A Terra é um disco plano e cercada por um
muro de gelo que chamamos de Antártida. O Sol e a Lua são apenas discos
luminosos que giram sobre o plano terrestre e os planetas não existem. São
apenas estrelas firmadas em uma abóboda. E a NASA esconde tudo simulando
viagens espaciais e fotos da curvatura terrestre. Acredite, essa teoria que
cada vez mais ocupa espaço na Internet com textos e vídeos com um crescente
número de seguidores. Mas teoria da Terra Plana não é nova na era moderna. É
recorrente na História em momentos de crise política e econômica, como hoje. Por
exemplo, teorias da Terra Oca e Plana foram adotadas pelo Nazismo para se opor
à “ciência materialista” e injetar magia e misticismo na Política por meio de
sociedades secretas como a Vril e Tule, antes da Segunda Guerra. A Ciência
transforma-se em fundamentalismo religioso, expressão da polarização e
intolerância política do momento. Mas os terraplanistas acertam em um ponto:
toda cartografia é uma representação político-imaginária.
“Boa noite, senhoras e senhores... essa noite
terei o privilégio de fazer uma estonteante revelação que mudará a maneira de
compreender a natureza do Universo desde Newton e Einstein, uma descoberta que
mudará radicalmente a percepção do tempo e do espaço, a verdade escondida por
muito tempo pelo establishment da
indústria militar e espacial: a Terra é... PLANA!”.
Essa era a abertura dos shows em 1984 do
músico e produtor musical Thomas Dolby promovendo seu segundo álbum The Flat Earth. Com o seu “nerd
sinthpop”, bem sucedido depois do sucesso de “She Blind Me With Science” do
álbum anterior, Dolby abria os shows com essa parodia que procurava
ridicularizar o criacionismo e as pseudociências.
Eram os anos 1980, tempos do triunfo do
neoliberalismo da era Reagan-Thatcher. Época da retomada econômica dos EUA e da
Inglaterra com as medidas neoliberais e da financeirização cujo maior ícone
foram os jovens yuppies e o maquiavélico Gordon Geko no filme Wall Street. Tudo
ia muito bem num confiante capitalismo que acreditava que a História tinha
acabado na Razão. Restava parodiar no liquidificador da cultura pop tudo aquilo
que era obscuro e anti-científico.
Mas tudo mudou: a guerra anti-terror e o
derretimento dos blocos econômicos como a Zona do Euro trouxeram insegurança
social, desemprego, crashs financeiros e a catástrofe humanitária dos
refugiados.
Thomas Dolby |
Resultado: a ascensão da extrema-direita
anti-imigração e anti-integração, fundamentalismo religiosos e o crescimento de
uma percepção conspiratória de uma suposta ordem “politicamente correta”, uma
bizarra conspiração gay-feminista-sionista-comunista que exigiria uma imediata
intervenção militar ou mesmo a ação de milícias de “cidadãos de bem” armados.
Pensamento crítico cede ao ressentimento
Como nos ensina a História, nesses momentos o
anti-intelectualismo, o irracionalismo e os fundamentalismos ganham força. Por
trás de tudo isso, a desconfiança de que por muito tempo contaram somente
mentiras para nós. O pensamento crítico cede lugar à fé cega e ao
ressentimento.
A bizarra teoria da Terra Plana é um desses
ao mesmo tempo curiosos e preocupantes fenômenos antropológicos. A paródia
trash dos anos 1980 de Thomas Dolby foi substituída atualmente por um crescente
números de adeptos fieis de uma visão do mundo que humanidade acreditou por
muitos séculos. Até chegarem os filósofos e matemáticos gregos como Aristóteles
e Eratóstones onde, através da lógica e trigonometria rudimentar, abriram o
caminho para a comprovação da esfericidade terrestre.
Hoje, terraplanistas comprovam suas teorias
da forma mais empírica possível: um homem que supostamente conseguir provar que
a terra é plana com uma régua (sem comentários...); alguém que subiu num balão
e, a 34 km de altura, não viu a curvatura terrestre (altitude insuficiente num
planeta que possui 400.000 km de circunferência); os mapas de navegação são
planos e não esféricos (o que ignora um simples princípio semiótico: o mapa nunca
será o próprio território, é apenas uma representação) etc.
E a NASA é a agência que lidera a
conspiração, divulgando fotos montadas sobre a curvatura do planeta e,
principalmente, mantendo a farsa de que o homem pousou na Lua – na verdade, Lua
e Sol são pequenos discos que giram sobre a superfície plana da Terra.
A recorrência da Terra Plana
A Terra Plana é uma recorrência histórica.
Quando em 1925, na Alemanha e na Áustria, os carteiros entregaram uma carta a
todos os cientistas e intelectuais avisando de que Hitler não só “limparia a
política”, mas expulsaria a “falsa ciência” (e que eles deveriam escolher entre
“estar conosco ou contra nós), surgiu o movimento de reação à “ciência
sionista”, “burguesa” ou “materialista”. Uma nova Astronomia, Cosmologia e
Física que demonstravam que a terra era oca (e que nós habitamos o interior
iluminado por um “Sol interno”) e de que era plana, contida por uma abóboda da
qual jamais sairíamos.
Os alemães seriam descendentes da raça-mãe da
Atlântida e que recuperariam essa ascendência superiora através de uma guerra
contra a conspiração das teorias científicas das raças inferiores – e os
alemães recuperariam os antigos poderes que os homens somente atribuíam aos
deuses.
Teorias pseudocientíficas e antigas concepções
místicas alimentaram o nazismo em um momento de polarização política e
catástrofe econômica com a hiperinflação e desemprego pós-guerra. Em momentos como esse, sempre o
intelectualismo surge de forma franca. E na época, sociedades secretas como a Vril, A Loja Luminosa e a Tule se transformaram em seitas que
misturavam Teosofia, magia neopagã com uma solenidade oriental e terminologia
hindu – um vasto movimento de renascimento do mágico no interior da própria
Política - leia PAUWELS, Louis e .BERGIER, Jacques. O Despertar dos Mágicos, Difel, 1990 e AMBELAIN, Eobert. Os Arcanos Negros do Histerismo, José Olympio, 1995.
Como nos tempos atuais, de tão desgastada e
sem credibilidade pela corrupção e mentiras, no período que antecedeu a Segunda
Guerra, a Política levou uma infusão mística, mágica e mitológica para
novamente galvanizar as massas... e deu no que deu...
Nazismo: a ascensão das teorias da Terra Oca e da Terra Plana |
À espera de uma tradução política
A questão é que esse submundo pseudocientífico
sempre existiu, sempre à espera de uma tradução política que o fizesse sair à luz do
Sol. Como demonstra a trajetória de Samuel Shelton (1903-1971), fundador da
Flat Earth Research Society (IFERS) em 1956.
Na década de 1920 estava convencido
que iria revolucionar os meios de transporte com a “nave estacionária” uma nave
que apenas se elevaria e flutuaria no ar e o movimento da Terra faria o resto –
assim que o planeta girasse o bastante, a nave pousaria em outro local na mesma
longitude...
Como não viu o projeto decolar
(desculpe o trocadilho) Shelton foi contaminado pela atmosfera mágica das teorias
da Terra oca e plana. Em 1956 fundou a IFERS, que sempre sobreviveu com um
pequeno grupo de adeptos – até o músico Thomas Dolby quis participar, desde que
fosse o membro 0001... uma certidão de sócio cairia muito bem à sua imagem
“nerd synthpop”.
Mas recentemente, houve um
crescimento exponencial no número de seguidores com vídeos e textos
disseminados pela Internet.
Embora os teóricos da Terra Plana
não consigam explicar o porquê dessa conspiração da Terra Esférica, acreditam
em algum fator financeiro – a NASA e outras agências espaciais lucrariam
bastante com o financiamento do Governo para simular fotos e viagens espaciais.
O problema não parece ser a teoria
em si – muitos membros da sociedade veem a teoria como uma espécie de exercício
epistemológico para neófitos nas discussões em metodologia científica ou também
um exercício de filosofia solipsista para iniciantes.
Cartografias imaginárias
A questão é que historicamente, pela
recorrência, essas pseudociências têm se demonstrado como sintomas de radicalizações
políticas sérias. O apego a epistemes antigas e medievais como fossem a própria
expressão do atual radicalismo político e conservadorismo. Como mostramos em postagem
anterior sobre um autêntico bestiário de ideias que supostamente teriam sido
superadas pela Ciência e que retornam na atualidade: neodarwinismo, malthusianismo, antropologia criminal
etc. – clique aqui.
Mas numa coisa os teóricos da Terra
Plana têm razão: há uma natureza político-imaginária nas representações
cartográficas do planeta. A cartografia não é um simples representação de um território, mas uma expressão de poder, da divisão de classes e reprodução de hierarquias.
Por exemplo, nos primeiros mapas
portugueses na época das grandes navegações do século XVI o mundo é
representado invertido – forma de expressar que os navegadores não se dirigiam
para baixo (o Inferno ou os abismos) mas para cima, em direção aos céus. Com
institucionalização do império marítimo e as colônias, Portugal e Espanha são
colocados na parte superior do mapa, expressando superioridade em relação às
colônias, abaixo.
Modelo hierárquico mantido, primeiro
com o império britânico nos séculos XIX-XX. E hoje com o modelo de globalização
norte-americano.
Mapas são maneiras arbitrárias e
convencionais de organizar o espaço. Não existe o “em cima” e o “em baixo”.
A representação cartográfica da ONU,
por exemplo, procura a igualdade ao organizar o planeta posicionando o Polo
Norte no centro e os continente espalhados em uma representação plana – o que
só incendeia a imaginação conspiratória dos terraplanistas: a ONU estaria
revelando a verdade, mas de forma cifrada...
Ou como Thomas Dolby falava na
música Flat Earth: “A Terra pode ter
a forma que você quiser”.
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