terça-feira, março 21, 2017

Filme "Nuit Noire": sonhamos os sonhos ou os sonhos é que sonham conosco?


Oscar é um entomologista solitário que trabalha no museu de história natural e em casa cria insetos em estufas numa monótona rotina. Ele vive num mundo que parece ser um purgatório noturno: há um eterno eclipse solar que só deixa o Sol aparecer por quinze segundos. Até que um dia volta para casa e encontra uma mulher negra, doente e grávida, na sua cama. Oscar usará a ciência da Entomologia para lidar com o problema inesperado. No filme belga “Nuit Noire” (2005) o diretor Olivier Smolders faz um mix do cinema surrealista de Buñuel e David Lynch com a paranoia de “A Metamorfose” de Kafka. O filme mostra como o cinema europeu lida com os temas da mente e do inconsciente de forma bem diferente das produções norte-americanas: não há mais a luta e vitória da Razão sobre a mente, mas como os sonhos e o inconsciente contaminam os diversos níveis da realidade. Será que sonhamos os sonhos ou os sonhos é que sonham conosco?

Representações da mente e do inconsciente sempre andaram de mãos dadas com o cinema desde o início. Mesmo no início documental dos Irmão Lumière, o susto de ver um trem chegando numa estação foi a primeira representação imaginária do inconsciente. Afinal, ficar numa sala escura olhando para uma tela, simula no real a própria tela mental dos sonhos de toda noite.

Porém, essas representações no cinema podem ser divididas basicamente em duas vertentes. A do cinema americano, como nos filmes Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2003), A Origem (Inception, 2010) ou Divertida Mente (Inside Out, 2015) no qual a mente é representada pelo ponto de vista das neurociências – representações quase cartográficas da memórias e atividades mentais, por meio de metáforas ou analogias: cofres, encruzilhadas, labirintos, becos, muros etc. É o projeto do controle pragmático da mente por meio de precisas cartografias e topografias – sobre isso clique aqui.

Ao contrário, como não poderia deixar de ser, as representações européias são carregadas pela forte herança freudiana da psicanálise e a sua expressão máxima no cinema: o Surrealismo de Dali e Buñuel. Diferente das cartografias analógicas do cinema americano, os filmes surrealistas representam a mente através dos simbolismos seja das imagens ou das montagens e edição. Aqui não há mais o desejo de controle por meio da racionalidade – o protagonista é arrastado pelo inconsciente a tal ponto que ilusão e realidade, sonho e vigília se confundem. Além do clássico Um Cão Andaluz (1928), temos exemplos mais atuais como Sonhando Acordado (2006), Aurora (Vanishing Waves, 2012) ou Agnosia (2010).


A estreia em longas metragens do diretor belga Olivier Smolders com o filme Nuit Noire (2005) confirma essa profunda divisão das representações da mente e do inconsciente no cinema. O filme é uma atualização da linguagem europeia do surrealismo por meio de um delirante mix de Buñuel, A Metamorfose de Kafka e os enigmáticos Eraserhead e Blue Velvet de David Lynch.

Buñuel, Lynch, Kafka


A manipulação do tempo e espaço por meio da montagem como em Buñuel (tudo se passa em uma eterna meia-noite), estranhos closes de insetos se retorcendo e cortinas vermelhas como em David Lynch e simbolismos pagãos de metamorfoses e fertilidade (uma mulher morta se transforma numa pupa num casulo para renascer como outra pessoa) numa analogia à obra de Kafka. 

Nuit Noire é a síntese da proposta surrealista sobre o inconsciente humano. A Razão humana não é o centro do Universo. Mas sim o inconsciente, que sem percebermos nos governa e molda a própria realidade que, achamos, é dirigida pela racionalidade.


E a sala de projeção cinematográfica nada mais é do que a confirmação na realidade dessa ontologia onírica: sentados no escuro, passivos e com a boca aberta, esperando sermos preenchidos com fluxos oníricos das imagens. Todo um dispositivo tecnológico inventando para perpetuar na vigília o que vivemos nos sonhos quando dormimos.

O Filme


A estranha bizarrice surrealista de Nuit Noire já começa na própria sinopse do filme: um entomologista (especialista em insetos) solitário trabalha em um museu de história natural num mundo onde só há luz por quinze segundos – há uma espécie de eterno eclipse do Sol. Dentro da sua rotina solitária de casa pra o trabalho, um dia ao retornar para seu apartamento descobre uma mulher negra dormindo em sua cama. Ela está doente e grávida e eventualmente morrerá, deixando para ele a difícil missão de lidar com o corpo.

Com os seus conhecimentos de Entomologia, Oscar (Fabrice Rodriguez) transformará o corpo da mulher numa pupa em um grande casulo sobre a sua cama, transformando-a na imagem de uma suposta irmã já falecida que aparece recorrentemente em seus sonhos.

A epígrafe que abre o filme já prepara o espectador para o que virá:
Quando era criança, ficava receoso de dormir. A noite parecia tão povoada de fantasmas. Meu medo e desejo de vê-los causarem acontecimentos os quais eu reconheci muito bem sem realmente compreendê-los.
Nesses sonhos recorrentes sobre a infância, Oscar está sempre ao lado de sua irmã enfrentando perigos como tigres e leopardos. As feras sempre matam sua irmã, deixando-a em pedaços. A culpa pela morte o faz reviver a cena numa espécie de pequeno palco de teatro de fantoches. Uma sombria dupla de titereiros manipulam cordéis como se Oscar e sua irmã fossem bonecos.


Nas entrevistas sobre o filme, o diretor Smolders confessa que se sente indignado com um cinema comercial que, apesar de mostrar imagens as quais compreendemos instantaneamente, insiste em dar explicações literais, infantilizando o espectador. Nuit Noire quer fazer o movimento inverso: deixar lacunas simbólicas para convidar o espectador a preenchê-las.

Quem sonha quem?


Será que sonhamos os sonhos ou os sonhos sonham conosco? Essa parece ser a grande questão em Nuit Noire.

Por isso o filme divide a realidade em três níveis. No primeiro, é verdadeiramente muito real: a noite eterna na qual vive Oscar – o trabalho solitário e a rotina monótona, sem alegria, alternando o trabalho no museu e em casa criando insetos em estufas.

No segundo nível, vemos como a realidade parece ser contaminada pelos sonhos de Oscar: a vida parece ser um purgatório sombrio, iluminado apenas por quinze segundos, dominado por ruas escuras e assombradas nas quais fantasmas têm licença para andar entre nós.


Em casa, Oscar construiu um pequeno teatro de fantoches. Igual ao que vivencia nos sonhos. Dentro dele, um pequeno projetor que projeta filmes caseiros da sua infância – seu pai, um explorador no Congo Belga e cenas da infância nas quais o rosto da sua irmã nunca aparece, sempre sob uma máscara.

E o terceiro nível, os sonhos que parecem repetir a cena traumática da morte da irmã por algum animal selvagem. Nos sonhos, vemos o rosto da irmã. Mas não temos certeza de que seja esse o rosto real.

O inconsciente europeu – Alerta de Spoilers !


A presença da enigmática mulher negra grávida e doente na sua cama tem um evidente simbolismo ao mesmo tempo social e onírico – a realidade sócio-política europeia que jamais lidou bem com o seu passado colonialista (no caso do filme, o Congo Belga): a repulsa à imigração dos seus ex-colonizados para o continente europeu. O Outro como a lembrança da culpa por uma história de guerras e violência.

A contaminação onírica dos três níveis da realidade centraliza todo o problema do psiquismo humano a um fantasma único: a dificuldade de lidar com o Outro – o negro, o estrangeiro, a sociedade, a mulher etc.

Nesse ponto vemos a grande diferença do enfoque do psiquismo entre o cinema dos dois continentes: nos EUA a questão é o drama da necessidade de controlarmos a mente; no cinema do surrealismo europeu, o drama de não aceitarmos o fato de que, afinal, é o inconsciente que rege a realidade e subjuga a Razão – o que resulta no medo, ódio e violência contra o Outro.


Oscar tentará usar todos os conhecimentos da ciência da Entomologia para transformar o corpo da mulher negra na imagem da irmã idealizada nos sonhos. Porém, um rolo de filmes secreto, escondido pelo seu pai, revelará a verdade que os sonhos tentavam alertá-lo: o tempo inteiro aquele corpo negro era da sua irmã que veio pedir-lhe ajuda – seu pai foi um dia casado com uma mulher negra no Congo Belga.

Uma infância africana que a Razão tenta negar por meio de idealizações e a estilização do teatro de fantoches com uma cortina vermelha.

Nuit Noire revela o autêntico purgatório escuro em que se transformou a realidade europeia, incapaz de lidar com a culpa e o Outro de uma História marcada por guerras, dominação e violência.

É claro que essa é uma das leituras possíveis das lacunas simbólicas deixadas propositalmente por Olivier Smolders. Mas seja qual for a interpretação, todas irão convergir para uma espécie de ontologia onírica: na verdade são os sonhos que sonham conosco.


Ficha Técnica

Título: Nuit Noire
Diretor: Olivier Smolders
Roteiro:  Olivier Smolders
Elenco:  Fabrice Rodriguez, Yves-Marie Gnahoua, Philipe Corbisier
Produção: Cipango Productions Audiovisuelles, Parallèles Productions, Canal +
Distribuição: Las Acacias
Ano: 2005
País: Bélgica

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