segunda-feira, abril 19, 2010
Wilson Roberto Vieira Ferreira
No seminário avançado na última reunião do Grupo de Pesquisas sobre Religião e Sagrado no Cinema e Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi (UAM) aprofundou-se as discussões em torno da recorrência de elementos gnósticos na recente produção cinematográfica. Foi abordado desde a natureza do Sagrado na experiência da gnose presente nas narrativas fílmicas até a experiência tecnognóstica propiciada pela introdução do 3D no dispositivo cinematográfico.
Dando continuidade aos seminários avançados do grupo de pesquisas sobre Religião e o Sagrado no Cinema e Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi, apresentei os resultados das minhas pesquisas sobre Cinema e Gnosticismo. Participaram das intensas discussões do seminário na tarde do último sábado (17/04) o Prof. Dr. Luiz Vadico (professor do Mestrado da UAM), a Profa. Ilca Moya da UAM e Geraldo de Lima (Mestre pela UAM).
A apresentação se iniciou com a minha proposta sobre a busca pela “Negatividade do Sagrado”, já discutido em postagens anteriores neste blog (clique aqui para ler sobre o conceito de “negatividade do sagrado”). A partir da tese de doutorado de Eduardo Losso “Teologia Negativa e Adorno – a secularização da mística na arte moderna” (Faculdade de Letras da Universidade federal do RJ) onde se discute as diferenças entre Teologia Positiva, Teologia Negativa e Metafísica dentro do pensamento de Theodor Adorno, procurei traçar o gnosticismo como uma Teologia Negativa ou herética e como essa natureza se manifesta no filme gnóstico.
O primeiro aspecto é a diferença entre gnose e auto-conhecimento (tal como preconizado pela literatura de auto-ajuda) nos filmes gnósticos. Embora possamos qualificar a gnose como uma “reforma íntima” do protagonista, não se confunde com o auto-conhecimento. Enquanto a gnose se origina na Teologia Negativa (onde o indivíduo não se submete à Totalidade mas rompe com essa ordem criada pelo Demiurgo), ao contrário, o auto-conhecimento busca inserir o indivíduo numa totalidade racionalizante e confortadora (seja religiosa ou científica). Essa é a Teologia Positiva onde a verdade está na Totalidade e não na existência individual. Por isso, esse discurso da auto-ajuda ou New Age (“Somos todos um”) se converteria numa falsa experiência do sagrado, porque totalitária: o sagrado como uma percepção intuitiva do Todo. Diferente desse ideário, a gnose é a percepção intuitiva de uma ausência de sentido no Todo, porque constructu arbitrário e corrompido de um Demiurgo (o reality show de Show de Truman ou o mundo virtual da Matrix).
O segundo aspecto está na construção narrativa dos filmes gnósticos onde não há restabelecimento da ordem: nos filmes gnósticos o protagonista não é punido pela transgressão da ordem. Ao contrário das exigências decorrentes dos gêneros comerciais onde o clichê de quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem é dominante, no filme gnóstico a quebra da ordem não é punida, isto é, não há um restabelecimento da ordem (seja social, política, institucional, familiar, moral ou pessoal) com a punição das pretensões de ruptura das ilusões da realidade material.
Filmes 3D, Imersão e estado de suspensão gnóstica
Vadico propôs se os recursos digitais e do 3D no cinema estariam introduzindo não apenas a alteração da relação do público com o filme (de espectador passivo a uma relação de jogo) mas de criar uma experiência gnóstica de transcendência do corpo ao simular uma situação de imersão. Teríamos, dessa forma, a alteração não apenas da recepção como também do próprio dispositivo cinematográfico.
Para mim, essa aproximação das inovações tecnológicas do dispositivo cinematográfico e uma experiência espiritual tecnognóstica lembra o estado de “suspensão” de Basilides (filósofo gnóstico de Alexandria - 117-138 DC- possivelmente originário de Antioquia). Para ele, a gnose somente poderia ser buscada por um específico estado alterado de consciência: o silêncio, o esvaziamento da mente de todo ou qualquer pensamento pois a linguagem e o conhecimento são fontes de erro (Deus é inapreensível e icogniscível) e o estado mental de suspensão. Essa hipótese tecnognóstica no dispositivo cinematográfico mostrou-se interessante nas discussões, pois se associou ao personagem gnóstico do Viajante. A simulação de imersão do espactador no filme lembra um estado de suspensão (entre o corpo físico e a narrativa fílmica, isto é, o espectador tem a sensação de estar sendo impelido para uma outra dimensão sensorial mas, ao mesmo tempo, sabe estar em uma situação ficcional).
Como vimos em postagens anterioras desse blog a respeito dos protagonistas nos filmes gnósticos (clique aqui para ler), essas são características do personagem Viajante e o tema é “O Jogo”. Se a experiência de imersão do 3 D cria uma relação de jogo entre espectador e narrativa fílmica, estaríamos diante de uma tendência onde o filme gnóstico (como Avatar, por exemplo) estaria explorando a recorrência de elementos do gnosticismo não apenas na narrativa, mas, inclusive, na relação do público com o dispositivo ao simular estados alterados de consciência tecnognósticas.
Isso suscitou outra questão: qual o sentido dessa experiência “tecnognóstica”? É uma verdadeira experiência de gnose ou de sagrado? Isso levou a lembrar das críticas de autores como Erick Felinto e Theodore Roszak (veja de Felinto o livro “Religião das Máquinas” e de Roszak o livro , “From Satori to Silicon Valley: San Francisco and the American Counterculture”) fazem dessa aproximação paradoxal entre novas tecnologias e o impulso místico do Gnosticismo. Roszak, ironicamente, afirma que a tecnologia seria um “atalho para Satori”, um atalho para mais rapidamente alcançar o descarte da existência física do corpo.
Lembrei que devemos diferenciar entre duas vertentes históricas do Gnosticismo, a partir do Gnosticismo clássico do início da era cristã: o Gnosticismo Cabalístico e o Gnosticismo Alquímico. Enquanto o primeiro vê a matéria como disforme, caótica e sem vida própria, necessitando ser organizada e vivificada pelo espírito (e, por esse motivo, encarada como grilhões que confinam a plenitude espiritual), no segundo a matéria não deve ser simplesmente descartada, mas redimida (a manipulação alquímica da matéria tem a ver com o próprio refinamento espiritual). Esse tecnognosticismo cinematográfico se enquadraria nessa busca de um atalho para a gnose, de forma rápida, lúdica e irrefletida. Essas formas tecnognósticas levariam a conseqüências como o solipsismo e a uma liquidação do indivíduo no interior de uma totalidade tecnocientífica.