Mestrando pela Universidade de Lisboa, o nosso leitor Douglas Remonatto nos envia uma contribuição para a discussão em torno de termos tão fugidios como Gnosticismo e Gnose. De heresia cristã, hoje reconhece-se o Gnosticismo como um sistema autônomo e paralelo às grandes religiões, embora composto por diversas correntes. Portanto, é necessário compreender como cada corrente interpreta concepções associadas ao Gnosticismo como dualismo, centelha divina presente no homem, entre outros.
ATUALIDADES DO GNOSTICISMO
Por Douglas A. Remonatto
Hoje, mais que nunca, sabe-se que muitos problemas circundam uma possível definição do termo “Gnosticismo”. É necessário, para bem compreender a complexidade conferida a esse termo, possuir uma visão ampla do fenómeno, observando-o em cada momento de sua especificidade histórica.
A tentativa de uma análise mais profunda, no campo
filosófico, do fenómeno que hoje denominamos “gnosticismo” é algo relativamente
novo. No entanto, mesmo em meio a sua contemporaneidade, muitas das abordagens
académicas disseminadas já encontram-se ultrapassadas. Isso por que os
critérios metodológicos utilizados por alguns pesquisadores[1] há três décadas atrás, já não se enquadram dentro da perspectiva critica
histórico-filosófica actual.
Nos primeiros séculos cristãos era possível
encontrar um número muito grande de correntes ditas gnósticas (Ásia Menor,
Síria, Palestina, Egito…). Esta diversidade esteve presente de tal maneira ao
longo da história que hoje, os pesquisadores, já não se propõem a encontrar uma
única definição para o termo “gnosticismo” e passaram a assumir a sua
pluralidade. Logo, o mais correto seria falar de gnosticismos.
A multiplicidade de doutrinas e sistemas gnósticos
é tamanha que observar o gnosticismo e compreender suas peculiaridades, é o
mesmo que analisar uma grande gama de combinações de ideias soltas, entrelaçadas
ao sincretismo e à imaginação, onde existe "tantas sentenças quantas forem as
cabeças", como dizia Tertuliano de Cartago (160 a.C. - 220 d.C.).
Gnosis e Gnosticismo
A importância da desscoberta dos Evangelhos Apócrifos de Nag Hammadi no Egito em 1945 |
De acordo com as conclusões finais do colóquio, a definição que
abarcaria uma compreensão das características persistentes no gnosticismo
seriam as seguintes:
- O conceito de “Presença de uma centelha divina no homem” o que pressupõe uma cosmologia baseada no intento de uma reintegração com essa centelha divina, que se perdeu, e necessita ser desperta, o que só seria possível por meio da gnosis (como conhecimento salvífico).
- A noção de criação como resultante de uma degradação do divino, o que geraria um dualismo anticósmico. Tratar-se-ia portanto, de uma concepção extremamente dualista que conduz a um desfecho de absoluto monismo (Rubio, 1998, p. 257).
Mas apesar de toda esta taxonomia – que serviu pelo menos para
identificar a existência de uma história mundial do gnosticismo – o final do
Colóquio foi marcado por divergências[3].
Ficou claro que estamos longe de um possível desfecho da discussão acerca desta
temática, pois, mesmo na actualidade o gnosticismo continua sendo palco de
inúmeras discussões. (BAZÁN, 2010, p. 114)
Após a importantíssima descoberta dos manuscritos de Nag Hammadi[4]
houve um avanço significativo no aprofundamento da abordagem gnóstica. Ao se
analisar as novas fontes, ficou comprovado a complexidade inerente a uma
tentativa de sistematização das características do gnosticismo, enquanto
conceito, face a riqueza e a diversidade do pensamento gnóstico. Observando as
diferenças entre correntes e grupos foi urgente descartar as classificações
generalistas, assim como todas as definições carregadas de estereótipos, que
taxavam o gnosticismo como uma simples heresia cristã.
Convergência dos gnosticismos
Convergência dos gnosticismos
Também foi possível verificar que não há um
tratamento absolutamente convergente em todos os fenómenos religiosos
considerados gnósticos, em especial àqueles que abordam conceitos como:
dualismo, docetismo, pessimismo anticósmico[5],
sindérese ou centelha divina presente no humano. Percebeu-se ser
imprescindível que a definição destes conceitos fosse ponderada nas suas
diversas modalidades e relativizada de acordo com a realidade histórica
especifica de cada grupo.
Ficou claro a importância de uma abordagem que - mesmo dentro de seus
limites - tente ler o gnosticismo a partir de seus escritos (Evangelhos,
Tratados, Mitos, etc.)[6],
levando-se em conta, para além da doutrina filosófica contida nestes textos, o
que eles nos revelam sobre o comportamento ritualístico e sociorreligiosos da
comunidade gnósticas. Ainda dentro desta problemática, percebeu-se a
importância em privilegiar os textos com um cunho mais filosófico e descritivo[7],
já que os escritos que nos oferecem uma análise fortemente mitológica guardam,
dentro de si, um contexto simbólico e significativo de difícil definição.
Após toda esta problematização, se reconheceu o gnosticismo como um
sistema autonomo, ou seja, paralelo ao cristianismo e a qualquer uma das “grandes
religiões”.
A necessidade de uma metodologia que analise as diferentes modalidades de gnosticismo |
Isto exige uma metodologia que nos proporcione analisar, em simultâneo,
cada uma das diferentes modalidades de gnosticismo. Assim como também é
necessário compreender, com profundidade, as concepções geralmente
associadas a ele, tais como: dualismo, centelha divina presente no homem, entre
outros, e procurar perceber como esses conceitos se manifestam em cada
corrente. É portanto necessário o desenvolvimento de um novo e amplo sistema
metodológico, que possibilite ter acesso a uma abordagem real do gnosticismo, e
que permita ainda, o acompanhamento de um estudo rígido das manifestações
religiosas dos primeiros séculos do cristianismo.
A emergência do gnosticismo, só pode ser compreendida quando
todas as características que apontamos forem analisadas, permitindo-nos assim
concluir que, quando se fala em “gnosticismo” estamos nos referindo a um
fenómeno vasto, múltiplo e por vezes ainda obscuro.
NOTAS
[1] Aqui me refiro a Hans Jonas, U.
Bianchi, H. Leisegang, entre outros. Pesquisadores que apesar de sua erudição e
pioneirismo, possuem abordagens ainda muito marcadas pela interpretação
patrística.
[2] A principal motivação para este
evento foi a promoção de um debate acerca do que (historicamente) se sabia
sobre o Gnosticismo. Além de uma discussão sobre uma possível definição do
termo (Gnosticismo), o colóquio teve como objectivo uma análises sobre as
prováveis origens deste movimento. (U. Bianchi (ed), Le Origini dello
gnosticismo. Colloqui di Messina, 13-18 apri 1966 2º ed, Leiden, 1970, Pg 21)
[3] “Las deducciones aportadas por
el Congreso de Mesina sobre ‘Los orígenes del gnosticismo’ organizado por Ugo
Bianchi en 1966, que haciendo confluir sin un análisis completo de elementos de
juicio todos los anteriores resultados, trató de resolver por la vía de la
reflexión corporativa y el acuerdo entre especialistas (U. Bianchi, H. Jonas,
Geo Widengren, Jean Daniélou, Carsten Colpe, Marcel Simon, Henri-Irenée Marrou)
” (BAZÁN GARCÍA, Francisco. Sobre el
gnosticismo y los gnósticos. A cuarenta años del Congreso de Mesina Gerión,
2010, Universidad Argentina J. F. Kennedy-CONICET, Pg 113)
[4] Apesar dá descobertas ser
anterior ao colóquio de Messina, somente em 1961, iniciou-se um esforço para a
tradução e publicação completa dos textos de Nag Hammadi. Saindo a primeira
publicação completa somente no ano 1972. (A biblioteca copta de Nag Hammadi:
uma história da pesquisa. Julio César Chaves, ed. Oracula, São Bernardo do
Campo, 2006. Pg 1-17)
[5] Para muito especialistas o
tratado “Paráfrase de Sem”, contido na biblioteca de Nag Hammadi, nos
mostra que a postura gnóstica, muitas vezes entendida como anticósmico,
é na verdade uma postura antinatural. Seria esta postura (antinatural),
presente em praticamente toda a expressão do cristianismo, que gerou por vez,
em alguma escolas gnósticas mais radicais, uma postura anticósmico,
sento então a segunda sempre dependente da primeira. Hoje, portanto, não a
unanimidade sobre a existência de um dualismo anticósmico em toda a
filosofia gnóstica. (García, 2002, p. 139)
[6]É interessante deixar claro que as fontes não-gnósticas não devem ser
ignoradas, já que essas permitem completar lacunas de diferentes períodos
históricos, dada a veracidade de seu encontro com alguns escritos gnósticos
originais. Um bom exemplo disso e demostrado no meticuloso trabalho de
filologia e exegese realizado por Miroslav Marcovich para oferecer uma nova
edição da Refutation omnium haeresium de Hipólito de Roma (Berlim, 1986), aonde
torna-se muito sugestiva a hipótese de que o bispo romano dissidente tenha
manipulado um bloco de oito escritos gnósticos novos (de naassenos, peratas,
sethianos, o Livro de Baruc de Justino, a Grande revelação simoniana, de
Basílides, os docetas, e de Monoímo), que ocupam o centro do livro do
heresiologo Irineo (García, 2002, p. 139)
[7] A exemplo disso podemos citar o
manuscrito valentiniano “Tratado Tripartido”, que parece constituir de
uma defesa filosófico/teológica gnóstica contra as denúncias Plotinianas e
ortodoxas.
[8] Aqui é interessante ressaltar a
importância dos baptismos para as comunidades gnósticas. Rito este que, quando
bem explorado em seu contexto, nos revela muito da mentalidade inerente ao
gnosticismo.
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