O
Cine Brasília, em Santos, litoral de São Paulo, foi o último cinema de bairro da
cidade a fechar suas portas. Com sua estética modernista que procurava emular a
Brasília de Oscar Niemeyer e, assim como todos os outros cinemas de bairro, foi
corroído por dois fatores que ajudaram a implantar no País o projeto da grande
mídia idealizado pelo Golpe Militar de 1964: concentração do lazer
exclusivamente na TV e, principalmente, a recessão econômica e hiperinflação.
Não é à toa que cinemas de bairro viraram supermercados, igrejas evangélicas ou
bingos – explorar a desesperança oferecendo alguma possibilidade de salvação,
seja para o bolso ou para a alma. Esse é o projeto oculto: quanto pior o País, melhor para a grande
mídia. Assim, sempre terá uma audiência deprimida e amedrontada. Por isso, fiel
e isolada dentro de suas casas diante do neuroléptico da TV. Sem renda para
usufruir do verdadeiro lazer, entretenimento e cultura oferecidos por cinemas e
teatros.
Todas
as vezes que esse humilde blogueiro desce a serra para passar uns dias na
cidade natal de Santos, litoral de SP, uma melancolia nostálgica toma o autor
dessas mal traçadas linhas. Nem tanto pelas óbvias memórias da infância e
juventude universitária a cada esquina, praças ou botecos que vejo. Mas,
principalmente, por deparar-me com lugares que no passado foram símbolos de um
futuro para o qual, mais uma vez, o País vira as costas.
Assim
como nesse momento quando o País renuncia ao futuro com pacotes de maldades como, por
exemplo, PEC 241 e Operação Lava Jato - em nome do combate da corrupção, joga-se
fora a água suja com o bebê junto.
Um
desses lugares está na Avenida Pedro Lessa, no bairro de Aparecida, onde
outrora foi o Cine Brasília, hoje transformado em supermercado de uma conhecida
rede. Um cinema que heroicamente resistiu à extinção dos cinemas de bairro,
encerrando suas atividades somente no finalzinho dos anos 1970. Foi o último da
sua espécie em Santos, numa época em que todas as salas de exibição já estavam
concentradas no centro turístico do Gonzaga, no entorno da avenida Ana Costa e
Praia.
O
Cine Brasília foi aquele que mais persistiu por ser uma sala de bairro que já
contava, na época, com ar condicionado, snack bar, bomboniere e outras
comodidades para o público. E um sistema de projeção surpreendente para um
cinema de bairro: um moderno projetor italiano para filmes 35 e 70mm.
Cine Brasília em 1977, Santos, SP |
Cine Brasília e “Laranja Mecânica”
Além
disso, o cinema contava com uma arquitetura inspirada nas retas e curvas da
Brasília de Oscar Niemeyer. Na fachada, um imenso mural com as famosas
esculturas e formas plásticas como as colunas em curvas e retas do Palácio do
Planalto, tudo estilizado por linhas geométricas sobrepostas em contrastes
suaves. No saguão e sala de exibição, figuras dos regionalismos brasileiros
como o jangadeiro, baianas etc., em estilo geométrico abstrato onde estavam colocadas
luminárias spots que projetavam efeitos suaves de luz para o alto.
Um
cinema que ousava na programação, inclusive exibindo o polêmico filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick (quando censores da ditadura militar encheram o filme de bolinhas pretas), já nos
estertores da sua existência.
Sem
idade suficiente para assisti-lo, esse humilde blogueiro tentou até entrar no
Cine Brasília com uma carteirinha de identificação falsa. Mas o rosto imberbe e
a cara de moleque me denunciaram, e fui prontamente retirado do snack bar onde
preparava-me para assistir ao filme.
Brasília e Niemeyer: a utopia da Civilização Brasileira |
Cine Brasília e a Civilização Brasileira
Mais
do que um sala de exibição de bairro, o Cine Brasília inspirava a utopia da
civilização brasileira vislumbrada por Oscar Niemeyer – uma civilização
industrial repentinamente enxertada no sertão selvagem, ao mesmo tempo que
produzia uma linguagem (cinema, artes, arquitetura, música) capaz de expressar
universalmente os regionalismos nacionais.
Uma
projeto utópico de intelectuais do calibre de Niemeyer, Lucio Costa ou Darcy
Ribeiro, tudo abortado pelo golpe militar de 1964 que inseriu no País dois
elementos corrosivos cujo fim do Cine Brasília foi um evento particular desse
contexto mais geral: a propagação do american
way of life através da primeira rede de TV do País, a Globo; e a recessão
econômica e hiperinflação.
Claro
que a televisão foi o primeiro fator apontado para o fim dos cinemas de bairro. Mas, o que realmente exterminou essas salas de exibições foi a recessão
econômica pós-milagre econômico da ditadura militar – crise e perda do poder
aquisitivo fizeram as pessoas ficarem presas diante da TV, com latas de cerveja
e enquanto assistiam a um jogo de futebol ao vivo.
Décadas
se passaram e esse ainda continua sendo a estratégia de sobrevivência da grande
mídia televisiva ao apoiar as atuais medidas ortodoxas neoliberais como Estado
Mínimo e PEC 241: recessão e tempos difíceis tornam as pessoas amedrontadas e a
TV transforma-se na única forma de lazer.
Salvação para o bolso e a alma
Com
a recessão econômica e portas fechadas, o Cine Brasília transformou-se em
supermercado, passando de uma rede para outra. Outros cinemas de bairro da
cidade como o São José, Gonzaga, Ouro Verde e Marapé viraram igrejas
evangélicas, bingo, estacionamento e mais supermercados.
Extinções
de cinemas em série que lembram a ironia do filme A Última Sessão de Cinema (1971) de Peter Bogdanovich: é irônico
que os mesmos locais que embalaram sonhos de uma geração se transformem em
pesadelo dessas mesmas pessoas quando atingem a velhice – sem renda para o
lazer, entretenimento e cultura, resta a compra dos víveres básicos para se
manterem vivas.
Comprovando
a lição final desse filme clássico: quando não há mais ficção no entretenimento, o indivíduo passa a perceber a sua finitude e,
consequentemente, passa a viver mais triste e desesperançado.
Por
isso, cinemas de bairro também transformaram-se em bingos e igrejas evangélicas:
explorar essa desesperança, oferecendo alguma possibilidade de salvação, seja
no bolso ou na alma.
Na
sucessão de crises econômicas (e políticas) cíclicas que o País atravessa desde
1964, os cinemas populares e de bairro perderam sua demanda – pessoas
amedrontadas em relação ao futuro com a progressiva perda do poder aquisitivo
do salário ou aposentadoria, isolam-se e fecham-se nas suas residências. A
televisão de massas prospera nesse baixo astral psíquico.
No
caso de Santos, bairros populares como Macuco, Encruzilhada, Aparecida,
Estuário e Vila Matias perderam suas salas de exibição. Hoje, os cinemas de rua
concentram-se no Gonzaga e Praia ou nos
cinemas de shoppings nas salas multiplex.
Cinema para turistas ou classes médias.
O destino final do Cine Brasília |
O Projeto da Grande Mídia: quanto pior melhor
O
caso do fim do Cine Brasília, convertido em supermercado, é um exemplo
particular da colonização ideológica generalizada iniciado com o projeto da
ditadura militar que não acabou – é continuado, cujas consequências ainda se
desdobram, como vemos no atual momento brasileiro.
Embora
formalmente vivamos em uma democracia formal (com urnas, eletrônicas, e votos)
a propriedade dos meios de comunicação continua com a mesma configuração,
monopolista e não democrática. Para essa grande mídia, não interessa apenas
intervir diretamente na política brasileira, como mostrou nos anos recentes o
esforço hercúleo em rebocar a oposição até o impeachment da presidenta Dilma.
A
grande mídia pensa principalmente na sua sobrevivência sob a concorrência das
tecnologias de convergência - Internet e
dispositivos móveis. Compulsivamente procura manter o esquema de captação
publicitária de inserção na grade de programação massificada – e no caso da
Globo, através do BV, Bônus por Volume, propina que a Globo adianta para as
agências de publicidade as verbas que elas planejam gastar em um ano.
Não é à toa que o jornalismo econômico da
Globo seja notabilizado pelos “urubólogos”: quanto pior para o País, melhor
para a Globo e o restante da grande mídia. Por isso que, histericamente, os
“urubólogos” de plantão defendem o sacrifício, o corte na carne, a chibata no
lombo de trabalhadores e aposentados como medidas necessárias para um suposto
crescimento econômico, sempre futuro e distante.
Com
isso terá uma audiência deprimida, amedrontada e ressentida e, portanto, fiel e
isolada dentro de suas casas diante da TV. Sem renda para usufruir do
verdadeiro lazer, entretenimento e cultura oferecido por cinemas e teatros.
Mesmo
o pior filme assistido em um cinema de rua é superior ao melhor filme exibido
na TV. Enquanto, isolados, assistimos a uma obra-prima na telinha da TV, ir
ao cinema mesmo, para assistir ao pior filme, significa quebrar uma rotina –
colocar a melhor roupa, andar pelas ruas e interagir com um cenário urbano.
Liberdade
de ir e vir, convivência urbana e comunitária. Exatamente contra tudo isso a
grande mídia conspira. Enquanto persistir o monopólio midiático nesse País,
continuaremos a ter medo do futuro na grande distopia, todo dia transmitida
ao vivo, através das telinhas como fosse um neuroléptico para mentes
desesperançadas.
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