segunda-feira, abril 26, 2010
Wilson Roberto Vieira Ferreira
A Estrada (The Road, 2009) é um filme do gênero pós-apocalipse que você nunca viu. Ao contrário de filmes com a mesma temática como O Livro de Eli (The Book of Eli, 2010), a fé dos protagonistas não está em livros sagrados ou em Deus. A fé perdida deve ser buscada na "fogo do coração", a gnóstica busca da lembrança daquilo que foi perdido e que não está nesse mundo, mas em algum lugar idílico no "Sul". Alerta de spoilers nesse post.
O mundo como conhecemos foi destruído por algum evento apocalíptico indeterminado. O resultado é a morte progressiva do planeta: com exceção dos seres humanos, animais e o reino vegetal estão morrendo em meio a terremotos e a uma insistente chuva que cai num mundo cada vez mais cinzento e gelado. Sem alimentos, grupos se organizam em gangs em busca de combustível e de outros seres humanos para serem canibalizados. Aqueles que não recorreram ao suicídio lutam para não serem capturados por essas gangs e sobreviver sem comer seus semelhantes.
Um homem (Viggo Mortensen) tem apenas seu filho (Kodi Smit-McPhee) para a companhia nesta terra árida. A mãe (Charlize Theron) se matou, e a única esperança de sobreviver ao inverno eterno é atravessar o país em direção do litoral e rumar para o sul. Ao longo de seu caminho deverão enfrentar a constante ameaça das gangues canibais e os perigos de um planeta que está morrendo.
Esse plot parece ser familiar: mais um filme pós-apocalíptico na linha de Mad Max ou do recente O Livro de Eli (aliás, como os norte-americanos gostam de destruir o seu país nos filmes!). Porém, sua narrativa glacial e precisa, com uma constante atmosfera de horror pelos recorrentes sinais de canibalismo generalizado, torna “A Estrada” um filme pós-apocalíptico como jamais vimos.
Mas, principalmente, o tema da esperança e fé é abordado por um viés gnóstico, o que o torna um filme diferenciado para o gênero. O filme é uma adaptação do livro “The Road” (ganhador do Prêmio Pulitzer) de Cornac McCarthy cuja obra parece ter grande influência do gnosticismo como no livro Blood Meridian (sua adaptação cinematográfica está anunciada para 2011), um western que, segundo Leo Gaugherty, “é uma tragédia gnóstica, uma rara união da ideologia gnóstica com a tragédia helenística” ( "Gravers False and True: Blood Meridian as Gnostic Tragedy" Southern Quarterly 30, No. 4, Summer 1992, pages 122-133).
Em A Estrada pai e filho (detalhe importante, nenhum personagem do filme tem nome) lutam para encontrar lugares seguros e se manterem aquecidos. O pai protege ferozmente seu filho e, em uma cena perturbadora, mostra-lhe como se matar se necessário -, presumivelmente, se ele é capturado por canibais e não tem como escapar. Mas ele também diz a seu filho que eles são "portadores do fogo", uma frase que é repetida várias vezes no filme. Esse "fogo" é tanto o fogo literal que cozinha os alimentos e os mantêm quentes, mas também a esperança que eles têm pela humanidade. Mais do que isso, é um simbolismo gnóstico.
Como o homem fala sobre seu filho: "Se ele não é a palavra de Deus, Deus nunca falou." O pai e filho devem carregar a partícula de Luz no coração, partícula que, segundo a mitologia gnóstica, é a reminiscência da nossa verdadeira origem no Pleroma. Seres que somos, exilados num cosmos em queda, devemos manter essa partícula (gnose) que nos reconduzirá às nossas verdadeiras origens.
Constantemente no filme o filho preocupa-se em como distinguir os homens bons dos maus. Assim como em Blood Meridian, temos aqui o antagonismo Maniqueo e Zoroástrico: a divisão entre “good guys e bad guys” não é aquela do maniqueísmo hollywoodiano, mas a do conflito cósmico fundamental em torno da posse dessas partículas de Luz. Evitar ser canibalizado pelos “Bad Guys” é evitar que o Demiurgo (artífice daquele mundo pós-apocalíptico.) tome a posse das partículas que dariam uma sobrevida a um mundo em queda.
Por isso, a maneira como o tema da fé e da esperança é abordada pelos protagonistas é tipicamente gnóstica. Ao contrário do filme “Livro de Eli” onde a fé é dada pelas palavras da Bíblia memorizada pelo protagonista (o antagonista luta para ter a posse do livro sagrado para, também, memorizar suas palavras), aqui a fé é abordada como uma gnose, um processo de mergulho íntimo onde busca-se no coração a partícula de Luz que será o referencial para o discernimento entre o Bem e o Mau. Ao longo do filme há diversas referências religiosas (Versículo do livro bíblico de Jeremias – “Eis o vale do massacre” - pichado em uma ponte em ruínas, os protagonistas se abrigam em uma igreja também em ruínas, postes inclinados como fossem cruzes fincadas em terras arrasadas etc.). A religião é colocada como mais um detalhe de um cenário em ruínas. Resta aos protagonistas uma busca íntima. Não há mais fé em Deus, mas apenas em si mesmo. É o típico caminho da Gnose. Ao contrário do pai que foi moldado por anos de desespero tornando-se impiedoso, feroz e desconfiado de qualquer um que cruze o caminho, o filho, ao contrário é ainda inocente e ingênuo, mas consciente dos males do mundo. A cada diálogo a visão cínica de desesperançada do pai é contrastada pela esperança do filho em encontrar o bem que ainda possa existir no interior de todas as pessoas.
Curioso no filme é o fato de nenhum personagem ter nome. Isso tem um duplo sentido na narrativa. De um lado, em um mundo pós-apocalíptico os nomes são inúteis, os homens tornam-se animais como rebanho de Gado para os canibais. Por outro, nessa circunstância as ações falam mais atos que nomes ou papéis sociais que possam resultar. O nome não faz uma pessoa e não é necessário para você se conectar com eles como algo "real." Nossas ações é o que diz e define quem somos, e não nossos nomes. Mais um tema gnóstico e, talvez, o tema principal do filme: mais importante do que nomes e papéis sociais estão as ações e o coração que vão indicar se você mantém a partícula de Luz acesa em seu interior. Em uma cena, um homem pergunta a Mortensen se é um médico, ao que ele responde: "eu não sou nada."
Após chegar ao litoral e o pai morrer, o menino vai encontrar uma família que o adotará. O diálogo final entre eles é a síntese da mensagem gnóstica contida no filme: a condição humana como a de seres exilados que mantêm uma reminiscência da sua verdadeira origem. A esposa diz para o menino: “Estou tão feliz em vê-lo. Sabia que temos seguido você? Te vimos com o seu pai. Temos muita sorte. Estávamos muito preocupados com você. Agora não temos que nos preocupar com mais nada.”
O menino não apenas encontrou a bondade no íntimo humano. Esse linha de diálogo é emblemática por encerrar um profundo significado gnóstico: como anthropos que decaíram para esse cosmos dominado por um Demiurgo que nos aprisiona, somos observados por Sophia (a personagem que conversa com o menino é feminina) que acompanha nossos progressos e quedas, à espera de que a lembrança do que foi perdido nos desperte.
Simbolismos da Água e dos Pontos Cardeais
Em “A Estrada” temos diversos simbolismos e iconografias, mas destacam-se dois simbolismos fundamentais para a narrativa: a praia (ou “costa” como referida no filme) e o ponto cardeal Sul.
O importante diálogo final, assim como a morte do pai, ocorrem na praia. Em nossas pesquisas podemos perceber que o elemento água é recorrente nos filmes gnósticos: não aparece como mero ornamento ou contextualização geográfica. Participa como elemento ativo de significação, fazendo parte de mudanças decisivas na ação dos protagonistas ou na interpretação da estória.
“As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte da vida, meio de purificação, centro de regenerescência. Esses três temas se encontram nas mais antigas tradições e formam as mais variadas combinações imaginárias” (CHEVALIER, Jean e GHEEBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos, Editora José Olympio, 2009, p.15).
Na praia o filho vê a morte do pai (simbolicamente marcando a morte dos vínculos do anthropos, o filho, com o cosmos físico que o aprisiona) e o encontro final com Sophia (“agora não temos que nos preocupar com mais nada”, diz).
A estratégia de sobrevivência dos protagonistas é ir para o litoral e, depois, rumar para o Sul. Os pontos cardeais têm uma elaborada simbologia nas mais diversas culturas. Muitas crenças sobre a origem da vida, a morada dos deuses e dos mortos, à evolução cíclica etc. se articulam em torno dos eixos cruzados em forma de cruz. Para o pensamento analógico a oposição cria um vínculo: o Sul é oposto ao Norte, mas o Sul leva ao Norte. Esse princípio de descontinuidade cíclica é a base dos processos iniciáticos de encadeamento da morte e do renascimento. Para muitas tradições esotéricas cada direção está associada a um ser angelical.
O Sul está associado ao anjo Mikael, aquele que ajuda o peregrino a viajar com segurança. Assim como os protagonistas de “A Estrada” que buscam na jornada através de terras arrasadas a fé perdida e a chama acesa (a gnose) no íntimo da natureza humana.
Ficha Técnica:
Título Original: The Road
Duração: 112 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Distribuidora(s): Paris Filmes
Produtora(s): Dimension Films, 2929 Productions, Nick Wechsler Productions, Chockstone Pictures, Road Rebel
Ano de lançamento: 2009
País: EUA
Diretor: John Hillcoat
Roteirista(s): Cormac McCarthy, Joe Penhall
Elenco: Viggo Mortensen, Kodi Smit-McPhee, Robert Duvall, Guy Pearce , Molly Parker, Michael K. Williams, Garret Dillahunt, Charlize Theron, Bob Jennings, Agnes Herrmann, Buddy Sosthand, Kirk Brown, Brenna Roth, Jack Erdie, David August Lindauer
Trailer de "A Estrada"