O episódio da perda milionária de dois ex-colegas do Palmeiras com investimentos de criptomoedas foi emblemático, dentro da onda atual de notícias sobre golpes envolvendo coaches e gurus de autoajuda através de perfis em redes sociais. Para além da repercussão midiática, há elementos recorrentes em todos esses casos: bolsonarismo, neopentecostalismo, autoajuda, canastrice e uma certeza mágica de que com a atitude otimista diante das oportunidades, recompensas virão. Essa é uma geração que foi formada pelo tripé religião-educação-informação. Tripé aparelhado por uma ideologia cujas origens estão no movimento filosófico-esotérico do “Novo Pensamento”. Movimento que inspira a direita alternativa (“alt-right”) do século XXI e que mantém ativo o “exército psíquico de reserva”: um ativo psíquico geracional, eventualmente acionado para apoiar líderes extremistas de direita. Assim que as crises econômicas cíclicas do Capitalismo exigirem, como foi na recente ascensão global alt-right.
“Scarpinha, agora não tem mais questão de confiança, irmão. A questão agora é orar. Fazer o que eu sei. Agora é esperar no Senhor”, falou o jogador de futebol Willian Bigode em um áudio na rede social para o seu amigo, o também jogador Gustavo Scarpa, consolando-o depois do prejuízo milionário de R$ 6 milhões em criptomoedas.
O ex-colega do Palmeiras tinha apresentado a empresa de investimento em criptomoedas Xland, que tem uma parceria com a empresas de Willian Bigode, a WJLC. A Xland prometia lucros muito acima de qualquer aplicação no mercado (até 5% ao mês). Um golpe clássico no esquema pirâmide ponzi.
Para além da sintaxe sofrível do ex-atleta do Palmeiras, o que chama a atenção nesse caso é o conjunto de elementos que torna um episódio emblemático – um episódio de repercussão midiática do cotidiano atual de coaches, gurus, perfis falsos em sites de relacionamentos et caterva que aplicam os mais variados golpes nas redes sociais.
Até aqui isso não seria nenhuma novidade. Afinal, como diz um provérbio, “nasce um idiota a cada minuto”. Porém, o que há de novo aqui é a linguagem do golpe. No passado, o estilo desses golpistas (fisionomia, apresentação etc.) faria parte daquele tipo de pessoa da qual ninguém compraria um carro usado. Não inspiraria a menor confiança ou credibilidade.
Hoje, esses coaches ou gurus se apresentam quase como estrelas de funk ostentação: canastrões, overacting, grosseiros e vulgares, ostentando riquezas e prometendo aos seus seguidores que trilharão o caminho aberto por eles. Por outro lado, os seguidores esperam pura e simplesmente mágica: ganhos rápidos e espetaculares. No fundo sabem que há algo de ilícito, mas tudo é racionalizado pela linguagem motivacional e de positividade propagandeado por esses coaches e gurus – se você mantiver uma atitude otimista diante das oportunidades, recompensas virão.
Para além do estilo desses golpes 2.0, as lamentações de Scarpa e Bigode revelam outros elementos: orar e ter fé no Senhor (“esperar no Senhor”, como expressa de forma sofrível o jogador). Além do contexto político que, por assim dizer, dá a liga ao episódio: tanto os sócios da Xland quanto o atleta Willian Bigode são bolsonaristas empedernidos. Scarpa e Bigode são ex-atletas do Palmeiras, clube notório pela aproximação com o bolsonarismo, através de Leila Pereira, presidente da Crefisa, patrocinador principal do clube paulista.
Você compraria um carro usado dessas figuras tão canastronas? |
Bolsonarismo, neopentecostalismo, autoajuda, canastrice, magia. Esse são elementos desse episódio que deve ser considerado exemplar, não apenas porque ganhou repercussão midiática pelos futebolistas envolvidos.
Colocando este episódio em perspectiva com a recorrência de notícias sobre golpes em aplicativos de relacionamentos e a onda de coaches dos mais variados campos (financeiro, profissional, amoroso, motivacional etc.), este humilde blogueiro suspeita que essa tendência seja resultado expansivo de um projeto político-ideológico que envolve a escalada global da extrema-direita. Mais precisamente, o fenômeno do século XXI da “direita alternativa” (alt-right), fração da extrema-direita dos EUA que se caracteriza pela rejeição do conservadorismo clássico. Principalmente pela sua influência ideológica em um amalgama de influências do século XIX conhecida como “Novo Pensamento” – mix de Transcendentalismo, Espiritismo, Mesmerismo, Ciência Cristã e Teosofia.
Amalgama resgatado no século XX pelo “Tradicionalismo” do filósofo esotérico Julius Évola - visão de mundo popular nos círculos de extrema-direita e religiosos alternativos. Baseando-se na tradição ocultista e esotérica, Evola acreditava que progresso e igualdade eram noções perniciosas. Evola foi um simpatizante do nazismo e o fascismo italiano, por ver neles a realização do ideal da “sinarquia” (o oposto da anarquia): um governo total organizado em castas.
Evola é influente e citado por Steve Bannon, guru ideológico e estrategista da campanha eleitoral de Trump.
Não se engane, caro leitor, ao ver Trump caçado pelos democratas nos EUA para evitar que ele volte a se candidatar. Ou aqui no Brasil, Bolsonaro se tornar um fusível que está sendo queimado pela grande mídia. Ou o fato de os Novos Democratas da era Biden terem a grande mídia global ao se dispor para irradiar o identitarismowoke politicamente correto.
As sementes cuidadosamente plantadas nas redes sociais nesse século (inspiradas pela matriz filosófico-esotérica do Novo Pensamento e do Tradicionalismo) estão germinando uma nova sensibilidade. Que periodicamente sempre encontra uma tradução política em figuras como Trump e Bolsonaro. Com a leniência das Big Techs, essas sementes foram plantadas no solo convenientemente desregulamentado do ciberespaço. Afinal, o extremismo de direita historicamente sempre foi útil nos momentos agudos das crises cíclicas do capitalismo.
Portanto, é o momento de entendermos no que consiste a matriz do Novo Pensamento que inspira a direita alternativa.
O Novo Pensamento
A América no final do século XIX estava repleta de influências do Espiritismo, Mesmerismo, Ciência Cristã e Teosofia. Cada um, à sua maneira, imbuiu a cultura espiritual da nação com a convicção de que os mistérios divinos não existiam no degrau mais alto de uma escada cósmica, mas dentro dos cenários da vida cotidiana.
Naquele momento a vida cotidiana estava passando por mudanças notáveis. No final do século XIX, os frutos da ciência moderna apareceram em todos os lugares: telégrafos, motores, eletricidade, sinais sem fio, raios-X e produção automatizada. Na medicina, a teoria dos germes de Pasteur explicava doenças que durante anos haviam resistido à compreensão. Na biologia, Darwin havia teorizado uma ordem gradual no desenvolvimento de todas as formas de vida. Na política, Marx e Engels classificaram a economia como uma questão de “ciência”, na qual resultados inevitáveis podiam ser previstos. Na psicologia, Freud começou a codificar traumas infantis que desencadearam neuroses adultas, enquanto William James e FWH Myers postularam a existência de uma “mente subliminar” (mais tarde chamada de subconsciente ou inconsciente), que era o motor da vida emocional. Juntamente com outros luminares, a dupla fundou as Sociedades Britânica e Americana de Pesquisa Psíquica, que buscavam testar cientificamente a clarividência e a mediunidade. Os hipnotizadores (versões mais respeitáveis dos mesmeristas) reivindicavam o poder de alterar o comportamento por meio da auto-sugestão e do condicionamento.
Sob o impacto da onda de correntes, líderes intelectuais de todas as esferas da vida – acadêmico, clero, empresarial – raciocinaram que os princípios científicos eram aplicáveis a todos os aspectos da existência. Por que não poderia haver uma “ciência” do sucesso, ou mesmo uma “ciência” da religião – isto é, um protocolo de passos definíveis e racionais que produziriam um resultado desejado?
Inspirados pelas possibilidades, um grupo de pensadores religiosos e empresários formou um movimento espiritual vagamente unido em torno desse conceito religioso “científico”. Os pensamentos, argumentavam eles, podiam ser vistos como produtores de eventos reais, como saúde ou doença, riqueza ou pobreza.
O pensamento do filósofo e poeta Ralph Waldo Emerson (1803-1882 foi profeta fundador. “Sabemos”, escreveu nas “Leis Espirituais” em 1841, “que o ancestral de toda ação é um pensamento”. A Bíblia, em sua leitura, parecia concordar, particularmente no Provérbio: “Como um homem pensa em seu coração, assim ele é.”
Num entusiasmado salto de raciocínio, o movimento que veio a se chamar “Novo Pensamento” passou a sustentar que a mente criativa do indivíduo é sinônimo da força criativa chamada “Deus”. Como tal, uma pessoa poderia literalmente pensar que todos seus sonhos poderão se concretizar na vida. Foi a tentativa mais ousada - e influente - da América que o teólogo John Anderson chamou certa vez de "um uso prático dos poderes ocultos da alma".
As dimensões metafísicas do Novo Pensamento se tornaram tão mágicas, tão desenfreadas em sua promessa de potencial ilimitado, que passou a ser considerado “O Segredo dos Tempos”.
Muitos dos escritores e pregadores mais populares desse movimento reinventaram a aquisição mundana como o próprio exercício da vontade de Deus. Foi como se todo o objeto do Transcendentalismo – isto é, a transcendência dos vínculos e distrações terrenas – tivesse virado de cabeça para baixo. E aqui o senso ético e seriedade do Novo Pensamento como movimento religioso tornou-se questionável: o que separaria finalmente essa filosofia de ser outra coisa senão uma ferramenta para perseguir os impulsos mais aleatórios e os desejos egoístas de alguém?
Do Novo Pensamento à direita alternativa
O século XX criou uma bifurcação na herança do Novo Pensamento: de um lado, a “Loja Agape”, o nome da unidade O.T.O. (Ordo Templi Orientis) fundada em 1935, organização ocultista telêmica comandada por Aleister Crowley (“faze tudo o que queres há de ser o todo da Lei”), e nos EUA, por Wilfred Talbot Smith. Frequentada pela elite política, empresarial e artística – principalmente estrelas hollywoodianas.
E do outro, fragmentos do Novo Pensamento para as massas, como por exemplo o livro do Reverendo Norman Vincent Peale “O Poder do Pensamento Positivo”, de 1952, base de toda a literatura de autoajuda e de “self-improvement” em Marketing – a ideia de que a mente pode transformar a realidade aplicada ao dia a dia da meritocracia. O mérito dependeria menos da proficiência profissional e muito mais do poder da mente concentrado em causar transformações e influenciar pessoas. Vulgarização do treinamento formal em “Magick” (Magia do Caos) professado por círculos esotéricos, como a O.T.O.
Uma feliz combinação entre as teorias sobre o Capital Humano na Ciência da Administração, a ideologia da meritocracia, a explosão da literatura de autoajuda e, por fim, o espaço que o empreendedorismo começa a ganhar na teoria econômica, a partir da Teoria do Desenvolvimento Econômico de Schumpeter de 1912.
Porém, o conceito de empreendedorismo se tornou outra coisa: somente através das raízes esotéricas e mágicas do Novo Pensamento tornado vulgata para as massas, pode-se acreditar que no empreendedorismo, magicamente, a força de trabalho poderá se converter em capital, bastando a força do pensamento – e a constelação de qualidades psicológicas em torno disso como “motivação”, “resiliência”, “determinação, “foco”, “inovação”, “criatividade” etc.
A direita alternativa ganha força no século XXI absorvendo o Novo Pensamento de duas maneiras: primeiro como método; e segundo como ideologia.
Como método, a “magia do caos” – o caos como método niilista do “tudo é possível”. E a tecnologia disruptiva dos dispositivos móveis e redes sociais oferecem as ferramentas ideais, como revelaram as estratégias políticas trumpista ou bolsonarista, seja em campanha ou no governo.
Como ideologia, a forma como os subprodutos (ou vulgatas) do Novo pensamento aparelharam a religião, educação e informação.
Na religião, a Teologia da Prosperidade neopentecostal, misturando fé e magia (resquício do Novo Pensamento de que o pensamento é a manifestação divina dentro de cada um de nós): fé deixou de ser forma de conexão com Deus para se converter em ferramenta de disciplina da vontade.
Na educação, ciência e conhecimento são progressivamente substituídos por fé e magia racionalizados por princípios neurocientíficos de engenheiros de fundações educacionais corporativas que assessoram reformas educacionais públicas. Como, por exemplo, o Novo Ensino Médio cujos conceitos de educação financeira e empreendedorismo são álibis para incutir no aluno um conteúdo subliminar: disposições emocionais e cognitivas ideais para manter a confiança no mérito e no sucesso individual.
E na informação, ao invés de oferecer notícias objetivas e o contraditório em debates, o jornalismo corporativo entrega verdadeiros contos motivacionais (ou “inspiradores”, como costumam dizer) sobre histórias de tragédias e superação. Contos em que no final a força da vontade individual sempre triunfa, não importando as intempéries – enchentes, crise econômica, pandemia, guerra e assim por diante.
É nesse tripé de aparelhos ideológicos (religião, educação, informação) que continua sendo gestada essa sensibilidade que cria coaches, gurus e suas “vítimas” das mais variadas formas de esquemas ponzi que promete riqueza por vias mágicas.
No fundo, é a manutenção de um exército psíquico de reserva, o ativo psíquico que a qualquer momento pode ser convocado para golpes políticos ou apoio a líderes de extrema-direita que prometem coisas não muito diferente dos esquemas de pirâmides financeiras. Paradoxalmente, dessa vez bancado por governos democraticamente eleitos.
Enquanto a esquerda não compreender que é nesse tripé aparelhado que ela deve atuar (não só como militância, mas também como programa de governo), sempre ficará vulnerável ao histórico ciclo vicioso dos golpes ou contrarrevoluções.