sábado, abril 01, 2017

O projeto "Lance Limpo" da Globo e os "idiotas da objetividade" no futebol


A doença crônica do tautismo (tautologia + autismo), em processo de metástase na TV Globo, assume formas cada vez mais imprevisíveis na emissora. Agora contamina seus jornalistas que começam a levar a sério a própria visão de mundo de uma TV fechada em si mesma. O apresentador do Globo Esporte, Ivan Moré, “teve uma ideia” que prontamente recebeu as bênçãos do indefectível Galvão Bueno em seu programa “Bem, Amigos!”: o projeto “Lance Limpo” no qual serão apresentados “exemplos de nobreza e honestidade” – jogadores que confessam que cavaram pênaltis, por exemplo, fazendo árbitros corrigirem seus próprios erros. Para Moré e Bueno, na situação atual de “corrupção, desonestidade e ladroagem que dominam o País”, o esporte deve dar bons exemplos para ajudar a resolver o “problema sério de formação do cidadão”. Uma espécie de “Pan-Lava Jato” histérico que agora vê em qualquer coisa a necessidade de receber o raio moralizador. Mas pode matar o maior produto global: o futebol – assim como Nelson Rodrigues alertava que os “idiotas da objetividade” queriam destruir o futebol pelo complexo de vira-latas, da mesma forma a  moralização (que não consegue moralizar a si mesma) quer limpar a natureza imaginária de todo jogo: o drama e o lúdico. Mas há também uma agenda secreta por trás do tautista projeto: o anarcocapitalismo no esporte.

A doença crônica do tautismo (neologismo da Teoria dos Sistemas que descreve o patológico “fechamento operacional” de um sistema que, pelo seu gigantismo e complexidade, fecha-se ao mundo exterior, descrevendo-o a partir de uma imagem que a estrutura faz de si mesma) da TV Globo cresce cada vez mais, manifestando-se nas formas mais imprevisíveis.

Nas transmissões esportivas, o tautismo já assumiu diversas variações: na metalinguagem (a Globo passa a maior parte do tempo falando muito mais da transmissão do que sobre o próprio evento transmitido), na auto-referência (os jornalistas transformam-se nos protagonistas dos acontecimentos), nos atos-falhos quando sem querer demonstra como interfere na gestão do esporte (quando um telejornal “previu” 24 horas antes o resultado do sorteio de mando da final da Copa do Brasil – clique aqui) e muito mais que extrapolariam o espaço dessa postagem.

Inebriada pela obesidade e força em impor a sua visão de mundo tautista na próprio cenário político brasileiro, a patologia crônica global começa a atingir seus próprios jornalistas que passam a confundir a agenda hegemônica da emissora como fosse a própria realidade que devem reportar.

Uma dessas “vítimas” é o jornalista esportivo Ivan Moré, apresentador do programa Globo Esporte. Jovem jornalista que substituiu Tiago Leifert (que largou o jornalismo esportivo e foi para o entretenimento - mais um reflexo tautista dos jornalistas que se transformam em personagens de si mesmos), vem demonstrando que tem bastante futuro dentro paraíso artificial que a Globo construiu para si mesma.


“Lance Limpo”


Convidado para participar do programa Bem, Amigos! apresentado pelo indefectível Galvão Bueno, Moré apresentou uma “ideia que teve” e como, em primeiro lugar, “explicou a parada” para Bueno que acabou dando suas bênçãos para o projeto intitulado “Lance Limpo”.

“O que vale no esporte? O resultado ou a disputa justa? A vitória a qualquer preço ou o jogo limpo? O Globo Esporte te convida para acompanhar alguns exemplos”, diz a abertura do vídeo sobre o projeto. E toca a apresentar exemplos edificante que, claro, estão fora do Brasil – no futebol alemão, no futebol chinês etc. Jogadores que admitiram para o árbitro que cavaram o pênalti e o clube chinês que penalizou de forma exemplar seu jogador que agrediu o adversário.

O projeto “Lance Limpo” idealizado por Ivan Moré apresentará “exemplos nobres”, “atitudes que influenciam positivamente o comportamento das pessoas”, “lealdade, companheirismo e honestidade”.  E o vídeo de lançamento do projeto termina em uma estética motivacional que faria inveja a qualquer projeto corporativo daqueles que querem convencer o empregado a “vestir a camisa”: “Queremos mostrar que vocês podem fazer a diferença com atitudes nobres... em que a Verdade prevaleça!”.


Pan-Lava Jato


De onde veio a inspiração para um projeto tão edificante? Claro, do momento atual em que o “País está sendo passado a limpo”. Para Galvão Bueno (com a anuência do ex-jogador Caio) o País tem um “problema muito sério de formação do cidadão, vivemos um momento difícil de desonestidade, de muita corrupção, de muita ladroagem...”.

Se o hábito do cachimbo faz a boca torta, anos batendo bumbo para a Operação Lava Jato dentro da sua seletiva agenda de moralização nacional (de uma emissora incapaz de moralizar a si mesma e a complexa engenharia financeira de lavagem de dinheiro através da “Globo Overseas” em paraísos fiscais) resultou em uma peculiar visão de mundo na qual os próprios jornalistas globais passaram a acreditar. Virou uma espécie de paradigma para avaliar qualquer acontecimento.

Moré e Galvão passaram acreditar numa “Pan-Lava Jato”, algo como a manifestação de um patológico “Panteísmo” histérico: agora, temos que passar TUDO a limpo! – a política, o esporte, a economia, as relações familiares, pessoais. Doravante, tudo deverá ser regido pelos princípios da transparência, verdade e justiça. Será que Ivan Moré se sentirá como uma espécie de juiz Sérgio Moro do esporte? Assim como ocorreu com o ínclito juiz, a mosca azul da fama também picará Ivan Moré? A Verdade e a Justiça a jato para tudo e para todos?


Idiotas da objetividade


Mas vamos ficar apenas no futebol. Se ainda estivesse entre nós, certamente o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues (1912-1980) os qualificaria como “os idiotas da objetividade” – expressão usada pelo cronista para designar aqueles comentaristas esportivos com “síndrome de vira-latas” (“narciso às avessas”) que só viam mérito no futebol da Europa Setentrional” dos atletas “alimentados como vacas holandesas”.

“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes num corner mal batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural”, dizia Rodrigues para confrontar aqueles comentaristas que cospem números, estatísticas, teorias e lições moral apenas para comprovarem o seu “narcisismo às avessas”.

O tautismo do projeto “Lance Limpo” auto-referencia duas pautas recorrentes da TV Globo: primeiro, que o País é e sempre foi uma merda e que devemos sempre olhar para os exemplos de fora (a rigorosidade germânica, a implacável justiça chinesa, a operosidade e honestidade japonesas etc.); segundo, a guerra contra as torcidas organizadas que buscam a “vitória a qualquer preço – para confirmar uma secreta agenda de transformar estádios em arenas de consumo com uma única torcida composta de famílias e crianças: assim como uma manifestação “coxinha” na Avenida Paulista.

“Homo ludens”


Acompanhando a crítica de Nelson Rodrigues (ele intuitivamente parecia compreender a natureza ao mesmo tempo lúdica e dramática de qualquer jogo), o projeto “Lance Limpo” é a típica ação que comprova o quanto o tautismo torna a emissora cega ao mundo exterior:  é mais uma das diversas inciativas da grande mídia que acabam involuntariamente matando a própria galinha dos ovos de ouro – matando a própria natureza e filosofia do jogo, no caso o futebol, o produto máximo da emissora.

Em postagens anteriores discutíamos a natureza do Jogo à luz do pensamento de Walter Benjamin e do conceito de “homo ludens” de Johan Huizinga. Extrair do futebol o seu aspecto mais lúdico (a falha, o erro, o acidente) significa submeter a esfera imaginária do Jogo à “brancura total” (a histeria da assepsia e limpeza totais, segundo Jean Baudrillard) de um sistema regido pela moralidade do princípio do desempenho - leia BENJAMIN, Walter. Reflexões: a Criança, o Brinquedo e a Educação, Summus, 1984, HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O Jogo como Elemento da Cultura, Perspectiva, 2008, e BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal, Papirus, 1990.

No Jogo experimentamos um prazer irônico e paradoxal: o prazer no erro, na falha. Explicando melhor, o prazer do jogo não está no desempenho maximizado que eliminasse todas as possibilidades de erros, resultando numa transparência total. Pelo contrário, o prazer está no percurso, no perigo, no inesperado que deve ser contornado, superado ou não.

A falha da arbitragem e a burla do jogador são elementos do drama nos quais brincamos com o Mal presente no mundo – além de esquentar mesas de debates na TV e entre amigos, nos faz lembrar que muitas vezes não há justiça no mundo. Essa é a verdadeira lição do Jogo, e não uma suposta moralização com exemplos edificantes.

A assepsia total do Jogo, além de matar o seu centro imaginário, significa cooptá-lo a um mundo injusto que pretende moralizar o esporte ou as brincadeiras infantis por não querer moralizar a si próprio.

"Lance Limpo" e Anarcocapitalismo


Mas há algo mais, uma agenda ideológica que anima o projeto “Lance Limpo” do intrépido Ivan Moré: um “Pan-Anarcocapitalismo”, dessa vez no futebol.

Suponhamos que todos os jogadores se tornem honestos, merecendo agradecimentos dos adversários e um lugar na galeria das almas justas do Globo Esporte. Nesse mundo idílico para quê serviriam árbitros e bandeirinhas? Tribunais esportivas e todo sistema judiciário do esporte? A resposta é clara: não seriam mais necessários porque os jogadores se autorregulariam, dispensando uma instância pública supostamente suja e corrupta.

Desculpe o delírio desse humilde blogueiro, mas imagine essa dimensão pública substituída pela mídia que criaria no futuro uma lista de atletas proscritos por serem desonestos, uma lista macarthista no esporte.

Temos aqui uma delirante distopia anarcocapitalista – instâncias públicas substituídas pela auto-regulação privada e do mercado. O esporte pautado pelo Direito Natural, por uma concepção universal de justiça que substituísse o Direito Positivo na qual regulamenta-se questões intrínsecas a cada cultura e sociedade.

É triste ver toda uma sociedade em busca de super-heróis e modelos moralizantes incapazes de moralizarem a si mesmos.


Postagens Relacionadas












Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review