domingo, junho 10, 2018

Mulheres com testosterona demais para fazer Ciência em "Aniquilação"


O que de imediato é notável em “Aniquilação” (“Annihilation”, 2018) é o elenco de protagonistas totalmente feminino e alusão à ficção científica soviética de “Stalker” do mestre Andrei Tarkovsky. Mas estamos numa produção hollywoodiana de um estúdio traumatizado com o fracasso do filme “Mãe!” no ano passado – uma reflexão gnóstica e metafísica fora da curva.  Por isso, o que era para seguir uma reflexão metafísica (a queda de um meteoro cria uma área de distorção magnética e biológica que se expande), resultou em um sci-fi com mais armas e militares do que Ciência e Filosofia. Um grupo de cientistas forma uma expedição para tentar desvendar o enigma da “Cintilação”. Mas elas passam a maior parte do tempo dando tiros. Mulheres com testosterona demais para fazer Ciência.

No boom atual de filmes de ficção-científica, quer se trate de  filmes como Blade Runner 2049 ou as produções Netflix como Mudo ou Cloverfield Paradox há um visível mix de referências do futurismo de 2001 de Kubrick e o imaginário cyberpunk de Blade Runner e Matrix.

Mas raros filmes desse gênero atual se arriscam a usar as referências do sci-fi soviético de Solaris e Stalker do diretor Tarkovsky – um olhar metafísico para os temas clássicos do gênero (espaçonaves, alienígenas, planetas e galáxias), porém transformando-os em espelhos da própria condição humana.

Alex Garland (diretor de Ex-Machina) é um ponto fora da curva com Aniquilação (Annihilation, 2018) – referências ao sci-fi metafísico de Tarkowsky são difíceis para serem traduzidas em linguagem cinematográfica (pelo menos, hollywoodiana). Tão difícil que a Paramount simplesmente não tinha ideia de como promover o filme, segurando-o para a imprensa especializada até poucos dias antes do lançamento. Para depois, vendê-lo ao Netflix para a distribuição mundial – isso depois do trauma pelo fracasso do filme Mãe! Outro filme que tentou colocar na tela temas metafísicos (gnósticos) difíceis para serem representados audiovisualmente - clique aqui.

Em Aniquilação está a story line e a estrutura narrativa de Stalker do mestre Tarkovsky: alguma coisa parecida com um meteorito atingiu um farol na costa da Flórida, que se tornou o epicentro de um gigantesco perímetro (como “A Zona” em Stalker), uma espécie de bolha de distorção magnética e do tempo-espaço em expansão, da qual nenhuma expedição consegue retornar.


Aniquilação e Stalker


Como em Solaris e Stalker, há um longo preâmbulo que vai emoldurar tudo o que se segue. Mas as semelhanças param por aí. Lembre-se: estamos em Hollywood e a Paramount está às voltas com um filme cuja temática seria, a princípio, “infilmável”. E a “viagem” de Alex Garland teve que se tornar mais palatável. Afinal, seria distribuído internacionalmente.

Em todos esses filmes do atual boom sci-fi é recorrente a presença militar, armas e policiais – verdadeiros fetiches  hollywoodianos. O que deveria ser uma jornada científica como em A Chegada (o esforço científico multidisciplinar em compreender a linguagem ou o propósito de aliens que chegam de surpresa ao planeta Terra), transforma-se em uma intervenção militar de defesa contra o Mal que ameaça a espécie humana.

E nesse aspecto, Aniquilação se alinha à pós-moderna cineteratologia (o Mal informe, “mole”, viral e exponencial – sobre esse conceito clique aqui): todo esforço militar é para evitar a expansão de uma “bolha” supostamente alienígena que potencialmente pode absorver todo o planeta e erradicar a humanidade.


Ou seja, o que acompanhamos em Aniquilação é todo esforço do estúdio Paramount em tornar “compreensível” ou “controlável” uma ficção-científica tão alienígena quanto a ameaça cósmica narrada pelo filme. O que resultou alguma coisa entre Stalker e O Enigma de Outro Mundo (The Thing, 1982) de John Carpenter.

O Filme


Aqui, as mulheres estão no comando. Um grupo de cinco mulheres de diferentes especialidades (Biologia, Física, Psicologia, Paramedicina, Geologia) é enviado para a chamada Área X ou “Cintilação” para investigar os efeitos criado, em uma vasta na área na costa da Flórida, da queda possivelmente de um meteoro.

Nenhum dos grupos anteriores conseguiram retornar. A região é uma grande anomalia eletromagnética da qual não escapam as transmissões de rádio. E está se expandindo, com regiões sendo obrigadas a serem evacuadas pelo exército.

Porém, uma pessoa conseguiu escapar: um sargento chamado Kane (Oscar Isaac), dado como morto depois de um ano desaparecido. Ele retorna de repente, sem memórias, para reencontrar sua esposa Lena (Natalie Portman), uma professora universitária de Biologia.

Mas sua saúde deteriora rapidamente e, em coma, é levado junto com Lena para uma base militar na qual conhece o complexo militar-científico  secreto, criado para investigar e deter a expansão da Cintilação.
O que é imediatamente notável é o elenco totalmente feminino. São cientistas que entrarão na Área X para compreender o propósito alienígena daquilo. O que lembra o filme A Chegada de Denis Villeneuve.

Um elenco totalmente feminino numa época de discussões sobre questões identitárias e as denúncias de assédio na indústria do cinema pega bem para um estúdio de Hollywood. São mulheres, cientistas. Porém, armadas, militarizadas e dispostas a atirar primeiro para fazer pesquisa científica depois.


Se Aniquilação lembra Stalker pelo argumento e a composição visual da Área X (em tudo semelhante com “A Zona” – casas em ruínas semi-submersas em pântanos, o ritmo lento dos diálogos, sequências oníricas na qual alucinação e realidade se confundem etc.), também revela o paradigma do cinema dos EUA: a militarização e o fetichismo das armas.

Se esperávamos um drama semiótico de tentativas de decodificação de uma linguagem alienígena (A Chegada) ou discussões filosóficas sobre Ciência e Arte (Stalker), o que vemos é um thriller de terror sobre as estranhas mutações genéticas naquela área. Criando monstros híbridos, informes.

A região parece ser um gigantesco prisma que refrata tudo: da luz ao DNA. O que resulta numa espécie de entropia biológica – todos os DNA, vegetal, animal e humano, estão se fundindo. Criando assustadores seres híbridos. Enquanto nos humanos os efeitos são a demência, alucinações e paranoia. Suspeita-se que as expedições anteriores simplesmente mataram-se uns aos outros.

Ciência militarizada?


E a forte presença da militarização para tentar debelar o Mal. Consonante com a atual cineteratologia, o elemento alienígena é representado como informe, viral. De questão filosófica, como em Tarkovsky, em Aniquilação vira uma simples questão epidemiológica, de conter algo em expansão viral. Daí a lógica militarizada que perpassa o filme. Afinal, essa é a visão de mundo do império norte-americano em relação ao planeta e ao próprio Universo.

Então, temos uma bizarra narrativa de cientistas armadas até os dentes, como espécies de versões femininas de Rambos intelectualizados. Ou de algum filme heroico sobre a guerra do Vietnã.


Lena até tenta fazer investigação científica: aqui e ali pega gotas de saliva de criaturas ou amostras de sangue. Mas a maior parte do tempo empunha sua pesada metralhadora e atira. Afinal antes de ser bióloga era... soldado no exército.

Portanto, Aniquilação é um flagrante exemplo da torção criada pela visão de mundo militarizada norte-americana. Ecos da guerra ao terrorismo que abriu o século XXI com George Bush e da óbvia influência do lobby da indústria de armamentos em Hollywood. Que parece ganhar ainda mais força na atual era Trump.

Mas também é um exemplo de como as discussões progressistas identitárias (feminismo, racismo etc.) são facilmente absorvidas por esse paradigma hollywoodiano: em um elenco totalmente feminino, encontramos mulheres supostamente cientistas e intelectualizadas que se portam como um Silvester Stallone de saias. Principalmente a líder do grupo que entra na Área X, a psicóloga Dra. Ventress (Jennifer Jason Leigh).

Certamente Alex Garland quis fazer um filme tão profundo, ambíguo e enigmático como o clássico Stalker. Mas certamente o fracasso de Mãe! pesou para a Paramount. Mas todo o mistério e beleza metafísica que o fenômeno da Cintilação poderia suscitar é enterrado pelo ritmo de thriller militar.

Paradoxalmente, com mulheres cheias de testosterona e nada de Ciência.


Ficha Técnica 

Título:  Aniquilação
Diretor: Alex Garland
Roteiro: Alex Garland baseado no livro de Jeff VanderMeer
Elenco:  Natalie Portman, Jennifer Jason Leigh, Tessa Thompson, Gina Rodriguez, Tuva Novotny itt
Produção: DNA Films, Paramount Pictures
Distribuição: Paramount Pictures, Netflix
Ano: 2018
País: EUA

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