A doença crônica do
tautismo (tautologia + autismo), em processo de metástase na TV Globo, assume formas cada vez mais
imprevisíveis na emissora. Agora contamina seus jornalistas que começam
a levar a sério a própria visão de mundo de uma TV fechada em si mesma. O
apresentador do Globo Esporte, Ivan Moré, “teve uma ideia” que prontamente
recebeu as bênçãos do indefectível Galvão Bueno em seu programa “Bem, Amigos!”:
o projeto “Lance Limpo” no qual serão apresentados “exemplos de nobreza e
honestidade” – jogadores que confessam que cavaram pênaltis, por exemplo,
fazendo árbitros corrigirem seus próprios erros. Para Moré e Bueno, na situação
atual de “corrupção, desonestidade e ladroagem que dominam o País”, o esporte
deve dar bons exemplos para ajudar a resolver o “problema sério de formação do
cidadão”. Uma espécie de “Pan-Lava Jato” histérico que agora vê em qualquer coisa a necessidade de receber o
raio moralizador. Mas pode matar o maior produto global: o futebol – assim como Nelson Rodrigues alertava que os
“idiotas da objetividade” queriam destruir o futebol pelo complexo de
vira-latas, da mesma forma a moralização (que não consegue moralizar a si mesma) quer limpar a
natureza imaginária de todo jogo: o drama e o lúdico. Mas há também uma agenda secreta por trás do tautista projeto: o anarcocapitalismo no esporte.
A doença crônica do tautismo (neologismo da Teoria dos Sistemas que descreve o patológico “fechamento
operacional” de um sistema que, pelo seu gigantismo e complexidade, fecha-se ao
mundo exterior, descrevendo-o a partir de uma imagem que a estrutura faz de si
mesma) da TV Globo cresce cada vez mais, manifestando-se nas formas mais
imprevisíveis.
Nas transmissões esportivas, o tautismo já assumiu
diversas variações: na metalinguagem (a Globo passa a maior parte do tempo
falando muito mais da transmissão do que sobre o próprio evento transmitido),
na auto-referência (os jornalistas transformam-se nos protagonistas dos
acontecimentos), nos atos-falhos quando sem querer demonstra como interfere na
gestão do esporte (quando um telejornal “previu” 24 horas antes o resultado do
sorteio de mando da final da Copa do Brasil – clique aqui) e muito mais que
extrapolariam o espaço dessa postagem.
Inebriada pela obesidade e força em impor a sua
visão de mundo tautista na próprio cenário político brasileiro, a patologia
crônica global começa a atingir seus próprios jornalistas que passam a
confundir a agenda hegemônica da emissora como fosse a própria realidade que
devem reportar.
Uma dessas “vítimas” é o jornalista esportivo Ivan
Moré, apresentador do programa Globo Esporte. Jovem jornalista que substituiu
Tiago Leifert (que largou o jornalismo esportivo e foi para o entretenimento - mais
um reflexo tautista dos jornalistas que se transformam em personagens de si
mesmos), vem demonstrando que tem bastante futuro dentro paraíso artificial que a
Globo construiu para si mesma.
“Lance Limpo”
Convidado para participar do programa Bem, Amigos!
apresentado pelo indefectível Galvão Bueno, Moré apresentou uma “ideia que
teve” e como, em primeiro lugar, “explicou a parada” para Bueno que acabou
dando suas bênçãos para o projeto intitulado “Lance Limpo”.
“O que vale no esporte? O resultado ou a disputa
justa? A vitória a qualquer preço ou o jogo limpo? O Globo Esporte te convida
para acompanhar alguns exemplos”, diz a abertura do vídeo sobre o projeto. E
toca a apresentar exemplos edificante que, claro, estão fora do Brasil – no
futebol alemão, no futebol chinês etc. Jogadores que admitiram para o árbitro
que cavaram o pênalti e o clube chinês que penalizou de forma exemplar seu
jogador que agrediu o adversário.
O projeto “Lance Limpo” idealizado por Ivan Moré
apresentará “exemplos nobres”, “atitudes que influenciam positivamente o
comportamento das pessoas”, “lealdade, companheirismo e honestidade”. E o vídeo de lançamento do projeto termina em
uma estética motivacional que faria inveja a qualquer projeto corporativo
daqueles que querem convencer o empregado a “vestir a camisa”: “Queremos
mostrar que vocês podem fazer a diferença com atitudes nobres... em que a
Verdade prevaleça!”.
Pan-Lava Jato
De onde veio a inspiração para um projeto tão
edificante? Claro, do momento atual em que o “País está sendo passado a limpo”.
Para Galvão Bueno (com a anuência do ex-jogador Caio) o País tem um “problema
muito sério de formação do cidadão, vivemos um momento difícil de
desonestidade, de muita corrupção, de muita ladroagem...”.
Se o hábito do cachimbo faz a boca torta, anos
batendo bumbo para a Operação Lava Jato dentro da sua seletiva agenda de
moralização nacional (de uma emissora incapaz de moralizar a si mesma e a
complexa engenharia financeira de lavagem de dinheiro através da “Globo
Overseas” em paraísos fiscais) resultou em uma peculiar visão de mundo na qual
os próprios jornalistas globais passaram a acreditar. Virou uma espécie de
paradigma para avaliar qualquer acontecimento.
Moré e Galvão passaram acreditar numa “Pan-Lava
Jato”, algo como a manifestação de um patológico “Panteísmo” histérico: agora,
temos que passar TUDO a limpo! – a política, o esporte, a economia, as relações
familiares, pessoais. Doravante, tudo deverá ser regido pelos princípios da
transparência, verdade e justiça. Será que Ivan Moré se sentirá como uma
espécie de juiz Sérgio Moro do esporte? Assim como ocorreu com o ínclito juiz,
a mosca azul da fama também picará Ivan Moré? A Verdade e a Justiça a jato para
tudo e para todos?
Idiotas da objetividade
Mas vamos ficar apenas no futebol. Se ainda
estivesse entre nós, certamente o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues
(1912-1980) os qualificaria como “os idiotas da objetividade” – expressão usada
pelo cronista para designar aqueles comentaristas esportivos com “síndrome de
vira-latas” (“narciso às avessas”) que só viam mérito no futebol da Europa
Setentrional” dos atletas “alimentados como vacas holandesas”.
“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A
mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes num corner
mal batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural”, dizia Rodrigues para
confrontar aqueles comentaristas que cospem números, estatísticas, teorias e
lições moral apenas para comprovarem o seu “narcisismo às avessas”.
O tautismo do projeto “Lance Limpo” auto-referencia
duas pautas recorrentes da TV Globo: primeiro, que o País é e sempre foi uma
merda e que devemos sempre olhar para os exemplos de fora (a rigorosidade
germânica, a implacável justiça chinesa, a operosidade e honestidade japonesas
etc.); segundo, a guerra contra as torcidas organizadas que buscam a “vitória a
qualquer preço – para confirmar uma secreta agenda de transformar estádios em
arenas de consumo com uma única torcida composta de famílias e crianças: assim
como uma manifestação “coxinha” na Avenida Paulista.
“Homo ludens”
Acompanhando a crítica de Nelson Rodrigues (ele
intuitivamente parecia compreender a natureza ao mesmo tempo lúdica e dramática
de qualquer jogo), o projeto “Lance Limpo” é a típica ação que comprova o
quanto o tautismo torna a emissora cega ao mundo exterior: é mais uma das diversas inciativas da grande
mídia que acabam involuntariamente matando a própria galinha dos ovos de ouro –
matando a própria natureza e filosofia do jogo, no caso o futebol, o produto
máximo da emissora.
Em postagens anteriores discutíamos a natureza do
Jogo à luz do pensamento de Walter Benjamin e do conceito de “homo ludens” de
Johan Huizinga. Extrair do futebol o seu aspecto mais lúdico (a falha, o erro,
o acidente) significa submeter a esfera imaginária do Jogo à “brancura total”
(a histeria da assepsia e limpeza totais, segundo Jean Baudrillard) de um
sistema regido pela moralidade do princípio do desempenho - leia BENJAMIN, Walter. Reflexões: a Criança, o Brinquedo e a Educação, Summus, 1984, HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O Jogo como Elemento da Cultura, Perspectiva, 2008, e BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal, Papirus, 1990.
No Jogo experimentamos
um prazer irônico e paradoxal: o prazer no erro, na falha. Explicando melhor, o
prazer do jogo não está no desempenho maximizado que eliminasse todas as
possibilidades de erros, resultando numa transparência total. Pelo contrário, o
prazer está no percurso, no perigo, no inesperado que deve ser contornado,
superado ou não.
A falha da
arbitragem e a burla do jogador são elementos do drama nos quais brincamos com
o Mal presente no mundo – além de esquentar mesas de debates na TV e entre
amigos, nos faz lembrar que muitas vezes não há justiça no mundo. Essa é a
verdadeira lição do Jogo, e não uma suposta moralização com exemplos
edificantes.
A assepsia
total do Jogo, além de matar o seu centro imaginário, significa cooptá-lo a um
mundo injusto que pretende moralizar o esporte ou as brincadeiras infantis por
não querer moralizar a si próprio.
"Lance Limpo" e Anarcocapitalismo
Mas há
algo mais, uma agenda ideológica que anima o projeto “Lance Limpo” do intrépido
Ivan Moré: um “Pan-Anarcocapitalismo”, dessa vez no futebol.
Suponhamos
que todos os jogadores se tornem honestos, merecendo agradecimentos dos
adversários e um lugar na galeria das almas justas do Globo Esporte. Nesse
mundo idílico para quê serviriam árbitros e bandeirinhas? Tribunais esportivas
e todo sistema judiciário do esporte? A resposta é clara: não seriam mais necessários
porque os jogadores se autorregulariam, dispensando uma instância pública
supostamente suja e corrupta.
Desculpe o
delírio desse humilde blogueiro, mas imagine essa dimensão pública substituída
pela mídia que criaria no futuro uma lista de atletas proscritos por serem
desonestos, uma lista macarthista no esporte.
Temos aqui
uma delirante distopia anarcocapitalista – instâncias públicas substituídas
pela auto-regulação privada e do mercado. O esporte pautado pelo Direito
Natural, por uma concepção universal de justiça que substituísse o Direito
Positivo na qual regulamenta-se questões intrínsecas a cada cultura e
sociedade.
É triste
ver toda uma sociedade em busca de super-heróis e modelos moralizantes
incapazes de moralizarem a si mesmos.
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