Oscar é um entomologista solitário que
trabalha no museu de história natural e em casa cria insetos em estufas numa
monótona rotina. Ele vive num mundo que parece ser um purgatório noturno: há
um eterno eclipse solar que só deixa o Sol aparecer por quinze segundos. Até
que um dia volta para casa e encontra uma mulher negra, doente e grávida, na
sua cama. Oscar usará a ciência da Entomologia para lidar com o problema
inesperado. No filme belga “Nuit Noire” (2005) o diretor Olivier Smolders faz
um mix do cinema surrealista de Buñuel e David Lynch com a paranoia de “A
Metamorfose” de Kafka. O filme mostra como o cinema europeu lida com os temas
da mente e do inconsciente de forma bem diferente das produções
norte-americanas: não há mais a luta e vitória da Razão sobre a mente, mas como
os sonhos e o inconsciente contaminam os diversos níveis da realidade. Será que
sonhamos os sonhos ou os sonhos é que sonham conosco?
Representações da mente e do inconsciente
sempre andaram de mãos dadas com o cinema desde o início. Mesmo no início
documental dos Irmão Lumière, o susto de ver um trem chegando numa estação foi
a primeira representação imaginária do inconsciente. Afinal, ficar numa sala
escura olhando para uma tela, simula no real a própria tela mental dos sonhos
de toda noite.
Porém, essas representações no cinema podem ser
divididas basicamente em duas vertentes. A do cinema americano, como nos filmes
Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças
(2003), A Origem (Inception, 2010) ou Divertida Mente (Inside Out,
2015) no qual a mente é representada pelo ponto de vista das neurociências –
representações quase cartográficas da memórias e atividades mentais, por meio
de metáforas ou analogias: cofres, encruzilhadas, labirintos, becos, muros etc.
É o projeto do controle pragmático da mente por meio de precisas cartografias
e topografias – sobre isso clique aqui.
Ao contrário, como não poderia deixar de ser,
as representações européias são carregadas pela forte herança freudiana da psicanálise e
a sua expressão máxima no cinema: o Surrealismo de Dali e Buñuel. Diferente das
cartografias analógicas do cinema americano, os filmes surrealistas representam
a mente através dos simbolismos seja das imagens ou das montagens e edição.
Aqui não há mais o desejo de controle por meio da racionalidade – o
protagonista é arrastado pelo inconsciente a tal ponto que ilusão e realidade,
sonho e vigília se confundem. Além do clássico Um Cão Andaluz (1928), temos exemplos mais atuais como Sonhando Acordado (2006), Aurora (Vanishing Waves, 2012) ou Agnosia
(2010).
A estreia em longas metragens do diretor
belga Olivier Smolders com o filme Nuit
Noire (2005) confirma essa profunda divisão das representações da mente e
do inconsciente no cinema. O filme é uma atualização da linguagem europeia do
surrealismo por meio de um delirante mix de Buñuel, A Metamorfose de Kafka e os enigmáticos Eraserhead e Blue Velvet
de David Lynch.
Buñuel, Lynch, Kafka
A manipulação do tempo e espaço por meio da
montagem como em Buñuel (tudo se passa em uma eterna meia-noite), estranhos
closes de insetos se retorcendo e cortinas vermelhas como em David Lynch e
simbolismos pagãos de metamorfoses e fertilidade (uma mulher morta se transforma
numa pupa num casulo para renascer como outra pessoa) numa analogia à obra de
Kafka.
Nuit Noire é a síntese da proposta surrealista sobre o
inconsciente humano. A Razão humana não é o centro do Universo. Mas sim o
inconsciente, que sem percebermos nos governa e molda a própria realidade que,
achamos, é dirigida pela racionalidade.
E a sala de projeção cinematográfica nada mais é do que a confirmação na
realidade dessa ontologia onírica: sentados no escuro, passivos e com a boca
aberta, esperando sermos preenchidos com fluxos oníricos das imagens. Todo um
dispositivo tecnológico inventando para perpetuar na vigília o que vivemos nos
sonhos quando dormimos.
O Filme
A estranha bizarrice surrealista de Nuit Noire já começa na própria sinopse
do filme: um entomologista (especialista em insetos) solitário trabalha em um
museu de história natural num mundo onde só há luz por quinze segundos – há uma
espécie de eterno eclipse do Sol. Dentro da sua rotina solitária de casa pra o
trabalho, um dia ao retornar para seu apartamento descobre uma mulher negra
dormindo em sua cama. Ela está doente e grávida e eventualmente morrerá,
deixando para ele a difícil missão de lidar com o corpo.
Com os seus conhecimentos de Entomologia,
Oscar (Fabrice Rodriguez) transformará o corpo da mulher numa pupa em um grande casulo
sobre a sua cama, transformando-a na imagem de uma suposta irmã já falecida que
aparece recorrentemente em seus sonhos.
A epígrafe que abre o filme já prepara o
espectador para o que virá:
Quando era criança, ficava receoso de dormir. A noite parecia tão povoada de fantasmas. Meu medo e desejo de vê-los causarem acontecimentos os quais eu reconheci muito bem sem realmente compreendê-los.
Nesses sonhos recorrentes sobre a infância, Oscar está sempre ao lado de sua irmã enfrentando perigos como tigres e
leopardos. As feras sempre matam sua irmã, deixando-a em pedaços. A culpa pela
morte o faz reviver a cena numa espécie de pequeno palco de teatro de
fantoches. Uma sombria dupla de titereiros manipulam cordéis como se Oscar e
sua irmã fossem bonecos.
Nas entrevistas sobre o filme, o diretor
Smolders confessa que se sente indignado com um cinema comercial que, apesar de mostrar
imagens as quais compreendemos instantaneamente, insiste em dar explicações
literais, infantilizando o espectador. Nuit
Noire quer fazer o movimento inverso: deixar lacunas simbólicas para
convidar o espectador a preenchê-las.
Quem sonha quem?
Será que sonhamos os sonhos ou os sonhos
sonham conosco? Essa parece ser a grande questão em Nuit Noire.
Por isso o filme divide a realidade em três
níveis. No primeiro, é verdadeiramente muito real: a noite eterna na qual vive
Oscar – o trabalho solitário e a rotina monótona, sem alegria, alternando o
trabalho no museu e em casa criando insetos em estufas.
No segundo nível, vemos como a realidade parece ser
contaminada pelos sonhos de Oscar: a vida parece ser um purgatório
sombrio, iluminado apenas por quinze segundos, dominado por ruas escuras e
assombradas nas quais fantasmas têm licença para andar entre nós.
Em casa, Oscar construiu um pequeno teatro de
fantoches. Igual ao que vivencia nos sonhos. Dentro dele, um pequeno projetor
que projeta filmes caseiros da sua infância – seu pai, um explorador no Congo
Belga e cenas da infância nas quais o rosto da sua irmã nunca aparece, sempre
sob uma máscara.
E o terceiro nível, os sonhos que parecem
repetir a cena traumática da morte da irmã por algum animal selvagem. Nos
sonhos, vemos o rosto da irmã. Mas não temos certeza de que seja esse o rosto
real.
O inconsciente europeu – Alerta de Spoilers !
A presença da enigmática mulher
negra grávida e doente na sua cama tem um evidente simbolismo ao mesmo tempo
social e onírico – a realidade sócio-política europeia que jamais lidou bem com
o seu passado colonialista (no caso do filme, o Congo Belga): a repulsa à
imigração dos seus ex-colonizados para o continente europeu. O Outro como a
lembrança da culpa por uma história de guerras e violência.
A contaminação onírica dos três
níveis da realidade centraliza todo o problema do psiquismo humano a um
fantasma único: a dificuldade de lidar com o Outro – o negro, o estrangeiro, a
sociedade, a mulher etc.
Nesse ponto vemos a grande diferença
do enfoque do psiquismo entre o cinema dos dois continentes: nos EUA a questão
é o drama da necessidade de controlarmos a mente; no cinema do surrealismo
europeu, o drama de não aceitarmos o fato de que, afinal, é o inconsciente que rege
a realidade e subjuga a Razão – o que resulta no medo, ódio e violência contra
o Outro.
Oscar tentará usar todos os
conhecimentos da ciência da Entomologia para transformar o corpo da mulher negra na
imagem da irmã idealizada nos sonhos. Porém, um rolo de filmes secreto,
escondido pelo seu pai, revelará a verdade que os sonhos tentavam alertá-lo: o
tempo inteiro aquele corpo negro era da sua irmã que veio pedir-lhe ajuda – seu
pai foi um dia casado com uma mulher negra no Congo Belga.
Uma infância africana que a Razão
tenta negar por meio de idealizações e a estilização do teatro de fantoches com
uma cortina vermelha.
Nuit
Noire revela o
autêntico purgatório escuro em que se transformou a realidade europeia, incapaz
de lidar com a culpa e o Outro de uma História marcada por guerras, dominação e
violência.
É claro que essa é uma das leituras
possíveis das lacunas simbólicas deixadas propositalmente por Olivier Smolders.
Mas seja qual for a interpretação, todas irão convergir para uma espécie de
ontologia onírica: na verdade são os sonhos que sonham conosco.
Ficha Técnica |
Título: Nuit Noire
|
Diretor: Olivier Smolders
|
Roteiro: Olivier
Smolders
|
Elenco: Fabrice Rodriguez, Yves-Marie Gnahoua,
Philipe Corbisier
|
Produção: Cipango
Productions Audiovisuelles, Parallèles Productions, Canal +
|
Distribuição: Las Acacias
|
Ano: 2005
|
País: Bélgica
|
Postagens Relacionadas |