sábado, novembro 09, 2019

Irrealidade midiática cotidiana: onda de protestos no mundo e o fiasco do leilão que deu certo

Dois didáticos episódios para dissecar as operações semióticas do atual jornalismo corporativo: a cobertura dos protestos no Chile e do megaleilão do pré-sal. No primeiro, tenta-se encaixar a grave crise social chilena no script da “onda de protestos pelo mundo”: Hong Kong, Jordânia, Líbano e... Quito, Chile. Propositalmente misturando Revolução Popular Híbrida (RPH) com protestos genuínos – operação semiótica de “naturalização” para dissimular o significado politico bem diferente dos protestos sul-americanos. E o megaleilão do pré-sal: de um lado, a esquerda e mercado petroleiro falando em “fiasco”; e do outro a grande mídia falando em sucesso do “maior leilão do mundo”. Um “fiasco” muito bem-sucedido dentro da guerra semiótica criptografada: jogar com informações dissonantes para esconder o objetivo mais sombrio do mercado internacional que financiou a guerra híbrida brasileira: não colocar mais um centavo no País para, pacientemente, esperar a hora da xepa. 


“São manifestações que começaram por motivos bastante específicos, mas que acabam por refletir a insatisfação da população com a situação geral do país, um descontentamento com a classe política e aqueles que ocupam o poder”. Esse é o pequeno lead que abre uma matéria do portal G1, da Globo, sobre os “protestos pelo mundo”.
Como diz a matéria, um “resumo” para aqueles que “estão perdidos diante das manifestações que ocorrem pelo mundo”.
Como discutíamos em postagem anterior (clique aqui) o jornalismo corporativo reporta os acontecimentos por dedução: há um script (ou narrativa, como queiram) que precede qualquer evento. Uma narrativa criada pelas chefias, colunistas e editorialistas e repassada como fosse uma correia de transmissão para redatores e repórteres. Uma correia bem rápida na medida em que temos mais jornalistas sentados (diante das telas de computadores ou smartphones) do que em pé – em campo seguindo o próprio faro.
Por dedução, os diferentes protestos em Hong Kong, Líbano, Jordânia, Equador e Chile são encaixados no script da “corrupção da classe política” – script que parece que virou uma espécie de “dedutor universal” desde que as “jornadas de Junho” de 2013 no Brasil pariram a Pan-Lava Jato – o que chamávamos de “mutirão” virou “força tarefa” e a “luta contra a corrupção” virou o equivalente geral que explicaria qualquer acontecimento político no planeta.

Protestos e fiasco

Dois acontecimentos abalaram esse raciocínio dedutivo da grande imprensa: os violentos protestos que expuseram a crise social no Chile e o “suposto” fiasco (essa será uma questão controversa que abordaremos adiante) do leilão de campos do pré-sal nessa quarta-feira.


O abalo produzido pela emergência do real logicamente fez a grande mídia disparar seu mais costumeiro mecanismo de defesa: a estratégia semiótica da naturalização - técnica de tratamento dos fatos no sentido de tirar deles peso, impacto ou dramaticidade. Dilui-se o impacto de acontecimentos ao reporta-los dentro de uma lógica dedutiva de que os fatos acontecem dentro de um script esperado pelo jornal. 
A irrupção dos protestos no Chile cujas ruas foram ocupadas por milhões de manifestantes pegou de surpresa a grande mídia por ser um sintoma da crise, fratura social frente a um modelo econômico extremamente desigual. Porém, é o principal modelo para as reformas neoliberais pretendidas para o continente.
Por esse motivo, a mobilização semiótica de jornalões, portais e telejornais para trivializar os acontecimentos: haveria uma “onda” de protestos correndo o mundo. Por que? Ora, porque as pessoas estão cansadas “da classe política”, da “corrupção” e, por consequência, cansados daqueles que “ocupam o poder” e sedentos por “democracia”.
Em última instância, uma narrativa que dá sentido ao golpe político que ocorreu no Brasil e o anseio pelo “novo” na política, representado por figuras como a diáfana Tábata Amaral e o reformador de latas velhas de telespectadores pobres globais Luciano Huck – partilham de uma certa ideia tecnocrática de Política como busca por “boas práticas”, “qualidade” e “soluções”, como fossem candidatos a CEO de alguma corporação e não de um País.

Revolução Popular Híbrida

Claro que o chamado Deep State norte-americano com a sua geopolítica de guerras híbridas promovendo RPHs (Revoluções Populares Híbridas) pelo planeta dá um auxílio luxuoso a essa estratégia semiótica – ajuda a grande mídia embaralhar e colocar os acontecimentos disruptivos do Chile e Equador no mesmo saco das RPHs de Hong Kong, Líbano e Jordânia.


E o que são RPHs? Elas têm diversas denominações: “Primaveras”, “levantes”, “jornadas”, “protestos”, não importa o nome. Em todos eles, sempre a cobertura midiática relata os acontecimentos sob a narrativa do “espontâneo”, do “novo”, da “renovação na política” - Jordânia (2013), Egito (2013), Ucrânia (2014), Georgia (2003), Hong Kong (2014), Síria (2012), Tunísia (2010), Líbia (2011) e, finalmente, Brasil (2013-16) – sobre a receita para fazer uma RPH clique aqui.
Propaganda, branding management, técnicas avançadas de psicologia de massas fomentam toda essa “espontaneidade” com objetivos geopolíticos bem definido contra o governo-alvo.
Mas como identificar as diferenças entre um protesto genuíno e uma RPH? Algumas dicas:
(a) Observe as faixas “espontâneas” estendidas pelos manifestantes em Hong Kong, Jordânia e Líbano: muitas delas são escritas em inglês para ganhar a simpatia da opinião pública internacional e, principalmente, de políticos norte-americanos – por exemplo, Câmara dos Representantes dos EUA aprovou três leis em apoio aos “manifestantes pró-democracia”.
Não é para menos que manifestantes em Hong Kong empunham bandeira dos EUA nos protestos.
Bem diferente dos protestos em Quito ou Santiago: como acontecimentos genuínos, faixas e ícones dos protestos são em espanhol – são acontecimentos reais e que, por isso, não fazem relações públicas de si mesmos.


(b) Como eventos relações públicas de si mesmos, precisam de uma marca: por exemplo, em Hong Kong é o guarda-chuva – a chamada “Umbrela Revolution”. Assim como tivemos a “Revolução Laranja” (Ucrânia), “Revolução Verde” (Irã) ou “Jornadas de Junho” no Brasil. 
Se não deu tempo para criar e gerir uma marca, parte-se para uma causa identitária que comova a opinião pública internacional: na Jordânia, o “protesto dos professores que desafia o status quo”. E no Líbano as “feminist blocs” – mulheres que lutam por direitos numa sociedade conservadora, fecham estradas e até chutam um guarda costas armado do ministro da Educação...
Tal esforço retórico não é visível nas coberturas dos protestos sul-americanos. Ou melhor, a retórica é outra – não visa conquistar simpatia, mas causar repulsa pelo caos, anomia, violência e vandalismo.
(c) RPHs são sempre reportadas como “espontâneas”, “horizontais”, “sem lideranças” e, principalmente, “suprapartidárias” para criar o aspecto de “novo” contra a “velha Política”. Enquanto nos protestos como no Chile fica bem claro o caráter organizado em movimentos sociais: CUT (central sindical), NO+AFP (movimento contra a capitalização da aposentadoria) e movimentos indígenas Mapuches. Há porta-vozes e emissão de comunicados.
Mas nas estratégias de RP das RPHs prefere-se individualizar, criar personagens, de preferência femininas e jovens, para figurar a imagem do “velho” contra o “novo” – clique aqui.


(d) Por isso, a diferença semiótica da cobertura televisiva:  nos acontecimentos genuínos, opta-se pelo chamado “jornalismo drone”: imagens do alto e sem sonoras. Enquanto nos ambientes controlados das RPHs, jornalistas facilmente se misturam nas multidões para entrevistar e gravar imagens.
(e) Por que? Porque nas RPHs temos protestos em clima de festas, como, por exemplo, nos protestos na Jordânia: “Raves improvisadas”, “celebrações de casamentos no meio da multidão”, relata o site BloombergEventualmente surgirão pneus queimados e choques com a polícia. Mas é para sustentar a narrativa midiática: “a manifestação começou pacífica, porém...”.
Nos acontecimentos genuínos, jornalistas preferem manter-se numa distância segura.
(f) Perceba caro leitor a diferença de cobertura da mídia corporativa brasileira: nos blocos noticiosos internacionais dos telejornais, Hong Kong, Líbano e Jordânia são reportados em primeiro lugar, com sonoras, entrevistas e imagens do interior dos acontecimentos. 
Na América Latina, mais “jornalismo drone” e o viés da baderna, vandalismo e anomia. 
(g) Mas por que tanta gente saiu às ruas em protesto? Em Hong Kong, Jordânia ou Líbano, há até acontecimentos gatilhos: respectivamente, o projeto de lei de extradição, aumento de impostos, imposto sobre conversas pelo WhatsApp. Mas logo a grande mídia converte a RPH em slogans ao gosto Ocidental como “luta pela Democracia”, “contra a corrupção” ou “contra a velha elite”, “combate à roubalheira” e outras bandeiras moralistas que se confundem com “nova política”. 
Enquanto no Chile e Equador os motivos começaram concretos e assim continuaram: alta dos combustíveis e do transporte público que acabaram evoluindo para a crítica do próprio modelo de política econômica neoliberal.


(h) As RPHs de lugares distantes e culturalmente tão diversos têm que se tornar inteligíveis para o público Ocidental. Então vemos temas da cultura pop nas manifestações: máscaras do V de Vingança do personagem Guy Fawkes ou máscaras do recente filme sobre o Coringa. Sem falar em tipos vestidos de super-heróis. Assim como na RPH brasileira tivemos Batmans em meio a manifestantes estendendo indefectíveis faixas em inglês.

O fiasco que deu certo

Esse Cinegnose vem insistindo na tese de que a estratégia de propaganda do atual Governo é de criptografia: explorar um conjunto de informações dissonantes – uma guerra simbólica que embaralha eventos e informações num caos de dissonâncias que ocupa diariamente a pauta da grande mídia.
O leilão da cessão onerosa do pré-sal nessa semana foi estranha porque um fiasco anunciado. Muitos operadores que conhecem o mercado de petróleo sabiam que o aguardado e midiatizado “megaleilão” não atingiria as expectativas do Governo.
Segundo Daniel Lima, em sua coluna no jornal Folha de São Paulo, “executivos de uma das maiores empresas do setor estiveram em Brasília, conversaram com autoridades e disseram que iriam embora antes desta quarta”. Resultado: nenhum grande executivo das petroleiras globais veio acompanhar as ofertas.


Nesse meio tempo, a grande mídia festejava o megaleilão como “o maior do mundo” e que garantiria o equilíbrio fiscal dos Estados com a distribuição da fortuna (mais de 100 bilhões de reais) dos bônus de assinatura que as petroleiras vitoriosas pagariam.
Fiasco: quem salvou as aparências foi a Petrobrás (a empresa supostamente quebrada e descapitalizada pela corrupção petista) com a parceria de última hora de duas empresas chinesas.
Mas a guerra híbrida brasileira que culminou no impeachment de 2016 não foi financiada pela geopolítica do petróleo? Toda a milionária campanha em torno da Lava Jato e agora não querem mais o petróleo dos gigantescos campos do pré-sal?
Mas do ponto de vista da estratégia criptografada diária do clã Bolsonaro, o chamado “megaleilão” pode ter sido tudo, menos um “fiasco”. Há muitos bônus ideológicos de propaganda e pragmáticos para as petroleiras globais:
(a) Temos uma estocada ideológica na guerra cultural que o clã Bolsonaro trava com a esquerda, o “politicamente correto” e os “globalistas”. É como se dissessem: “vejam! Caiu o mito da esquerda de que o pré-sal foi o motivo do golpe...”.
(b) Muito dinheiro já foi gasto no Brasil para operar a logística da guerra híbrida brasileira. Nenhum centavo mais será colocado no País. Nesse momento a grana dos fundos de investimentos globais estão abandonando o País.
Propositalmente colocaram um personagem do baixo clero das finanças e aprendiz do ultraliberalismo, Paulo Guedes (ao contrário de nomes do mainstream como Armínio Fraga e Pedro Malan), para implementar seu plano tosco de terra arrasada. 
Por isso, sabem que poderão em um futuro próximo colocar as mãos em toda essa riqueza no desespero da das almas brasileira. Aguardam pela terra arrasada – como afirma o mestre em Linguística pela Unicamp, Gustavo Conde, “o Brasil se tornou o país mais promissor do mundo para deixar de existir em definitivo”. 


(c) O “fiasco” do leilão deu ao governo o pretexto que esperava para apoiar projeto de lei do senador José Serra (PSDB-SP) que acaba com a preferência da Petrobrás nas operações do pré-sal. “O benefício à estatal teria afugentado as empresas estrangeiras”, afirmou Renta Isfer, secretária de Petróleo e Gás do Ministério de Minas e Energia, após o fracasso do “maior leilão do mundo”. 
Tudo dentro dos planos da privatização da Petrobrás, rumo à xepa ansiosamente aguardada pelas petroleiras globais.
(d) Esse episódio confirma o papel da grande mídia, principalmente o jornalismo-lobby do canal Globo News, de manter o máximo que puder a bolha especulativa de uma suposta euforia “mercado” com o pacotaço de Paulo Guedes que fará a economia pegar no tranco.
Foi risível o malabarismo retórico dos infográficos das tensas repórteres de voz fanhosa do Globo News, ao vivo, tentando manter o astral alto: nos infográficos, o selo “O MAIOR LEILÃO DO MUNDO”, em letras garrafais vermelhas... enquanto a repórter Juliana Rosa tentava não deixar a bola cair: “70 bilhões de reais, recorde histórico!”.
Concluindo, como estratégia criptográfica o fiasco do megaleilão foi um sucesso e ao mesmo tempo um sombrio sinal das intenções daqueles que financiaram a guerra híbrida brasileira: irão até às últimas consequências para terminar aquilo que começaram.

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