Teve repercussão internacional, ele chamou o autoproclamado presidente Juan Guaidó para o debate e o Google o reconhece como presidente do Brasil. Estamos falando de uma perfeita bomba semiótica de trolagem (“culture jamming”): através do Twitter, o veterano ator José de Abreu se proclamou presidente do Brasil e vem postando resoluções executivas tais como convocar Chico Buarque para o ministério e Marcelo D2 se colocou à disposição para o novo governo. Uma trolagem perfeita num momento em que a grande mídia vive a saia justa de tentar dar naturalidade e lógica a eventos arbitrários na atual guerra híbrida no Brasil e Venezuela. O impacto estratégico dessa bomba de trolagem está na semelhança da questão semiótica proposta pelo conto "A Carta Roubada" de Edgard Allan Poe: o que procuramos pode estar na frente do nosso nariz – na intransitividade dos signos da grande mídia, tão vazios quanto uma nota de três reais.
Este “Cinegnose” vem insistindo em postagens e workshops nos quais participa que diante de um contexto de guerra híbrida, no qual a grande mídia combinado com a chamada “cultura de convergência” (redes sociais digitais e dispositivos móveis) têm papel central, as táticas de guerrilha semiótica são as primeiras formas de ativismo político.
Se no Brasil foi fácil as táticas de guerra híbrida encontrarem o gatilho cognitivo ideal para chegar ao impeachment de 2016 (a apropriação das manifestações de rua a partir de 2013, anti-petismo e polarização da opinião pública), na Venezuela as coisas fugiram ao script.
Mesmo depois da mídia corporativa internacional e agências de notícias baterem nos “indicadores macroeconômicos em colapso”, no “aumento da desnutrição” e “regressão epidemiológica” (que, de resto, o Brasil apresenta o mesmíssimo quadro) transformando a Venezuela em “tragédia humanitária internacional” e enquadrar o presidente Maduro como “ditador”, o governo insiste em não cair.
A perplexidade é tão grande que o Comandante Sul das Forças Armadas dos EUA, general John Kelly, em entrevista à CNN, apontou explicitamente que o interesse norte-americano na Venezuela é ter o controle sobre as maiores jazidas de petróleo do planeta (clique aqui), mandando às favas qualquer prurido moral.
Golpe virtual
Como acompanhamos recentemente, a última cartada foi o líder opositor Juan Guaidó se proclamar presidente da Venezuela: se do lado dos EUA, sem vacilar, as intenções se tornaram explícitas, então do lado midiático o jogo da cena acabou – se o golpe não deu certo, a mídia empossa Guaidó como novo presidente e cria um golpe virtual, contando até com apoio internacional. Para começar, do inacreditável clã Bolsonaro.
E o Dia D foi 23 de fevereiro, no qual o auto empossado presidente lideraria a entrada de “ajuda humanitária” pelas fronteiras da Venezuela, através do Brasil. Um Cavalo de Tróia, para colocar dentro daquele país armas e agentes mercenários para tentar desestabilizar o governo Maduro. Esperavam-se soldados desertando para o lado brasileiro e um povo aliviado dando apoio à causa “humanitária”. Porém, nada aconteceu! A não ser a figura do presidente virtual acenando para a claque midiática.
Enquanto isso, a grande mídia brasileira vive uma dupla saia justa: de um lado assumiu a missão de dar alguma racionalidade, método ou um mínimo de seriedade nas intenções em um governo brasileiro no qual ministros e generais batem cabeça e falam barbaridades em série; e do outro, dar sua cota internacional de ajuda ao autoproclamado presidente Juan Guaidó e encontrar também alguma racionalidade em um político que repentinamente se auto nomeia alguma coisa.
A trolagem de José de Abreu
Em meio a esse cenário no qual jornalismo corporativo parece ter perdido totalmente o pudor, eis que o veterano ator José de Abreu dispara uma bomba semiótica de trolagem – “culture jamming”, ativismo semiótico de guerrilha que visa romper ou subverter conteúdos midiáticos, expondo suas verdadeiras intenções ou artificialismo.
Na noite do dia 25 de fevereiro, José de Abreu se proclamou presidente do Brasil numa série de publicações no Twitter, ironicamente dizendo que seguia o exemplo do líder da oposição venezuelana.
“A partir de hoje (25) eu sou o autodeclarado Presidente do Brasil. Igual fizeram na Venezuela. Lulá está nomeado chefe da casa civil, militar e religiosa do Brasil”, escreveu o ator. Desde então, publica suas decisões como presidente.
Minutos depois, alguém foi à página da Wikipedia no verbete Brasil e mudou a linha referente ao presidente e colocou: “em disputa”, com uma nota de rodapé na qual lê-se que Zé de Abreu é o “presidente interino constitucional”, visto que “a posse de Jair Bolsonaro seria sem efeito”.
Sentindo o impacto da explosão dessa bomba semiótica, a mídia corporativa brasileira tenta minimizar seu estrago – enquadra a notícia em editorias como “Celebridades”, “Famosos” ou “Televisão”. Enquanto em sites internacionais a repercussão é como notícia política, como na “Brasil Wire”: “Meet Brazil’s new President: José de Abreu”... clique aqui.
Uma bomba perfeita
Uma perfeita bomba semiótica de trolagem. Se não, vejamos:
(a) Uma brincadeira ao mesmo tempo séria e irônica com esses tempos de “democracia plebiscitária” nas redes sociais. Como tenta a direita nacionalista de Trump, Bolsonaro e Steve Bannon, transformar as redes sociais em uma forma populista de “governo direto”, sem representação política. Na qual a discussão pública mediada é substituída por pitacos, bravatas e provocações visando deliberada polarização para travar qualquer debate racional.
(b) A trolagem de José de Abreu explicita no atual momento a ameaça de algo mais sério do que as fake news: a pós-verdade. Como o linguista Noam Chomsky argumenta, as pessoas não acreditam mais nos fatos e que o critério de verdade deixou de ser importante nas interlocuções pessoais. A trolagem do ator confirma de forma tragicômica o diagnóstico de Umberto Eco sobre a Internet e as redes sociais: “as mídias sociais deram direito à fala a legiões de imbecis que antes falavam só no bar, sem causar danos à coletividade”, frase dita após uma cerimônia na Universidade de Turim, em 2015.
(c) O despudor da grande mídia atual é tão grande que fica explícito o artifício e a intransitividade entre discurso e a realidade – como assim, alguém se autoproclama presidente e a comunidade política internacional o reconhece como Chefe de Estado?
O que lembra o conto de Edgard Allan Poe “A Carta Roubada” que inaugura a moderna literatura policial. Poe nos conta a história de uma carta que foi surrupiada e escondida onde ninguém encontra, mesmo estando na frente do nariz dos protagonistas: em um porta-cartas pendurado no meio da lareira.
Pois a constitucionalidade da autoproclamação de Guaidó e a democracia plebiscitária de Bolsonaro (que os analistas políticos do nível de Camarottis ou Mervais tentam encontrar alguma seriedade ou lógica) parecem-se com a carta de Poe: são meros significantes vazios e intransitivos, sem lastro com a realidade. Em termos linguísticos, significantes sem significados.
Enquanto no conto de Poe o delegado que investigava o roubo levava em conta as estatísticas dos seus anos de polícia (sempre os criminosos ocultam objetos roubados em lugares rebuscados), não considerou como um criminoso poderia agir com simplicidade – esconder a carta no lugar mais óbvio.
Pois a autoproclamação de Guaidó, assim como as inúmeras notícias da pauta do mainstream jornalístico, são como a carta roubada de Poe – são narrados e analisados como fatos lógicos, com uma racionalidade histórica.
Mas nada mais são do que nomes, signos tão vazios como uma nota de três reais.
A trolagem de José de Abreu explicita isso, ao repetir no humor e ironia o mesmo gesto de um personagem supostamente pertencente à realpolitik.
“Vamos respeitar a minha presidência como estão respeitando a do venezuelano, por que não”, publicou José de Abreu.
Esse é o objetivo estratégico de toda guerrilha anti-mídia: desmoralizar a agenda da grande mídia.
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