quarta-feira, setembro 17, 2014

A Química transforma-se em Alquimia na série "Breaking Bad"



Após cinco temporadas, a premiada série televisiva de dramas, crimes e thriller “Breaking Bad” (2008-2013) ingressou na lista de filmes de diversos gêneros que exploram simbologias alquímicas de transformação como “Blue Velvet” de David Lynch ou “Beleza Americana” de Sam Mendes. Narrativas que exploram as possibilidades de transformações íntimas em nossas vidas através de elementos que tradicionalmente tomamos como negativos: caos, trevas e morte. Um professor de Química confronta a morte, o câncer e um vida fracassada por meio de uma jornada radical de redenção no submundo do narcotráfico. A metanfetamina azul se transforma na série em simbologia alquímica ao mesmo tempo de redenção espiritual e destruição de um mundo de aparências. Por isso, “Breaking Bad” também foi um “experimento sociológico”, segundo seu criador Vince Gilligan.


Dostoiévsky num deserto do Oeste dos EUA. Dessa maneira muitos críticos sintetizaram as cinco temporadas da série Breaking Bad: um professor de Química do ensino médio (Walt White) em um canto empoeirado dos EUA (Albuquerque, Novo México), labuta em seu desespero silencioso por saber que já é um condenado pelo câncer no pulmão. Com um filho deficiente físico e a esposa grávida, sabe que um possível tratamento o levará à banca rota. Junta-se a um ex-aluno rebelde (Jesse) para, com seus conhecimentos de química, fazer a metanfetamina mais pura do mercado do submundo das drogas, para ganhar muito dinheiro rapidamente e, assim, garantir a segurança financeira da sua família após a sua morte.

Tudo levava a crer que teríamos uma história tragicômica de um protagonista que pateticamente tentava salvar uma vida que falhara, mostrando que a existência é desprovida de qualquer sentido ou propósito. Mas as cinco temporadas mostraram que não era isso: a jornada de Walt White converteu-se numa épica batalha de transformação íntima onde um velho modo de vida baseado em aparências e farsas é levado ao caos para que o novo renasça, mesmo com o custo da própria morte.

As pistas já eram dadas pelo criador da série, Vince Gilligan, onde nos créditos iniciais vemos a tabela periódica estilizada e em movimento: mais do que Química, Gilligan mostrou simbolismos da Alquimia – Breaking Bad tratou das possibilidades de dissoluções e transmutações em nossas vidas, encorajando meditações sobre como o poder das trevas, caos e morte, elementos tradicionalmente pensados de forma negativa, podem se converter em elementos positivos: agentes catalizadores de iluminações, novas ordens e vidas.

A simbologia alquímica


Gilligan explorou a imagerie do cinema alquímico presente em uma tradição de filmes como Blue Velvet (1986) de David Lynch, Beleza Americana (1999) de Sam Mendes e Sinédoque, Nova York (2008) de Charlie Kaufman.

Prática antiga que combina elementos da Química, Metalurgia, Matemática, Cabala, Gnosticismo, Magia e Astrologia, a Alquimia busca, através de sucessivas operações (Nigredo, Albedo e Rubedo), reproduzir as etapas de criação do cosmos físico pelo Demiurgo para redimir a matéria – elevá-la do estado da “ignorância” (como a pedra, por exemplo) para estágios superiores de “consciência” (como o ouro).

Portanto, toda Alquimia seria um complexo conjunto de práticas experimentais e místicas que simbolizariam os estados de transmutação da consciência: diferente de muitas linhas neo-platônicas ou cabalistas, a matéria não pode ser simplesmente transcendida ou desprezada. Ela deve ser redimida, transmutada por meio do caos e da morte.

Nas entrevistas onde procura esclarecer o processo de criação da série Breaking Bad, Vince Gilligan afirma que nunca levou Química e Matemática à sério na escola e se arrependia desse desprezo. Isso teria sido o principal motivador para o argumento da série, que o fez devorar revistas Popular Science e contar com uma especialista da Universidade de Oklahoma - leia "Breaking Bad creator Vince Gilligan answers fan questions"

Esse mix de fascínio, ciência popular e consultoria técnica parece confirmar como a cultura de massa com a sua subliteratura de HQs, magazines, filmes B, sci fi, horror e fantasia, acabou criando uma espécie de “sub-zeitgeist” esotérico-religioso que faz renascer arquétipos que dão uma leitura mística de fenômenos científicos.

Por que a metanfetamina é azul?


O primeiro exemplo é a cor azul da metanfetamina de Walt: Gilligan procurava uma cor para o produto que representasse o grau de pureza do produto que conotasse também a própria busca de redenção de Walt.  A consultoria técnica ponderou que se aplicamos uma cor ao produto, quimicamente ele se tornaria menos puro. Gilligan ignorou a evidência científica (para Gilligan a cor amarela que seria a quimicamente correta lembraria urina e vergonha) e optou pelo azul que simbolizaria pureza. Para reforçar, sua esposa chama-se Skyler numa referencia ao céu azul e a suas roupas da mesma cor.

Outro ponto interessante da imagerie alquímica da série é o câncer pulmonar de Walt. A palavra pulmão vem de pleumon (fluir, fluturar) provavelmente porque, ao contrário das outras vísceras, lançado à água o órgão flutua. Na tradição o esotérica, o pulmão está associado ao ar e a espiritualidade, o pneuma (a alma racional). Mais um simbolismo da redenção e transformaçãoo buscada pelo protagonista.

Além disso, temos o codinome escolhido por Walt para ser reconhecido no submundo do narcotráfico: “Heisenberg”. Sabemos que o físico Werner Heisenberg foi o formulador do conhecido Princípio da Incerteza na física quântica: quando se tenta estudar uma partícula atômica, a medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode observar uma coisa sem influenciá-la.


Esse codinome não seria mais perfeito para um protagonista alquímico como Walt White. Diferente do cinema tradicional onde o protagonista é “extrovertido” (tenta intervir e alterar o mundo) ou “introvertido” (contemplativo), no cinema alquímico o protagonista pratica a “centroversão”: a sua transformação íntima acaba afetando involuntariamente a todos ao redor (na série, em uma sucessão de mortes, tragédias e dramas familiares em cascata), num processo holístico semelhante ao sugerido por Heisenberg onde o observador não consegue ficar à parte do objeto.

As etapas alquímicas de transformação - spoilers à frente


A narrativa e as sucessivas temporadas de Breaking Bad parecem acompanhar os três estágios de transformação alquímica:

(a) Nigredo (enegrecimento): o caos primário da indiferenciação. Sob a influência de Saturno, Walt é melancólico em seu desespero silencioso. Nas duas primeiras temporadas, tal como os filmes noir dos anos 1940-50 não má mocinhos e bandidos, ninguém é o que aparenta ser: Rank, o cunhado de Walt e investigador da Departamento de Narcóticos da Polícia, por trás da sua aparência de superxerife, é inseguro e busca reconhecimento e promoção encobrindo seus problemas conjugais; um cidadão benemérito da polícia local na verdade é um narcotraficante implacável e cruel (Gus Fring); Skyler trai Walt com um antigo amante etc.

A melancolia de Walt só poderia ser atraída para o submundo e para um personagem loser como Jesse: no cinema alquímico, personagens como o do Estrangeiro (aquele que possui uma relação de estranhamento com sua família e cidade) sempre é atraído para o submundo – o protagonista vê que a única forma de redenção é mergulhando no caos para redimir a matéria.


          (b) Albedo (embranquecimento):  Sr. White (branco) encontra um estado ideal de estabilização, abstrato e ideal. Sob a assistência do impagável advogado porta-de-cadeia Saul Goodman, cria canais de lavagem de dinheiro da metanfetamina. Ele quase consegue conciliar a vida familiar com o submundo do narcotráfico. Na alquimia o estágio do Albedo é regido pela Lua: nesse estágio sonhos e fantasias de um mundo ideal torna-se perigoso, podendo tornar o protagonista “lunático”. Walt começa a tomar gosto pelo seu personagem Heisenberg (careca com um chapéu estiloso preto). Essa idealização e a aparente regressão do câncer pode criar um ilusório estado de estabilização.

(c) Rubedo (erubescimento): a esse estado ideal que acompanhamos na temporada 3 e 4, é necessário injetar o Sol, a Vida e o Sangue na última temporada. Como Vince Gilligan afirmou, era necessário encontrar uma forma de Walt pagar pelo seus pecados e, ao mesmo tempo, encontrar sua redenção. Paradoxalmente, o protagonista renascerá do caos das relações humanas por meio da morte.

O banho de sangue final (que faz lembrar outra narrativa alquímica de transformações no filme Taxi Driver de 1976 com Robert De Niro) e a emblemática imagem final de Walt mortalmente ferido passando sua mão ensanguentada em um dos recipientes do laboratório de produção de metanfetamina marcam imageticamente a transmutação do rubedo: num laboratório em meio do deserto (elemento Sol) o laboratório é marcado pelo vermelho do sangue – tanto em filmes com Blue Velvet como em Beleza Americana, sangue e flores vermelhas são as imagens desse momento culminante de redenção do protagonista.

Um experimento sociológico


Na entrevistas Gilligan afirmou diversas vezes que Breaking Bad era um verdadeiro experimento sociológico pela forma como os espectadores interagiram com Walt White ao longo da série ao acompanhar suas transformações.

Mas esse experimento foi além: ao mostrar como as transformações íntimas de Walt foram revelando a realidade por trás do teatro das aparências sociais, passamos a colocar sob suspeita alguns acontecimentos que muitas vezes figuram na mídia:

(a) Quando você ver notícias de pessoas que misteriosamente desapareceram sem deixar vestígios (abduzidas por ETs?) desconfie: como na série, deve ter sido algumas daquelas pessoas azaradas que apareceram no lugar errado e na hora errada. Assassinadas por serem testemunhas, são dissolvidas em caldos químicos em laboratórios de narcotraficantes;

(b) Correntes de donativos na Internet para causas humanitárias e para o tratamento de pessoas com doenças exóticas, também desconfie: pode ser uma forma cibernética de lavagem de dinheiro sujo através de algum laranja;

(c) Se ouvir falar de uma empresa ou negócio praticamente falido que foi vendido e, repentinamente, prospera e em pouco tempo começa a abrir filiais, pode ter certeza: é um instrumento de lavagem de dinheiro. Afinal, como dizia Balzac, por trás de toda fortuna se esconde um grande crime.


Ficha Técnica


Título: Breaking Bad (série de TV)
Criação: Vince Gilligan
Roteiro: Vince Gilligan, Sam Catlin, George Mastras
Elenco: Bryan Cranston, Anna Gunn, Aaron Paul, Dean Norris, Betsy Brandt
Produção: Gran Via Productions, Sony Pictures Television, High Bridge Productions
Distribuição: Sony Pictures Home Entertainment
Ano: 2008-2013
País: EUA




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