quarta-feira, março 21, 2012

A Metástase do Mal no Filme "REC 2 - Possuídos"

A crítica especializada é unânime em afirmar que “REC 2 - Possuídos” ([REC]2, 2009) decepciona em relação ao primeiro filme. Por outro lado, sua virtude parece ser a de confirmar as teses do sociólogo polonês Zygmunt Bauman a respeito da era da “modernidade líquida” onde as noções de “saúde” e “doença” tornaram-se instáveis e imprecisas. O resultado é uma cultura obcecada pela saúde cujo horror à contaminação viral é a sua melhor metáfora, explorada nas últimas décadas por uma galeria de filmes onde “REC 2” torna-se o mais novo integrante. O vírus como o “outro lado” da saúde, aquilo que está adormecido como uma bomba relógio pronta para entrar em metástase a qualquer momento. Assim como os zumbis possuídos pelo Mal que, de repente, pululam por todos os lados no prédio em quarentena de “REC”. O Mal como metástase, dessa vez demoníaca.

Quando o filme espanhol “REC” estreou em 2007 todos se surpreenderam com a proposta da dupla de diretores Jaune Balagueró e Paco Plaza. Um filme que fugia dos pastiches dos filmes de zumbis atuais, fazendo juz à saga iniciada com “A Noite dos Mortos Vivos” de George Romero em 1968: os zumbis agora vistos pelo ponto de vista da epidemiologia e vigilância sanitária. Repórter, cinegrafista e bombeiros presos em um prédio posto em quarentena enquanto uma espécie de vírus se propaga e zumbis pululam por todos os lados. A narrativa fazia realmente a câmera existir na realidade do filme com imensos planos sequência e forte sensação de realismo documental.

Três anos depois, e com mais dinheiro para a produção, a dupla de diretores retorna para o mesmo prédio momentos depois do término do primeiro filme. Agora vemos as imagens da própria SWAT espanhola que vai entrar no prédio posto em quarentena com a função de proteger o Dr. Owen, um suposto sanitarista que vai procurar uma resposta para a estranha contaminação.

Como avisa o título, Dr. Owen vai descobrir que as pessoas que se transformaram em raivosos e violentos zumbis não estão meramente infectados: elas podem estar possuídas por uma entidade demoníaca que se propaga viralmente.


Em termos de linguagem cinematográfica o filme “REC 2 - Possuídos” não trás nenhuma novidade, a não ser que não temos mais apenas o ângulo da câmera oficial, mas há agora uma edição que mostra os diversos pontos de vista do que está acontecendo no interior do prédio isolado pelas autoridades sanitárias.

Entretanto, o filme apresenta duas novidades do ponto de vista do conteúdo e argumento da narrativa: primeiro, o gênero zumbis se encontra com o tema do exorcismo e possessão demoníaca; e o segundo, mais intrigante do ponto de vista de uma discussão sobre a sensibilidade contemporânea, é o fenômeno espiritual e religioso da possessão que se transforma em fenômeno bioquímico de contaminação.

Em postagem anterior afirmávamos que o filme REC (2007) refletia uma mutação da natureza da figura do monstro contemporâneo (clique aqui para ler ou veja links abaixo): a quebra do paradigma clássico da monstruosidade (feio, disforme e mau) pelas instabilidades e metamorfoses – monstros informes e amorais predadores.

Pois bem, “REC 2-Possuídos” vai além, ao não só inserir a figura do demônio nesse novo paradigma, mas, inclusive, ao trazer o fenômeno da possessão para o campo epidemiológico e sanitário como doença e contaminação.

Se desde o filme “O Exorcista” (The Exorcist, 1973) o enfrentamento da religião contra a possessão é abordado pelos temas metafísicos, teológicos e morais como a fé, tentação, provação, renúncia, estoicismo, mal etc., em “REC 2” não podemos dizer que assistimos ao tradicional drama da possessão. O mal ou o demônio agora não exatamente possui a vítima, mas a contamina e como um vírus se espalha de forma endêmica. Tal como a nova natureza dos monstros contemporâneos que presenciamos no primeiro “REC”, aqui o demônio não é mais propriamente uma entidade espiritual, mas algo instável e informe, isto é, assume forma metamórfica através de um misterioso fenômeno bioquímico.

E mais. O padre não mais exorciza: ele deve procurar um antídoto a partir do sangue da primeira pessoa contaminada/possuída que deu a origem a toda a tragédia vivida pelos moradores daquele prédio em quarentena. Não há mais os tensos e teatrais rituais de exorcismos, mas agora seringas, tubos de ensaio e laboratórios para tentar isolar o mal. O demônio não é mais exorcizado pela autoridade do padre como representante de Deus entre os homens, mas como um padre representante da Ciência profana.

Dentro das discussões sobre a história das mentalidades, o que poderia expressar essas transposições de representações: da possessão à contaminação; do exorcismo à cura pelo antídoto; a entidade demoníaca transformada em doença; do padre como representante de Deus a instrumento da Ciência?

A “Saúde Líquida”

A primeira vista poderíamos interpretar o argumento do filme como um exemplo clássico do esvaziamento simbólico da religiosidade no mundo contemporâneo ao reduzir o fenômeno da possessão e do exorcismo do campo religioso para o âmbito epidemiológico.

Mas poderíamos fazer um caminho inverso: ao invés de discutir porque o demônio se converte em vírus, poderíamos procurar entender o porquê da contaminação viral no filme ser representada pelo fenômeno da possessão demoníaca.

Nas últimas décadas a cinematografia recorrentemente explora o tema da contaminação em diversos gêneros, seja sci fi, terror, suspense etc. Em “REC” o nosso medo não é tanto pela presença dos zumbis possuídos, mas pelas mordidas que levam à contaminação por sangue e saliva. O tema da contaminação viral já foi explorado através de diversos personagens como aliens, detritos espaciais, meteoros, mutações nucleares e, agora, o próprio demônio e a maldade convertidos em vírus.

Ao explorar o conceito de “modernidade líquida”, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman nos oferece importantes subsídios para entender essa nova representação da saúde e doença através da metáfora da contaminação viral. Bauman discute como na atual “modernidade líquida” (pós-modernidade?) a noção de “saúde” foi substituída pela de “fitness” (aptidão). Embora tomemos como sinônimas, para o autor há uma diferença importante que representa a alteração dos conceitos de “saúde” e “doença” para um campo mais incerto, líquido e instável (veja BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. R. de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

Bauman argumenta que no passado o conceito de saúde era circunscrito a padrões estáveis, quantificáveis, com clara distinção entre “norma” e “anormalidade”. Hoje as normas de saúde foram severamente abaladas em uma sociedade de infinitas e indefinidas possibilidades: o que ontem era considerado normal hoje pode ser considerado patológico (alimentos, tratamentos, estilos de vida, etc.), requerendo sempre novos remédios ao sabor da moda de afirmações e desmentidos de médicos e pesquisadores da indústria farmacêutica.

A ideia de doença tornou-se confusa e nebulosa, tendendo a ser vista como uma permanente companhia da saúde, uma ameaça sempre presente. Por isso temos que ser “fitness”, aptos, precisamos ter uma capacidade subjetiva para estarmos predispostos ao surpreendente, ao não-usual, o não-rotineiro. O que acaba criando uma ansiedade contínua cuja melhor metáfora é a da contaminação viral. O vírus é o “outro lado”, aquilo que está adormecido como uma bomba relógio pronta para entrar em metástase a qualquer momento. Assim como os zumbis endemoniados que, de repente, pululam por todos os lados no prédio em quarentena de “REC”. O mal como a metástase.

Da mesma forma que devemos pensar na “empregabilidade” muito mais do que no emprego (quando empregados podemos ser demitidos a qualquer momento), também na questão da doença a saúde é substituída pela noção de aptidão (a ansiosa busca da vida saudável como um incansável combate contra algo que parece estar adormecido em cada órgão, em cada gene ou em cada artéria).

Portanto, “REC 2-Possuídos” é mais um filme que entra na galeria de filmes que exploram a nossa ansiedade e o horror diante da contaminação, da metástase e do vírus. Sendo que aqui chegamos ao paroxismo no momento em que a contaminação é representada pela própria figura do demônio como um ser viral. Ou ironicamente retornamos aos tempos medievais onde doenças psíquicas e físicas eram explicadas a partir da possessão pelo Mal.

Ficha Técnica
  • Título: REC 2 - Possuídos ([REC]2)
  • Diretor: Jaume Balaguero, Paco Plaza
  • Roteiro: Jaume Balagueró, Paco Plaza
  • Elenco: Jonathan D. Mellor, Manuela Velasco, Oscar Zafra
  • Produção: Castelao Producciones, Filmax
  • Distribuição: PlayArte Filmes
  • Ano: 2009
  • País Espanha



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