A invasão de um solo de trompete num link ao vivo do “Jornal da Globo” entoando o refrão de “Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula” é mais uma mostra da eficiência da estratégia de guerrilha antimídia do “culture jamming” (trolagem) – tática anárquica de criar ruídos, atrapalhar ou interferir no fluxo normal da informação. No atual cenário de guerra híbrida (demonstrado pela imediata criação de uma “cinderela de esquerda” pelo BBB18 após a ocupação do “tríplex do Lula”), a trolagem do link ao vivo da Globo demonstra seu poder de fogo por potencialmente mobilizar elementos semióticos de opinião pública fundamentais: clima de opinião, importância e ambiguidade, ironia e sarcasmo e trolagens multi-culturais. Eficácia que só aumentaria através de uma espécie de “temporada de caça aos links ao vivo da grande mídia”, ação de guerrilha midiática que atingiria o ponto fraco da TV atual: apesar do seu “tautismo” crônico, a TV tem necessidade de abrir pequenas janelas (blindadas) para o mundo. Afinal, ela vive do álibi da informação e entretenimento.
Lá
pelos idos de 1983, o semiólogo italiano Umberto Eco já alertava que a
televisão há muito tinha deixado de ser uma “janela aberta para o mundo” no seu
texto “Televisão: a Transparência Perdida”.
De uma televisão que “falava das inaugurações dos ministros e cuidava
para que o público aprendesse apenas coisas inocentes, mesmo à custa de contar
mentiras”, hoje a TV fechou-se em si mesma: é metalinguística, fática, ou seja,
interessada apenas em manter o contato, a audiência.
Tão
fechada em si mesma que para ela os eventos do mundo só acontecem para que ela
possa transmiti-los segundo sua logística e que, de preferencia, dê para se
encaixar na sua grade de programação. Caso contrário, não aconteceu. Não foi
História.
Por
isso, nunca uma mídia se tornou tão forte e autocentrada como a televisão - e
no caso brasileiro, exponencialmente com o fenômeno do monopólio da Rede Globo.
Mas ao mesmo tempo tão frágil a qualquer imprevisto ou acontecimento eruptivo
que abale a descrição que a TV faz de si própria.
O trompete inconveniente
O
incidente do solo de um trompete entrando no link ao vivo do Jornal da Globo na
noite de quarta-feira (25) é um exemplo dessa fragilidade que repentinamente
pode ser revelada na demonstração diária
de poder da TV (Globo) - veja o vídeo abaixo.
Ao
vivo de Brasília, um repórter iniciava comentário sobre a reação dos
procuradores da Lava Jato diante da decisão do STF que favoreceu Lula – bate-bumbo
necessário para mostrar que a emissora paira como uma ameaça sobre a cabeça de
cada ministro do Supremo.
Depois
de alguns segundos, ouve-se de fundo um solo de trompete do refrão tradicional
“Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula”. Estoico, o repórter continua a tecer os seus
comentários, como se nada estivesse acontecendo. Dá para imaginar o esforço do
jornalista naquele momento, para manter o fio da meada dos seus pensamentos –
se não, deve ser mais um profissional da emissora que pratica o jornalismo de
ponto eletrônico: repete os comandos que vem do switcher ou dos próprios chefes
de redação.
Quanto mais o repórter tentava ignorar o solo, mais alto o trompetista
Fabiano Leitão tocava. E depois, numa outra entrada ao vivo com o mesmo
repórter, Fabiano tentou emendar com outro clássico, o “Lula lá”, das eleições
presidenciais de 1989.
Este Cinegnose vem insistindo
na eficácia de táticas anárquicas de guerrilha antimídia no atual cenário de
guerra semiótica comandado pela Guerra Híbrida - colocada em ação desde 2013,
diretamente dos próceres do Departamento de Estado dos EUA a partir do momento
em que o Brasil tornou-se uma ameaça à geopolítica norte-americana do petróleo.
As táticas conhecidas como “media prank” (pegadinhas) ou culture jamming
(trolagens) são tão conhecidas como a estratégia de “empate” (tática entre o
pacifismo e o belicismo) colocada em prática na ocupação do “tríplex do Lula”
no Guarujá.
Explorando o ponto fraco da TV
As pegadinhas e trolagens como guerrilha antimídia podem ter efeitos
cada vez mais letais se entendermos essa fraqueza da TV (e de resto da grande
mídia de massas): quanto mais as mídias tornam-se tautistas (tautologia +
autismo midiático), mais tornam-se vulneráveis a irrupções do mundo externo.
Embora a televisão se torne cronicamente fática e metalinguística, ela
ainda necessita abrir pequenas janelas (blindadas) para o mundo externo: links
ao vivo, transmissões de eventos esportivos, coberturas de manifestações
políticas, enviar repórteres a campo etc.
Nesse momento revela-se a fraqueza da poderosa TV em geral (Globo, em
particular): as pequenas janelas abertas para o mundo real (afinal, o álibi da
TV permanece a informação e o entretenimento) são blindadas pela pauta, ponto
eletrônico e todo o aparato logístico... mas estão em ambiente público.
Essa blindagem pode ser constantemente desafiada e colocada em xeque com
acontecimentos irruptivos, imprevistos. Não violentos, mas irônicos.
O teórico da “culture jamming”
(a tática de criar ruídos, atrapalhar ou interferir no fluxo normal da
informação), Abbie Hoffman, dizia no seu livro “Steal This Book” (1971) que
deveriam ser explorados quatro sentimentos: choque, vergonha (alheia), medo e
raiva. Mas poderíamos acrescentar um quinto sentimento: a ironia (o humor, o
riso cínico). O mesmo efeito de riso das gags contra o socialmente mais forte
que Chaplin adorava colocar em seus filmes. Como, por exemplo, a gag do sorvete
que cai no decote de uma burguesa com seu colar de pérolas.
Qual a eficácia de uma trolagem como essa do trompetista que atrapalhou
o livre fluxo ideológico do Jornal da Globo? Vamos ver alguns aspectos:
(a) Clima de opinião:
Toda a tática de guerra híbrida não objetiva a
doutrinação, mas a criação de um etérico “clima de opinião”: a falsa percepção
de que há um consenso ou de que a maioria pensa, age ou aceita determinada
orientação: impeachment, justiça, prisão aos corruptos etc. Como se faz isso?
Com bombas semióticas explodindo em consonância, acumulação e onipresença. O
que acaba criando um “clima” no qual a percepção substitui a realidade.
Se
as trolagens e pegadinhas forem generalizadas (TEMPORADA ABERTA DE CAÇA AO
LINKS E TRANSMISSÕES AO VIVO!) num único sentido (no momento, o slogan “Lula
Livre”), potencialmente pode-se criar esse clima de opinião positivo à causa.
Claro
que a blindagem da grande mídia reagirá qualificando tudo como “vândalos
petistas” etc. Mas percepções são mais poderosas do que palavras. Para as
massas, imagens valem mais do que discursos.
(b) Importância e ambiguidade:
Para muitos pesquisadores (Allport, Postman, DiFonzo
e Bordia – veja referência no final), esses dois quesitos são fundamentais para
a massificação e viralização de um acontecimento. Ver a poderosa Globo numa
situação de saia justa é “importante” (até para um deleite mórbido: ver o outro
em maus lençóis...) e, ao mesmo tempo ambíguo – um trompetista no meio da noite
fazendo um solo de uma música familiar é curioso, interrogante, instigante pela
surpresa e até bizarrice.
(c) Ironia, sarcasmo:
foram irresistíveis os trocadilhos como “tromPETISTA”. Além
da própria sonoridade do trompete naquela situação: na dissonância cognitiva
entre uma notícia grave e o solo do artista, o som do trompete pareceu um
comentário cínico ao que o repórter dizia. Criando uma atmosfera farsesca ou de
ópera bufa.
(d) Trolagens multi-artísticas:
A intervenção por meio de um instrumento musical,
abre uma perspectiva de novas ideias para trolagens. Para além de pessoas
passando e gritando “Globo golpista!” ou mostrando furtivamente faixas ou
cartazes para o campo da câmera, um solo de trompete abre novos caminhos mais
bem elaborados – instrumentistas, atores, malabaristas e toda a sorte de
personagens da ruas como vendedores de panos alvejados. Aliás, os novíssimos
produtos da crise econômica, ironicamente qualificados como “empreendedores”.
Um
Grupo de Inteligência Semiótica (GIS, ideal utópico desse humilde blogueiro, se
é que a esquerda se interesse num tipo de guerra simbólica – lutar no mesmo
campo no qual ela foi abatida e defenestrada do poder), assessorando a esquerda com propostas
anárquicas de ação antimídia, articularia essa “temporada aberta de caça”.
E
muito mais do que isso: politizar todas as ferramentas que o marketing e a
publicidade utilizam: em tempos de “paz”, promover produtos e serviços. E em
tempos de deflagração, promover Guerra Híbrida.
Por
“politizar” entenda-se trocar os sinais das ferramentas de comunicação comumente usadas pela Publicidade: buzz marketing, marketing de guerrilha, buzz
agents, agentes virais, marketing viral etc. Mas agora, com o sinal
ideológico trocado ao serem utilizadas pelas esquerdas.
Quem
sabe, a esquerda esteja começando a entender a urgência de repensar as práticas
de manifestação e constestação. Afinal, em menos de quinze dias, testemunhamos
duas arrojadas táticas de guerrilha semiótica: a ocupação do triplex do Guarujá
e a trolagem do solitário trompetista noturno.
Referências
ALLPORT, Gordon; POSTMAN,
Leo. Psicologia del Rumor. Buenos
Aires: Psique, 1973.
DIFONZO, Nicholas; BORDIA,
Prashmant. Psychological Motivations in Rumor Spreads In: FINE, Gary Alan. Rumor Mills – The Social Impact of Rumor and
Legend. New Brunswick: Transaction Publishers, 2005.
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