A crítica
especializada é unânime em afirmar que “REC 2 - Possuídos” ([REC]2, 2009) decepciona
em relação ao primeiro filme. Por outro lado, sua virtude parece ser a de
confirmar as teses do sociólogo polonês Zygmunt Bauman a respeito da era da
“modernidade líquida” onde as noções de “saúde” e “doença” tornaram-se
instáveis e imprecisas. O resultado é uma cultura obcecada pela saúde cujo horror à
contaminação viral é a sua melhor metáfora, explorada nas últimas décadas por
uma galeria de filmes onde “REC 2” torna-se o mais novo integrante. O vírus
como o “outro lado” da saúde, aquilo que está adormecido como uma bomba relógio
pronta para entrar em metástase a qualquer momento. Assim como os zumbis
possuídos pelo Mal que, de repente, pululam por todos os lados no prédio em
quarentena de “REC”. O Mal como metástase, dessa vez demoníaca.
Quando o filme espanhol “REC” estreou em 2007 todos se
surpreenderam com a proposta da dupla de diretores Jaune Balagueró e Paco
Plaza. Um filme que fugia dos pastiches dos filmes de zumbis atuais, fazendo
juz à saga iniciada com “A Noite dos Mortos Vivos” de George Romero em 1968: os
zumbis agora vistos pelo ponto de vista da epidemiologia e vigilância
sanitária. Repórter, cinegrafista e bombeiros
presos em um prédio posto em quarentena enquanto uma espécie de vírus se
propaga e zumbis pululam por todos os lados. A narrativa fazia realmente a
câmera existir na realidade do filme com imensos planos sequência e forte sensação
de realismo documental.
Três anos depois, e com mais
dinheiro para a produção, a dupla de diretores retorna para o mesmo prédio
momentos depois do término do primeiro filme. Agora vemos as imagens da própria
SWAT espanhola que vai entrar no prédio posto em quarentena com a função de
proteger o Dr. Owen, um suposto sanitarista que vai procurar uma resposta para
a estranha contaminação.
Como avisa o título, Dr. Owen
vai descobrir que as pessoas que se transformaram em raivosos e violentos
zumbis não estão meramente infectados: elas podem estar possuídas por uma
entidade demoníaca que se propaga viralmente.
Em termos de linguagem
cinematográfica o filme “REC 2 - Possuídos” não trás nenhuma novidade, a não
ser que não temos mais apenas o ângulo da câmera oficial, mas há agora uma
edição que mostra os diversos pontos de vista do que está acontecendo no interior
do prédio isolado pelas autoridades sanitárias.
Entretanto, o filme apresenta
duas novidades do ponto de vista do conteúdo e argumento da narrativa:
primeiro, o gênero zumbis se encontra com o tema do exorcismo e possessão
demoníaca; e o segundo, mais intrigante do ponto de vista de uma discussão
sobre a sensibilidade contemporânea, é o fenômeno espiritual e religioso da
possessão que se transforma em fenômeno bioquímico de contaminação.
Em postagem anterior
afirmávamos que o filme REC (2007) refletia uma mutação da natureza da figura
do monstro contemporâneo (clique aqui para ler ou veja links abaixo): a quebra
do paradigma clássico da monstruosidade (feio, disforme e mau) pelas
instabilidades e metamorfoses – monstros informes e amorais predadores.
Pois bem, “REC 2-Possuídos” vai
além, ao não só inserir a figura do demônio nesse novo paradigma, mas,
inclusive, ao trazer o fenômeno da possessão para o campo epidemiológico e
sanitário como doença e contaminação.
Se desde o filme “O Exorcista”
(The Exorcist, 1973) o enfrentamento da religião contra a possessão é abordado
pelos temas metafísicos, teológicos e morais como a fé, tentação, provação,
renúncia, estoicismo, mal etc., em “REC 2” não podemos dizer que assistimos ao
tradicional drama da possessão. O mal ou o demônio agora não exatamente possui
a vítima, mas a contamina e como um vírus se espalha de forma endêmica. Tal
como a nova natureza dos monstros contemporâneos que presenciamos no primeiro
“REC”, aqui o demônio não é mais propriamente uma entidade espiritual, mas algo
instável e informe, isto é, assume forma metamórfica através de um misterioso
fenômeno bioquímico.
E mais. O padre não mais exorciza:
ele deve procurar um antídoto a partir do sangue da primeira pessoa
contaminada/possuída que deu a origem a toda a tragédia vivida pelos moradores
daquele prédio em quarentena. Não há mais os tensos e teatrais rituais de exorcismos,
mas agora seringas, tubos de ensaio e laboratórios para tentar isolar o mal. O
demônio não é mais exorcizado pela autoridade do padre como representante de
Deus entre os homens, mas como um padre representante da Ciência profana.
Dentro das discussões sobre a
história das mentalidades, o que poderia expressar essas transposições de
representações: da possessão à contaminação; do exorcismo à cura pelo antídoto;
a entidade demoníaca transformada em doença; do padre como representante de
Deus a instrumento da Ciência?
A “Saúde Líquida”
A primeira vista poderíamos interpretar o argumento
do filme como um exemplo clássico do esvaziamento simbólico da religiosidade no
mundo contemporâneo ao reduzir o fenômeno da possessão e do exorcismo do campo
religioso para o âmbito epidemiológico.
Mas poderíamos fazer um caminho inverso: ao invés
de discutir porque o demônio se converte em vírus, poderíamos procurar entender
o porquê da contaminação viral no filme ser representada pelo fenômeno da
possessão demoníaca.
Nas últimas décadas a cinematografia
recorrentemente explora o tema da contaminação em diversos gêneros, seja sci
fi, terror, suspense etc. Em “REC” o nosso medo não é tanto pela presença dos
zumbis possuídos, mas pelas mordidas que levam à contaminação por sangue e
saliva. O tema da contaminação viral já foi explorado através de diversos
personagens como aliens, detritos espaciais, meteoros, mutações nucleares e,
agora, o próprio demônio e a maldade convertidos em vírus.
Ao explorar o conceito de “modernidade líquida”, o
sociólogo polonês Zygmunt Bauman nos oferece importantes subsídios para
entender essa nova representação da saúde e doença através da metáfora da
contaminação viral. Bauman discute como na atual “modernidade líquida”
(pós-modernidade?) a noção de “saúde” foi substituída pela de “fitness”
(aptidão). Embora tomemos como sinônimas, para o autor há uma diferença
importante que representa a alteração dos conceitos de “saúde” e “doença” para
um campo mais incerto, líquido e instável (veja BAUMAN, Zygmunt. Modernidade
Líquida. R. de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
Bauman argumenta que no passado o conceito de saúde
era circunscrito a padrões estáveis, quantificáveis, com clara distinção entre
“norma” e “anormalidade”. Hoje as normas de saúde foram severamente abaladas em
uma sociedade de infinitas e indefinidas possibilidades: o que ontem era
considerado normal hoje pode ser considerado patológico (alimentos,
tratamentos, estilos de vida, etc.), requerendo sempre novos remédios ao sabor
da moda de afirmações e desmentidos de médicos e pesquisadores da indústria
farmacêutica.
A ideia de doença tornou-se confusa e nebulosa,
tendendo a ser vista como uma permanente companhia da saúde, uma ameaça sempre
presente. Por isso temos que ser “fitness”, aptos, precisamos ter uma
capacidade subjetiva para estarmos predispostos ao surpreendente, ao não-usual,
o não-rotineiro. O que acaba criando uma ansiedade contínua cuja melhor
metáfora é a da contaminação viral. O vírus é o “outro lado”, aquilo que está
adormecido como uma bomba relógio pronta para entrar em metástase a qualquer
momento. Assim como os zumbis endemoniados que, de repente, pululam por todos
os lados no prédio em quarentena de “REC”. O mal como a metástase.
Da mesma forma que devemos pensar na
“empregabilidade” muito mais do que no emprego (quando empregados podemos ser
demitidos a qualquer momento), também na questão da doença a saúde é
substituída pela noção de aptidão (a ansiosa busca da vida saudável como um
incansável combate contra algo que parece estar adormecido em cada órgão, em
cada gene ou em cada artéria).
Portanto, “REC 2-Possuídos” é mais um filme que
entra na galeria de filmes que exploram a nossa ansiedade e o horror diante da
contaminação, da metástase e do vírus. Sendo que aqui chegamos ao paroxismo no
momento em que a contaminação é representada pela própria figura do demônio
como um ser viral. Ou ironicamente retornamos aos tempos medievais onde doenças
psíquicas e físicas eram explicadas a partir da possessão pelo Mal.
Ficha Técnica
- Título: REC 2 - Possuídos ([REC]2)
- Diretor: Jaume Balaguero, Paco Plaza
- Roteiro: Jaume Balagueró, Paco Plaza
- Elenco: Jonathan D. Mellor, Manuela Velasco, Oscar Zafra
- Produção: Castelao Producciones, Filmax
- Distribuição: PlayArte Filmes
- Ano: 2009
- País Espanha
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