Um thriller romântico que simula ser um
thriller de ficção científica. Num futuro onde a única esperança para os
humanos é colonizar um planeta distante para fugir da Terra esgotada em seus
recursos naturais e climáticos, uma astronauta solitária espera a chegada de um
técnico que consertará o sistema de ventilação da nave ameaçada de esgotar o
estoque de oxigênio. Será o primeiro ser humano que verá em toda a sua vida,
reclusa naquela nave desde que nasceu. Esse é o filme espanhol “Órbita 9”
(2017) que logo no início do filme revela para o espectador o segredo que
envolve o Projeto de colonização, sugerindo uma espécie de “Show de Truman”
sci-fi com alusões à Alegoria da Caverna de Platão. Mas na medida em que a
narrativa avança passa a hibridar gêneros, pondo o foco em uma simples história
de amor impossível. Mesmo assim, “Órbita 9” suscita outros temas como bioética
e clonagem.
Para muitos críticos, falar em cinema de
ficção científica hispano-americano é um oximoro. Filmes do gênero (pelos menos
os bons) são avis rara e contam-se
nos dedos, pelo menos da produções que esse humilde blogueiro recorde: Moebius (Argentina, 1996), 2033 (México, 2009), curta Cybraceros (México, 1997), Sleep Dealer (México, 2008), La Hora Fria (Espanha, 2006), série 3% (Brasil, 2016) entre alguns que valem
à pena ser citados.
Talvez por que a nossa cultura e organização
social estejam mais próximos do realismo fantástico, do terror, do thriller
policial e do drama social do que de um gênero que gire em torno do futuro e
alta tecnologia.
Mas nas oportunidades em que aborda o gênero,
apresenta uma percepção de futuro desgastada (“hipo-utópica”) no qual o amanhã parece
mais o presente, apenas de forma exagerada, hiperbólica e bem carregado nas
tintas. Como, por exemplo, na série 3% na qual vemos um Brasil “futurista” no
qual uma elite meritocrática convive com a desigualdade, miséria e o crime
organizado – basta ler os jornais para perceber que parece bastante com o
presente.
Uma novidade é o sci-fi espanhol Órbita 9 (2017): rodado nas cidades de
Medellín e Bogotá na Colômbia (no qual o contraste entre as favelas nos morros
dessas cidades e um projeto militar de alta tecnologia envolvendo viagens
espaciais dá a pitada hipo-utópica), também acrescente um curioso tom narrativo
– simula um thriller de ficção científica mas na verdade nos entrega um
thriller romântico.
Emula um estética futurista neonoir que nos faz lembrar alguns
aspectos do clássico Blade Runner
(1982) de Ridley Scott. Mas à medida que avança muda abruptamente o foco para
se tornar uma simples estória de amor impossível como uma espécie de Romeo e
Julieta high tech.
Um curioso filme híbrido que vai deixando
pelo caminho temas importantes (bioética, clonagem, imigração espacial etc.) e
suscita até temas filosóficos como a alegoria da Caverna de Platão, reality
show científico e o relativismo da nossa percepção da realidade. Mas sem
aprofundar-se, parecendo que esses temas são como iscas, migalhas de pão
deixadas pelo caminho para seguirmos até vermos um velho e batido drama de um
romance que é impedido pelos desígnios da Ciência.
Como um cientista pode querer se apaixonar pela
cobaia de um experimento que, se for bem sucedido, poderá salvar a humanidade
da própria extinção?
O Filme
Acompanhamos
Helena (Clara Lago) em uma nave espacial a caminho de um planeta chamado
Celeste. Ela está naquela nave desde que nasceu como parte de um projeto para
abandonar o planeta Terra, próximo a uma definitiva catástrofe climática,
ambiental e humana com o esgotamento de todos os recursos e superpopulação. A
colonização de outros planetas passou a ser uma questão de sobrevivência.
Os últimos três anos Helena passou solitária
e acompanhada unicamente por uma inteligência artificial chamada Rebecca.
Aparentemente ocorreu uma falha no sistema de ventilação da nave, provocando a
visita de um técnico chamado Álex (Álex Gonzáles), o primeiro ser humano que
Helena tem contato depois de anos.
Depois de começo ascético no qual se limita a
seguir a rotina de Helena na nave espacial, a visita do técnico e o inevitável
amor por Álex (é o primeiro ser humano que conhece), o diretor Hatem Kraiche
entrega muito rapidamente o segredo que envolve o chamado Projeto Órbita que
envolve a colonização do planeta Celeste.
Aparentemente Helena pertence às dez
primeiras naves que chegarão ao planeta em uma viagem de 20 anos. Mas o que se
supõe está muito longe da realidade: Álex na verdade não veio da Terra para
consertar a nave, mas das instalações militares acima dos dez simuladores
situados no subsolo da base. Uma experiência de 20 anos para analisar os sinais
vitais e comportamentais das cobaias humanas, para atestar a viabilidade de
futuras viagens espaciais tão longas.
Cientistas e engenheiros acompanham, tal qual
um reality show, uma geração de “astronautas” que nasceram nos simuladores (ou
“Órbitas”) e que acreditam estar rumando para as estrelas.
O filme entrega muito rapidamente a viragem
da narrativa para depois se concentrar numa estória de amor impossível: de um
engenheiro envolvido em um projeto militar secreto pela sua “cobaia” confinada
numa ambiente simulado.
Tudo torna-se previsível: Álex vai desafiar
todos os protocolos de segurança para resgatar Helena do Projeto Órbita e viver
uma estória de amor perseguidos por militares aramados até os dentes e que não
hesitarão em matar quem se colocar no caminho.
Uma Caverna de Platão no espaço?
Ao
fazer essa opção, Órbita 9 deixou
para trás dois temas muito profundos que facilmente promoveria o filme a uma
espécie de Show de Truman espacial com o requinte filosófico de uma alusão à
Alegoria da Caverna de Platão. Mais precisamente, no momento em que Helena
abandona o simulador/caverna do Projeto Órbita para, pela primeira vez na sua
vida, ver o sol, sentir a terra e experimentar os pingos da chuva.
Helena nasceu no simulador e toma toda a
percepção que tem do interior da “nave” e do visual do universo que tem das
janelas como a própria realidade. Apesar das anomalias como a representação
pobre e sem detalhes da visão do espaço através das janelas e a situação inverossímil
de um técnico viajar anos da Terra à nave Órbita 9 apenas para consertar o
sistema de ventilação.
O relativismo da percepção
De passagem, o filme mostra o relativismo da
nossa percepção daquilo que entendemos como real. Assim como o pobre personagem
Truman que tomava a gigantesca cenografia de Seaheaven como real (apesar das
anomalias óticas como o horizonte muito próximo no mar artificial), da mesma
maneira Helena toma como real todo o ilusionismo criado por engenheiros e
cientistas do Projeto.
Vemos em cenas que Helena passa os seus
momentos de lazer, fora da rotina de manutenção da “nave”, assistindo a filmes
antigos. Mais um interessante tema que poderia ser um elemento narrativo: se a
percepção humana é relativa, pode ser modelada através dos produtos
audiovisuais – o Universo visto pelas janelas da nave simulada seriam
legitimadas pelos sci-fis dos próprios acervos de filme da “astronauta”.
Algo como o documentário Wolfpack (2015) sobre a inacreditável história de sete irmãos que
cresceram presos pelos seus pais em um apartamento em Nova York. Sem sair às
ruas, tinham apenas os filmes hollywoodianos, principalmente as produções de
Tarantino, como referências do mundo exterior. Passavam os dias reencenando as
cenas ficcionais que assistiam. E tomavam como a própria realidade – sobre o
filme clique aqui.
Narrativa em abismo
Também muito de passagem, Órbita 9 descreve o impacto de Helena
diante do mundo real da superfície, perdendo a oportunidade de aproveitar o
impacto perceptivo da personagem como mais um elemento dramático.
Mas o principal foi deixado para atrás: a
oportunidade de transformar o mundo virtual criado pelos simuladores nos
subsolos como microcosmos ou alegoria do
mundo real da superfície, o que tornaria Órbita
9 em uma excelente ficção científica gnóstica – Helena prisioneira em seu
mundo, assim como cientistas e engenheiros na superfície.
Mas apesar de tudo, o filme apresenta uma
curiosa metalinguagem ou, mais precisamente, uma narrativa em abismo: é um
filme que simula ser do gênero ficção científica sobre uma protagonista
prisioneira em uma simulação de uma aventura sci-fi de colonização de outro
planeta.
Mas é justamente essa ignorância da
protagonista (de forte apelo dramático e gnóstico) em não saber que em toda a
sua vida foi uma prisioneira, que o diretor Hatem Kraiche simplesmente tratou
de forma rápida e superficial. Transformar tudo em um híbrido de metalinguagem,
sci-fi e thriller romântico. Uma pena!
Filme pode ser encontrado em arquivo torrent na Internet.
Filme pode ser encontrado em arquivo torrent na Internet.
Ficha Técnica |
Título: Órbita 9
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Diretor: Hatem Khraiche
|
Roteiro: Hatem Khraiche
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Elenco: Clara Lago, Álex González, Andrés Parra, Belén Rueda
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Produção: Cactus Flower, Dynamo, Mono Films
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Distribuição: Seville International
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Ano: 2017
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País: Espanha
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