domingo, março 18, 2012

A controvérsia sobre a definição do termo "Gnosticismo"

Mestrando pela Universidade de Lisboa, o nosso leitor Douglas Remonatto nos envia uma contribuição para a discussão em torno de termos tão fugidios como Gnosticismo e Gnose. De heresia cristã, hoje reconhece-se o Gnosticismo como um sistema autônomo e paralelo às grandes religiões, embora  composto por diversas correntes. Portanto, é necessário compreender como cada corrente interpreta concepções associadas ao Gnosticismo como dualismo, centelha divina presente no homem, entre outros.


ATUALIDADES DO GNOSTICISMO
Por Douglas A. Remonatto

Hoje, mais que nunca, sabe-se que muitos problemas circundam uma possível definição do termo “Gnosticismo”. É necessário, para bem compreender a complexidade conferida a esse termo, possuir uma visão ampla do fenómeno, observando-o em cada momento de sua especificidade histórica.

A tentativa de uma análise mais profunda, no campo filosófico, do fenómeno que hoje denominamos “gnosticismo” é algo relativamente novo. No entanto, mesmo em meio a sua contemporaneidade, muitas das abordagens académicas disseminadas já encontram-se ultrapassadas. Isso por que os critérios metodológicos utilizados por alguns pesquisadores[1] há três décadas atrás, já não se enquadram dentro da perspectiva critica histórico-filosófica actual.

Nos primeiros séculos cristãos era possível encontrar um número muito grande de correntes ditas gnósticas (Ásia Menor, Síria, Palestina, Egito…). Esta diversidade esteve presente de tal maneira ao longo da história que hoje, os pesquisadores, já não se propõem a encontrar uma única definição para o termo “gnosticismo” e passaram a assumir a sua pluralidade. Logo, o mais correto seria falar de gnosticismos.

A multiplicidade de doutrinas e sistemas gnósticos é tamanha que observar o gnosticismo e compreender suas peculiaridades, é o mesmo que analisar uma grande gama de combinações de ideias soltas, entrelaçadas ao sincretismo e à imaginação, onde existe "tantas sentenças quantas forem as cabeças", como dizia Tertuliano de Cartago (160 a.C. - 220 d.C.).

Gnosis e Gnosticismo

A importância da desscoberta dos
Evangelhos Apócrifos
de Nag Hammadi no Egito em 1945
Em meio a estas procuras pela compreensão do fenômeno em questão, no ano de 1966 na Sicília, aconteceu o colóquio de Messina[2], um importante evento para a história do estudo do gnosticismo. Se reuniram estudiosos de todas as partes do mundo com o propósito de delimitar os termos “gnosis” e “gnosticismo”. Depois de muitos debates, discussões e inúmeras controvérsias, os especialistas chegaram a algumas conclusões: Concordou-se que os termos “gnosis” e “gnosticismo” podem ser utilizados separados pois o primeiro trata-se de um termo mais genérico relacionado a um conhecimento dos “divinos mistérios reservados a uma elite”, e já o segundo termo faria referência aos ditos episódios históricos existentes nos primeiros séculos cristãos. (Bianchi, 1970, pp. 20-22)

De acordo com as conclusões finais do colóquio, a definição que abarcaria uma compreensão das características persistentes no gnosticismo seriam as seguintes: 

  1. O conceito de “Presença de uma centelha divina no homem” o que pressupõe uma cosmologia baseada no intento de uma reintegração com essa centelha divina, que se perdeu, e necessita ser desperta, o que só seria possível por meio da gnosis (como conhecimento salvífico). 
  2. A noção de criação como resultante de uma degradação do divino, o que geraria um dualismo anticósmico. Tratar-se-ia portanto, de uma concepção extremamente dualista que conduz a um desfecho de absoluto monismo (Rubio, 1998, p. 257).


Mas apesar de toda esta taxonomia – que serviu pelo menos para identificar a existência de uma história mundial do gnosticismo – o final do Colóquio foi marcado por divergências[3]. Ficou claro que estamos longe de um possível desfecho da discussão acerca desta temática, pois, mesmo na actualidade o gnosticismo continua sendo palco de inúmeras discussões. (BAZÁN, 2010, p. 114)

Após a importantíssima descoberta dos manuscritos de Nag Hammadi[4] houve um avanço significativo no aprofundamento da abordagem gnóstica. Ao se analisar as novas fontes, ficou comprovado a complexidade inerente a uma tentativa de sistematização das características do gnosticismo, enquanto conceito, face a riqueza e a diversidade do pensamento gnóstico. Observando as diferenças entre correntes e grupos foi urgente descartar as classificações generalistas, assim como todas as definições carregadas de estereótipos, que taxavam o gnosticismo como uma simples heresia cristã.


Convergência dos gnosticismos

Também foi possível verificar que não há um tratamento absolutamente convergente em todos os fenómenos religiosos considerados gnósticos, em especial àqueles que abordam conceitos como: dualismo, docetismo, pessimismo anticósmico[5], sindérese ou centelha divina presente no humano. Percebeu-se ser imprescindível que a definição destes conceitos fosse ponderada nas suas diversas modalidades e relativizada de acordo com a realidade histórica especifica de cada grupo.

Ficou claro a importância de uma abordagem que - mesmo dentro de seus limites - tente ler o gnosticismo a partir de seus escritos (Evangelhos, Tratados, Mitos, etc.)[6], levando-se em conta, para além da doutrina filosófica contida nestes textos, o que eles nos revelam sobre o comportamento ritualístico e sociorreligiosos da comunidade gnósticas. Ainda dentro desta problemática, percebeu-se a importância em privilegiar os textos com um cunho mais filosófico e descritivo[7], já que os escritos que nos oferecem uma análise fortemente mitológica guardam, dentro de si, um contexto simbólico e significativo de difícil definição.

Após toda esta problematização, se reconheceu o gnosticismo como um sistema autonomo, ou seja, paralelo ao cristianismo e a qualquer uma das “grandes religiões”.

A necessidade de uma
metodologia que analise
as diferentes modalidades
de gnosticismo
Sendo assim, as concepções geralmente atribuídas ao “gnosticismo” devem ser compreendidas e integradas no âmbito mais vasto das manifestações de sentimento religioso, como um componente confessional, sacramental, litúrgico e mistérico, e não entendidas somente como uma postura religiosa de cariz filosófico[8].  

Isto exige uma metodologia que nos proporcione analisar, em simultâneo, cada uma das diferentes modalidades de gnosticismo. Assim como também é necessário compreender, com profundidade, as concepções geralmente associadas a ele, tais como: dualismo, centelha divina presente no homem, entre outros, e procurar perceber como esses conceitos se manifestam em cada corrente. É portanto necessário o desenvolvimento de um novo e amplo sistema metodológico, que possibilite ter acesso a uma abordagem real do gnosticismo, e que permita ainda, o acompanhamento de um estudo rígido das manifestações religiosas dos primeiros séculos do cristianismo.

A emergência do gnosticismo, só pode ser compreendida quando todas as características que apontamos forem analisadas, permitindo-nos assim concluir que, quando se fala em “gnosticismo” estamos nos referindo a um fenómeno vasto, múltiplo e por vezes ainda obscuro.

NOTAS

[1] Aqui me refiro a Hans Jonas, U. Bianchi, H. Leisegang, entre outros. Pesquisadores que apesar de sua erudição e pioneirismo, possuem abordagens ainda muito marcadas pela interpretação patrística.

[2] A principal motivação para este evento foi a promoção de um debate acerca do que (historicamente) se sabia sobre o Gnosticismo. Além de uma discussão sobre uma possível definição do termo (Gnosticismo), o colóquio teve como objectivo uma análises sobre as prováveis origens deste movimento. (U. Bianchi (ed), Le Origini dello gnosticismo. Colloqui di Messina, 13-18 apri 1966 2º ed, Leiden, 1970, Pg 21)

[3] “Las deducciones aportadas por el Congreso de Mesina sobre ‘Los orígenes del gnosticismo’ organizado por Ugo Bianchi en 1966, que haciendo confluir sin un análisis completo de elementos de juicio todos los anteriores resultados, trató de resolver por la vía de la reflexión corporativa y el acuerdo entre especialistas (U. Bianchi, H. Jonas, Geo Widengren, Jean Daniélou, Carsten Colpe, Marcel Simon, Henri-Irenée Marrou) ” (BAZÁN GARCÍA, Francisco. Sobre el gnosticismo y los gnósticos. A cuarenta años del Congreso de Mesina Gerión, 2010, Universidad Argentina J. F. Kennedy-CONICET, Pg 113)

[4] Apesar dá descobertas ser anterior ao colóquio de Messina, somente em 1961, iniciou-se um esforço para a tradução e publicação completa dos textos de Nag Hammadi. Saindo a primeira publicação completa somente no ano 1972. (A biblioteca copta de Nag Hammadi: uma história da pesquisa. Julio César Chaves, ed. Oracula, São Bernardo do Campo, 2006. Pg 1-17)

[5] Para muito especialistas o tratado “Paráfrase de Sem”, contido na biblioteca de Nag Hammadi, nos mostra que a postura gnóstica, muitas vezes entendida como anticósmico, é na verdade uma postura antinatural. Seria esta postura (antinatural), presente em praticamente toda a expressão do cristianismo, que gerou por vez, em alguma escolas gnósticas mais radicais, uma postura anticósmico, sento então a segunda sempre dependente da primeira. Hoje, portanto, não a unanimidade sobre a existência de um dualismo anticósmico em toda a filosofia gnóstica. (García, 2002, p. 139)

[6]É interessante deixar claro que as fontes não-gnósticas não devem ser ignoradas, já que essas permitem completar lacunas de diferentes períodos históricos, dada a veracidade de seu encontro com alguns escritos gnósticos originais. Um bom exemplo disso e demostrado no meticuloso trabalho de filologia e exegese realizado por Miroslav Marcovich para oferecer uma nova edição da Refutation omnium haeresium de Hipólito de Roma (Berlim, 1986), aonde torna-se muito sugestiva a hipótese de que o bispo romano dissidente tenha manipulado um bloco de oito escritos gnósticos novos (de naassenos, peratas, sethianos, o Livro de Baruc de Justino, a Grande revelação simoniana, de Basílides, os docetas, e de Monoímo), que ocupam o centro do livro do heresiologo Irineo (García, 2002, p. 139)

[7] A exemplo disso podemos citar o manuscrito valentiniano “Tratado Tripartido”, que parece constituir de uma defesa filosófico/teológica gnóstica contra as denúncias Plotinianas e ortodoxas.

[8] Aqui é interessante ressaltar a importância dos baptismos para as comunidades gnósticas. Rito este que, quando bem explorado em seu contexto, nos revela muito da mentalidade inerente ao gnosticismo.

BIBLIOGRAFIA BASICA

a) Bibliografias


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Actualidades do Gnosticismo - Douglas A. Remonatto
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