sexta-feira, outubro 28, 2016

O bizarro show da abertura do túnel suíço: sintoma da cultura do narcisismo


A bizarra e polêmica cerimônia de inauguração do Gothard Base Tunnel (o maior túnel ferroviário do mundo ligando Suíça à Alemanha) está rendendo comentários aqui no blog. O “Cinegnose” interpretou o evento pelo viés do “Sincromisticismo” e do “ecumenismo pós-moderno”. Nosso leitor Wilton Cardoso propôs mais uma interpretação, dessa vez associando a um sintoma psíquico da atual sociedade de consumo: a chamada “Cultura do Narcisismo”, tese do norte-americano Christopher Lasch – haveria uma linha de continuidade entre o pastiche religioso-mítico-ocultista da cerimônia do túnel suíço e o pastiche de produtos como “Harry Potter”, “Senhor dos Anéis” etc.

Mais uma vez o nosso leitor Wilton Cardoso oferece ao Cinegnose uma interessante contribuição ao propor uma terceira interpretação para a bizarra cerimônia de inauguração do maior túnel ferroviário do mundo, através da base dos Alpes, ligando Suíça à Alemanha: o Gothard Base Tunnel.

Na postagem anterior descrevemos a estranha cerimônia transmitida ao vivo para todo o continente (show teatral multimídia inspirado em uma antiga lenda da cultura alpina suíça que envolve o demônio) e as reações entre críticos e espectadores nas redes sociais -  “satanismo”, “ritual illuminati” foram as interpretações conspiracionistas mais lembradas - clique aqui.

Tentando escapar deste conspiracionismo simplista o Cinegnose propôs duas interpretações: evento sincromístico e sintoma de uma espécie de ecumenismo pós-moderno que vem sendo construído midiaticamente desde o início da globalização político-econômica nos anos 1990.


Nosso leitor baseou sua interpretação nas teses de um velho conhecido deste blog: o historiador e crítico social norte-americano Christopher Lasch. Principalmente as teses sobre a cultura do narcisismo, o mínimo eu e o “minimalismo”, sintomas culturais de um mal estar bem diferente da época de Freud. Se na era vitoriana tínhamos a neurose, hoje com o consumismo do capitalismo tardio temos o narcisismo e o chamado “mínimo eu”.

Wilton Cardoso faz uma interessante conexão entre as teses de Lasch, consumismo e o “ecumenismo pós-moderno”. Leia abaixo:

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Creio que a peça expressa um dos aspectos do consumismo do indivíduo contemporâneo. Consumismo que, por sua vez é parte da personalidade narcisista deste indivíduo.

Em Cultura do Narcisismo, Christopher Lasch (Editora Imago, 1983) mostra que a "patologia" dominante do homem contemporâneo não é mais a neurose, como na época de Freud, mas sim o narcisismo. A neurose resulta da repressão da libido nas sociedades puritanas. O narcisismo, por outro lado, se exprime com desejo por aplauso (fama) e culto ao prazer como alívio imediato às frustrações da sociedade capitalista.

Um dos prazeres mais cultuados pelo narcisista é o consumo, que proporciona a ilusão de poder e status aos que podem ter/comprar. Não é preciso dizer que o narcisista-consumista é o indivíduo ideal na sociedade da mercadoria, afinal, sua compulsão pelo consumo faz o capital cumprir sua única função: se mover e multiplicar. O narcisista vive para o capital, embora pense que se sirva dele para engrandecer seu ego.

Christopher Lasch e as edições brasileiras de "Cultura do Narcisismo" e "O Mínimo Eu"

Um aspecto pouco observado da cultura consumismo é o consumo simbólico (o ecumenismo pós-moderno), que avança avidamente sobre todas as tradições dos povos anteriores ao capitalismo. O consumo simbólico retira mitos, lendas, costumes, modas, comidas, crenças e valores de seus significados originais, fundamentais para a reprodução social de suas culturas, e os transforma em mercadorias etéreas, cuja função, como qualquer mercadoria, é movimentar e expandir o capital.

Realizamos diariamente um verdadeiro turismo espiritual por tradições mortas-revividas (será por isto que o homem contemporâneo tem a sensação de ser um morto-vivo, zumbi?). Um exemplo disso são a enormidade de filmes hollywoodianos sobre mitos, lendas, (super) heróis e magia.

Mas, no final das contas, o consumo simbólico vem de encontro a necessidades reais do homem contemporâneo, pois a psique necessita de conferir sentido simbólico à vida. E o capitalismo é incapaz de fornecer este sentido, de produzir, a partir de seus próprio solo, conteúdos que deem sentido à vida humana. O capital é uma abstração, real, mas vazia, cujo único sentido é se transformar em mais capital e cujas leis ignoram totalmente as necessidades materiais e simbólicas da vida humana.

Então, resta apelar às criações simbólicas de outras culturas, cujos sentidos são deturpados, ao serem retiradas de seu contexto inicial e convertidas em mercadorias. Estas versões distorcidas dos mitos apenas aliviam momentaneamente as frustrações do indivíduo narcisista, pois são mercadorias e, como tais, não servem à vida humana, mas apenas à reprodução do capital. O efeito, para além do alívio imediato, é aumentar as frustrações e o sem sentido da vida na sociedade capitalista.

O fato de todos estes mitos convertidos em mercadorias parecerem extremamente infantis e imaturos (pensemos no fenômeno cosplay, no Harry Potter, Senhor dos Anéis, parques temáticos, múmias, vampiros etc.) está ligada à patologia do narcisismo, que fixa o homem na primeira infância, cuja frágil psique está presa ao desejo de satisfação imediata dos prazeres e à necessidade da aprovação incondicional (do aplauso) dos pais.

O narcisista, o homem do capitalismo tardio, é o indivíduo inseguro e fragmentado que quer compensar sua fragilidade com prazer e aplauso, a todo custo.

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