso o Estado evoluiu para uma cena (ou “obscena”) pior do que a da proibição, da censura e da repressão: a “obscena” da chantagem. Forma de dissuasão que é pior do que a sanção. Na (obs)cena da chantagem não se diz mais “não farás isso!”, mas agora “se não fizer isso...”. A eventualidade ameaçadora é mantida sob suspense.

Na proibição ainda havia uma referencia, uma lei que poderia ser transgredida. No terror há suspensão – o refém não é um condenado. Ele está num estado entre vida e morte.

Jean Baudrillard: o terror da suspensão

Essa é a perfeita logica do terror: não há mais a violência da proibição, mas o terror da suspensão.

Na peça de propaganda do PMDB sobre a reforma da previdência a conjunção subordinativa condicional “se” é seguida pelo terror contíguo do “tchau”, “adeus”, “sem” e “acabam” – em algum lugar não definido no tempo virá a catástrofe. Assim como dizia o prefeito da cidade cercada por muralhas no filme As Aventuras do Barão de Munchausen: se os portões forem abertos...

Chantagem e Transpolítica


A questão é que essa lógica obscena da chantagem não objetiva uma troca – um refém por um prisioneiro político. Como afirmava Baudrillard, a lógica da chantagem é transpolítica: não objetiva troca mas a execução exemplar do refém, sem negociações – apenas ostentação.


A não invasão dos exércitos turcos na cidade atrás das muralhas não garantia liberdade e vida digna para os cidadãos, mas o aumento da miséria, medo e submissão. Supostamente o refém aprisionado pelo prefeito era a segurança dos cidadãos. Mas, como percebeu o Barão de Munchausen, na verdade todos cidadãos são os verdadeiros reféns, executados pelo próprio governo.

A satisfação das condições da chantagem não garantirá a libertação dos reféns. No caso da peça de propaganda, os reféns não são o Fies, programas sociais ou Bolsa Família. Os reféns somos todos nós, tal qual os reféns do Estado Islâmico perfilados em uma praia com capuzes apenas esperando a decapitação como um tétrico show midiático internacional.


Somos todos reféns


 E por que todos tornam-se reféns? Por que ao contrário do velho terrorismo político, o terrorismo de Estado não tem território – todo os cidadãos são feitos coletivamente responsáveis pela ordem que reina na sociedade. Se supostamente o Estado quebra e a dívida pública torna-se impagável todos são responsabilizados e pego como reféns para serem liquidados como contraprova da existência de uma dívida real.

Historicamente, as saídas desse impasse simbólico sempre foram as piores possíveis: a busca de um bode expiatório (racial ou de classe) para a expiar a culpa dos cidadãos-reféns (o fascismo); a transformação do resto do mundo como refém como fizeram os EUA na Era Nixon com a moratória da dívida através do fim do lastro-ouro para o dólar, moeda do comércio internacional (as bases do terrorismo econômico da Globalização); a transformação de cidadãos em não-pessoas tratadas como refugo social – velhos, doentes, crianças miseráveis etc. (o “homo sacer” ou “refugo humano” – leia BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas, Zahar, 2005).

Afinal, o mito da bomba populacional e da histeria do controle da natalidade como solução econômica e ambiental também fazem parte dessa ampla estratégia terrorista de Estado.

O que as reflexões de Baudrillard sobre as formas do terrorismo moderno nos ensina é que os próprios termos do debate têm que ser redefinidos: assim como o Barão de Munchausen colocou em xeque a chantagem do refém (não há turcos por trás dos muros porque há muito tempo os derrotei), o rombo da Previdência já foi há muito provado como mito – clique aqui.

E mesmo que existisse, seria tão impagável como todos os papéis das dívidas públicas de todo os países que sustentam a espiral especulativa da Globalização, o principal mecanismo de terror que pegou todo o planeta como refém.

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