A
bizarra e polêmica cerimônia de inauguração do Gothard Base Tunnel (o maior
túnel ferroviário do mundo ligando Suíça à Alemanha) está rendendo comentários
aqui no blog. O “Cinegnose” interpretou o evento pelo viés do
“Sincromisticismo” e do “ecumenismo pós-moderno”. Nosso leitor Wilton Cardoso
propôs mais uma interpretação, dessa vez associando a um sintoma psíquico da
atual sociedade de consumo: a chamada “Cultura do Narcisismo”, tese do norte-americano Christopher Lasch – haveria uma linha de continuidade entre o pastiche
religioso-mítico-ocultista da cerimônia do túnel suíço e o pastiche de produtos
como “Harry Potter”, “Senhor dos Anéis” etc.
Mais
uma vez o nosso leitor Wilton Cardoso oferece ao Cinegnose uma interessante
contribuição ao propor uma terceira interpretação para a bizarra cerimônia de
inauguração do maior túnel ferroviário do mundo, através da base dos Alpes,
ligando Suíça à Alemanha: o Gothard Base Tunnel.
Na
postagem anterior descrevemos a estranha cerimônia transmitida ao vivo para
todo o continente (show teatral multimídia inspirado em uma antiga lenda da
cultura alpina suíça que envolve o demônio) e as reações entre críticos e
espectadores nas redes sociais -
“satanismo”, “ritual illuminati” foram as interpretações
conspiracionistas mais lembradas - clique aqui.
Tentando
escapar deste conspiracionismo simplista o Cinegnose propôs duas interpretações:
evento sincromístico e sintoma de uma espécie de ecumenismo pós-moderno que vem
sendo construído midiaticamente desde o início da globalização
político-econômica nos anos 1990.
Nosso
leitor baseou sua interpretação nas teses de um velho conhecido deste blog: o
historiador e crítico social norte-americano Christopher Lasch. Principalmente
as teses sobre a cultura do narcisismo, o mínimo eu e o “minimalismo”, sintomas
culturais de um mal estar bem diferente da época de Freud. Se na era vitoriana
tínhamos a neurose, hoje com o consumismo do capitalismo tardio temos o
narcisismo e o chamado “mínimo eu”.
Wilton
Cardoso faz uma interessante conexão entre as teses de Lasch, consumismo
e o “ecumenismo pós-moderno”. Leia abaixo:
*******
Creio que a peça
expressa um dos aspectos do consumismo do indivíduo contemporâneo. Consumismo
que, por sua vez é parte da personalidade narcisista deste indivíduo.
Em Cultura do Narcisismo, Christopher Lasch (Editora Imago, 1983) mostra que a "patologia" dominante do homem contemporâneo não é mais
a neurose, como na época de Freud, mas sim o narcisismo. A neurose resulta da
repressão da libido nas sociedades puritanas. O narcisismo, por outro lado, se
exprime com desejo por aplauso (fama) e culto ao prazer como alívio imediato às
frustrações da sociedade capitalista.
Um dos prazeres mais
cultuados pelo narcisista é o consumo, que proporciona a ilusão de poder e
status aos que podem ter/comprar. Não é preciso dizer que o narcisista-consumista
é o indivíduo ideal na sociedade da mercadoria, afinal, sua compulsão pelo
consumo faz o capital cumprir sua única função: se mover e multiplicar. O
narcisista vive para o capital, embora pense que se sirva dele para engrandecer
seu ego.
Christopher Lasch e as edições brasileiras de "Cultura do Narcisismo" e "O Mínimo Eu" |
Um aspecto pouco
observado da cultura consumismo é o consumo simbólico (o ecumenismo
pós-moderno), que avança avidamente sobre todas as tradições dos povos
anteriores ao capitalismo. O consumo simbólico retira mitos, lendas, costumes,
modas, comidas, crenças e valores de seus significados originais, fundamentais
para a reprodução social de suas culturas, e os transforma em mercadorias
etéreas, cuja função, como qualquer mercadoria, é movimentar e expandir o
capital.
Realizamos
diariamente um verdadeiro turismo espiritual por tradições mortas-revividas
(será por isto que o homem contemporâneo tem a sensação de ser um morto-vivo,
zumbi?). Um exemplo disso são a enormidade de filmes hollywoodianos sobre
mitos, lendas, (super) heróis e magia.
Mas, no final das
contas, o consumo simbólico vem de encontro a necessidades reais do homem
contemporâneo, pois a psique necessita de conferir sentido simbólico à vida. E
o capitalismo é incapaz de fornecer este sentido, de produzir, a partir de seus
próprio solo, conteúdos que deem sentido à vida humana. O capital é uma
abstração, real, mas vazia, cujo único sentido é se transformar em mais capital
e cujas leis ignoram totalmente as necessidades materiais e simbólicas da vida
humana.
Então, resta apelar
às criações simbólicas de outras culturas, cujos sentidos são deturpados, ao
serem retiradas de seu contexto inicial e convertidas em mercadorias. Estas
versões distorcidas dos mitos apenas aliviam momentaneamente as frustrações do
indivíduo narcisista, pois são mercadorias e, como tais, não servem à vida
humana, mas apenas à reprodução do capital. O efeito, para além do alívio
imediato, é aumentar as frustrações e o sem sentido da vida na sociedade
capitalista.
O fato de todos
estes mitos convertidos em mercadorias parecerem extremamente infantis e
imaturos (pensemos no fenômeno cosplay,
no Harry Potter, Senhor dos Anéis, parques temáticos, múmias, vampiros etc.) está
ligada à patologia do narcisismo, que fixa o homem na primeira infância, cuja
frágil psique está presa ao desejo de satisfação imediata dos prazeres e à
necessidade da aprovação incondicional (do aplauso) dos pais.
O narcisista, o
homem do capitalismo tardio, é o indivíduo inseguro e fragmentado que quer
compensar sua fragilidade com prazer e aplauso, a todo custo.
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