Fortemente conectado com o imaginário social deste final e início de novo século, a produção cinematográfica atual, em particular a norte-americana, refletiria não apenas o imaginário tecnológico transcendentalista como, também, questões existenciais, éticas e espirituais decorrentes de tal imaginário.
Percebe-se uma nítida alteração temática nos filmes gnósticos na passagem de final de século para início de novo século. Os anos de 1999-2000 marcam uma mudança da representação da irrealidade do mundo no qual o protagonista vive.
No primeiro período (1995-1999) temos um mundo simulado por poderosas tecnologias onipresentes e oniscientes, capazes de criar uma contrafação da realidade tão perfeita que se confunde com o original, pelos menos para a percepção dos protagonistas. Temos nessa primeira fase a clássica narrativa gnóstica de um mundo criado por um Demiurgo (a tecnologia) para aprisionar seres humanos. A narrativa apresenta um caráter maniqueísta (no sentido atribuído às narrativas gnósticas de Mani) e vemos um explícito e dramático confronto do humano contra uma divindade enlouquecida pelo poder espiritual e tecnológico.
Em O Quarto Poder (Mad City, 1997) vemos toda uma supra-realidade criada pelo circo midiático envolta de um seqüestro involuntário que aprisiona o protagonista. O filme salienta o poder tecnológico onisciente e onipresente da mídia versus a inocência e pureza do protagonista, seduzido pelo caráter meta dos monitores de TV colocados no interior do próprio palco das ações (Sam via-se a si próprio no museu onde mantinha os reféns). Show de Truman (Truman Show, 1998) reforça essa visão da tecnologia midiática, capaz de simular um mundo para criar um novo Adão. Explicitamente inspirado na expriência tecnognóstica do Oracle (O Projeto Oracle consistiu em colocar em imensos hangares de vidros, erguidos numa área cm Tucson, no deserto do Arizona, quatro homens e quatro mulheres, 3.800 espécies animais e vegetais e simulações dos cinco principais biomas do planeta Terra. Lá ficaram durante dois anos monitorados por dois mil sensores eletrônicos e assistidos por 600 mil pagantes), esse filme é um nítido exemplo da representação do imaginário tecnológico utópico e transcendentalista de final de século.
Em A Vida em Preto e Branco (Pleasantville, 1998) o poder, não exatamente tecnológico, mas mágico do Sr. Técnico de TV transporta os protagonistas para uma série de TV dos anos 50, um microcosmo de simulação da realidade perfeita de adãos e evas midiáticos. Indiretamente, Vidas em Jogo (The Game, 1997)vai tocar nesse mesmo tema ao apresentar uma empresa com tal onipotência e onisciência tecnológica que é capaz de interferir nas transmissões de TV abertas (fazendo a programação interagir com o protagonista) e produzir uma espécie de jogo que também interage com a vida real.
Matrix e o Décimo Terceiro Andar (The Thirteenth Floor, 1999) explicitamente representam o imaginário tecnognóstico de final de século. Aproximam tecnociência e misticismo ao apresentarem a tecnologia computacional como mediação possível para a transcendência espiritual. A metáfora das unidades autônomas e autodidatas que passam a ganhar consciência nos mundos simulados e a possibilidade dessa consciência transcender de um mundo simulado inferior para um superior são, explicitamente, tecnognósticas. Em ambos os filmes vemos criadores de simulações que se tornam Demiurgos inebriados pelo poder que, novamente, procuram extrair de seus prisioneiros a inocência ou energia de novos “adãos”.
O evidente simbolismo gnóstico maniqueo é Cidade das Sombras (Dark City, 1998). Novamente demiurgos (dessa vez uma raça alienígena) aprisionam humanos em uma cidade-laboratório para buscar neles a essência da alma humana. A cidade é uma gigantesca cenografia recriada a partir de fragmentos das memórias humanas de todas as épocas, assim como a Seaheaven de Show de Truman é a cópia da cópia da imagerie publicitária.
“O colapso da bolha das ‘ponto com’ pôs os visionários de volta para suas confortáveis casas, e esse ‘retorno ao real’ foi cimentado ainda pelo 11 de setembro. Euforia utópica e a vertigem pós-humana são out; estabilidade e valores familiares são in. Ao invés da ambição pela dissolução das fronteiras, vemos, pelo menos na política americana, a restauração da ansiedade pela defesa das fronteiras: nação, propriedade intelectual, religião cristã”. (DAVIS, Erik, Techgnosis: myth, Magic and mysticism in the age of information. London: Serpents Tail, 2004, p. 400).
A importância (ou o temor) simbólica das novas tecnologias e dos mundos simulados parece deflacionar. Esse movimento de “retorno ao real” parece também atingir os filmes gnósticos. Se, como Erik Davis observou, o gnosticismo pop do “modelo Matrix” trazia uma reinterpretação paradoxal do gnosticismo (enquanto no gnosticismo o mundo a ser transcendido é o material, no cinema o mundo que aprisiona o homem é o das mediações, das simulações, e a transcendência é o retorno à realidade física), após ano 2000 temos nos filmes gnósticos um retorno a uma visão mais próxima do conceito de gnose: como salvação individual e transformação íntima. Toda a narrativa mítica gnóstica (Queda e Ascensão) é transposta para o interior do protagonista na procura do eu oculto aprisionado que foi e que ainda é parte da Plenitude.
Embora em todos os filmes gnósticos esteja presente o tema da fé em si mesmo (o que se opõe ao catolicismo onde a fé somente pode ser em Deus), somente após o ano 2000 temos um aprofundamento desse aspecto da gnose. No modelo Matrix a “fé em si mesmo” é tratada de forma rápida, próxima à filosofia de auto-ajuda (libertar-se dos medos ou das limitações pessoais). Embora os mundos simulados tecnologicamente sejam a prisão do protagonista, a tecnologia assume um papel importante para essa libertação: a tecnologia da simulação que produz consciência e transcendência em O Décimo Terceiro Andar ou os jogos de simulação de lutas em Matrix que ajudam Neo a superar seus medos e libertar a consciência.
Ao contrário, a safra dos filmes gnósticos pós-2000 apresentam essas verdadeiras “tecnologias do espírito” de forma crítica chegando até ser ridicularizadas. Elas não só são impotentes para possibilitar a reforma íntima, mas constituem-se em verdadeiros Arcontes ou Demiurgos que aprisionam o protagonista. A impotência dos psiquiatras em A Passagem e Identidade, a perplexidade da terapeuta e a pedofilia do autor de livros de auto-ajuda em Donnie Darko, a manipulativa forma terapêutica de apagamento de memórias em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, o fracasso da tecnologia da empresa que vende “sonhos lúcidos” por não prever a irrupção do inconsciente em seu cliente no filme Vanilla Sky. A crítica apresentada a essas “tecnologias do espírito” lembra as advertências de Mani de evitar as tentações consoladoras da religião e do hedonismo como formas anestésicas de combater a melancolia. Em Donnie Darko os seguidores do pedófilo escritor de auto-ajuda são apresentados quase como fanáticos religiosos e a técnica de apagar memórias em Brilho Eterno é, na verdade, uma forma de eliminar sentimentos de culpas para o cliente viver a vida de forma hedonista.
Como já apresentou Sfez (Thomas Sfez, Crítica da Comunicação, São Paulo: Loyola, 2000) , essas “tecnologias do espírito” possuem uma secreta aliança com as novas tecnologias computacionais ao comparar o psiquismo humano a um software, o cérebro a um hardware e a interioridade humana como uma máquina expressiva governada pelo mesmo princípio das redes telemáticas: rede, paradoxo, simulação e interação. Estas “tecnologias do Eu” chegam na crista da onda eufórica em relação à Internet e às tecnologias computacionais e de simulação. Aparentemente, as críticas em relação às tecnologias do espírito nos filmes gnósticos pós-2000 se alinham ao refluxo dos sonhos utópicos tecnocientíficos.