domingo, outubro 02, 2016

A banalidade do Mal do ocultismo nazi no filme "O Cremador"


Um operador de um crematório na antiga Tchecoslováquia, às vésperas da invasão nazista, é um respeitado e aparentemente equilibrado chefe de família que recita nos jantares teses do Livro Tibetano dos Mortos, é obcecado em budismo e reencarnação. E também acredita na missão messiânica da sua profissão: acelerar o trabalho de Deus de fazer o homem retornar ao pó. Essa mistura de cristianismo e budismo na sua cabeça vai encontrar o esoterismo nazi que começa a se espalhar pelo país – a pureza da raça ariana cujas origens milenares estariam no Tibete e a sabedoria guardada pelos lamas. O filme “O Cremador” (Spalovac Mrtvol, 1969) do diretor tcheco Juraj Herz é um mergulho no psiquismo da chamada “banalizadade do Mal”, motor psicológico do nazi-fascismo: como um homem aparentemente equilibrado e sem precedentes violentos mistura cristianismo, budismo e ocultismo nazi para se auto-investir com um propósito sinistro: eliminar a dor e a impureza desse mundo através das fornalhas do seu crematório.

Antes da II Guerra Mundial, ocultistas alemães acreditavam que a Terra era oca, e dentro dela habitava uma super raça com poderes telecinéticos, o “vril”. Sociedades ocultistas como Thule e a Vril na Alemanha contataria esses seres para que os nazistas utilizassem esses super poderes. Antes da guerra iniciar, a SS promoveu expedições oficiais entre 1931 e 1936 para visitar os lamas no Tibete em busca de poderes ocultos e uma suposta origem da raça ariana na Ásia. Em Berlim, os nazis permitiam o ensino do budismo por mestres tibetanos. E a suástica, símbolo indiano e tibetano da boa sorte imutável, tornou-se o símbolo do Partido Nazista.

Na Europa a febre de interesse por ocultismo começou na segunda metade do século XIX, prolongando-se no século XX adentro. O modismo dominava salões e círculos intelectuais – e na Alemanha o Ocultismo encontrou um terreno fértil para se desenvolver em seus aspectos mais sombrios. Pessoas aparentemente sérias e equilibradas passaram a acreditar que poderiam criar uma nova ordem global a partir de ideias e práticas ocultistas.


O filme eslovaco O Cremador é um verdadeiro estudo do caráter psicológico oculto por trás dos aspectos mais conhecidos da ascensão do nazi-fascismo. Mas com uma forte carga de alegoria.

O diretor Juraj Herz ficou conhecido pelo seu interesse nos aspectos góticos, grotescos, surreais e decadentes por meio de uma estilização gótico-barroca. O seu protagonista, com um rosto redondo que sugere um Adolph Hitler por meio de referências ao ator Peter Lorre, domina a tela: é o operador de um crematório na Tchecoslováquia no final dos anos 1930 às vésperas da invasão nazista ao país.

A narrativa mostra como um típico chefe de família de classe média, aparentemente equilibrado e respeitado, aos poucos vai adaptando suas convicções sincréticas cristãs e budistas à ideologia nazista da pureza racial que progressivamente invade o país.

“Ao pó retornarás...”


Obcecado por budismo e a crença na reencarnação, Kopfrkingl (Rudolf Hrusinsky) também crê no papel sagrado e cristão da sua profissão: “O Senhor disse: ‘Lembre-se, tu és pó e ao pó retornarás’. Um crematório, queridos amigos, é claramente um instrumento que agrada a Deus, porque O ajuda a acelerar a transformação das pessoas em pó”, diz o protagonista em uma linha de diálogo.

Certamente, o leitor já deverá estar imaginando como essa convicção cristã  facilmente vai se amalgamar com o ocultismo tibetano e a ideologia nazi da pureza da raça.


O Cremador vai aos poucos mostrando o mecanismo psicológico da conversão de Kopfrkingl, como ele absorve toda ideia que atravessa a sua mente: a eficiência da cremação, budismo, reencarnação, a noção nazista da pureza do sangue, ocultismo nazi, tudo se fundindo na fornalha da sua mente para reforçar um íntimo complexo messiânico.

O Filme


Kopfrkingl é um respeitado chefe de família de classe média em Praga, e o operador do crematório à espera da sua promoção a diretor do complexo – o chamado “templo da morte”.

Seu livro inseparável é Tibete: Magia e Mistério da escritora espiritualista Alexandra David-Néel (budista e exploradora na década de 1920, com grandes estadias no Tibete adquirindo conhecimentos esotéricos dos lamas) que cita e recita nos jantares em família, com sua esposa e um casal de filhos adolescentes.

Kopfrkingl crê numa função transcendental do seu trabalho: libertar as almas do corpo para que alcancem o éter e voltem a se reencarnar. A morte é sempre bem-vinda e presta um serviço inestimável para o mundo.

“O sofrimento é um grande mal e temos que fazer de tudo para aliviá-lo”, diz insinuando a eutanásia. Também se apresenta como abstêmio, não fuma e nem bebe, e aparenta um caráter convicto. Porém, apenas esconde dois vícios profundos: o desejo por prostitutas e bordeis; e a ambição em subir socialmente.


A narrativa basicamente consiste em grande monólogos interiores do protagonista, acompanhado de uma trilha composta por um coro fantasmagórico e planos de câmera inusitados como deformações em grande angular e cenas a partir do ponto de vista de objetos em movimento.

Kopfrkingl parece seguro de si, mas aos poucos é influenciado pelas ideias sobre a pureza do sangue divulgadas pelo partido nazista que aos poucos se infiltra na vida política, enquanto as tropas alemãs aproximam-se das fronteiras do país.

Budismo funde-se com nazismo


O homem que tem como profissão transformar pessoas em cinzas e um apego esotérico bizarro pela arte da cremação, começa a justificar a invasão pelos alemães. Afinal, para ele são tão civilizados quanto os checos – a Alemanha também tem leis de cremação desde os tempos antigos.

Obcecado por budismo e reencarnação, integrando com crenças cristãs que fala em seus sermões funerários, Kopfrkingl começa a conciliar budismo com nazismo. Ele conclui maravilhado que os campos de extermínio, com seus crematórios, irão limpar o mundo do sofrimento.

Claro que essa conclusão é também motivada pelos seus dois vícios: tornando-se colaborador dos nazistas, terá acesso às prostitutas exclusivas para os membros do partido, além de tornar-se o diretor do “templo da morte”.

O Cremador começa a ficar ainda mais sinistro quando o protagonista descobre que sua esposa tem ascendência judaica e, portanto, seus filhos tem uma parte do sangue judeu da mãe. Sem filhos na Juventude Nazi e com uma esposa judia, jamais Kopfrkingl poderá assumir a missão messiânica de transformar os sofrimentos do mundo em cinzas.


Kopdfrkingl conclui de forma sombria que também terá que transformar em cinzas a “dor” de seus familiares... Ele não percebe as contradições que abraça: ama genuinamente seus familiares mas não mostra nenhum remorso em se prostituir, delatar os “doentes” para os nazis e arquitetar a morte da mulher e filhos.

Banalização do Mal


O filme é baseado no livro Spalovac Mrtvol (literalmente, “O Incinerador de Corpos”) do escritor checo Ladislav Fuks, uma história de horror psicológico mostrando como um homem torna-se um maníaco sob a influência da propaganda nazista e a filosofia oriental.

 O apego do protagonista ao livro Tibete: Magia e Mistério e a combinação da lógica do extermínio com o budismo é o mecanismo psíquico daquilo que certa vez a cientista política Hannah Arendt chamou de “banalização do Mal”:  pessoas medíocres da classe média, burocratas respeitáveis, sem histórico de violência e aparentemente equilibrados, dadas certas condições institucionais, podem repentinamente cometer as maiores atrocidades.


O misticismo da propaganda nazi encontrou terreno fértil no modismo do esoterismo nas classes médias naquele momento: de repente, Shamabala, Tibete, reencarnação, budismo e pureza racial se misturaram. Sem capacidade de reflexão ou juízo crítico não perceberam as contradições que abraçavam e os efeitos trágicos de tudo isso.

O auge do delírio de Kopdfrkingl no filme é quando ele cria uma espécie de alter ego em trajes de monge tibetano que lembra sempre para ele sua missão importante nesse planeta – reduzir às cinzas todas dores e impurezas do mundo.

O estranho fantasma é uma referencia direta à prática budista da criação de um “tulpa” – um fantasma gerado pela própria mente. Um jogo que pode tornar-se perigoso, como descreve Alexandra David-Néel no livro Tibete: Magia e Mistério, o livro de cabeceira de Kopdfrkingl.

Em 1933 morria no Tibete o 13o lama. Em seu delírio o protagonista acredita ser ele próprio o substituto, incumbido de uma importante missão pelo Partido Nazista, remunerado com prostitutas e ascensão social. Ascensão que o levará à própria Shambala no topo do mundo.

Em épocas como as atuais onde a onda do conservadorismo emerge com estranhas combinações entre meritocracia, filosofias de autoajuda combinando taoísmo com neurociências, ódio político, racismo e intolerância, o filme O Cremador de 1968, sobre os anos 1930, mostra-se perturbadoramente atual.

Os mecanismo psíquicos da banalização do Mal continuam presentes e atuantes.


Ficha Técnica


Título: O Cremador (Spalovac Mrtvol)
Diretor: Juraj Herz
Roteiro:  Ladislav Fuks baseado em seu livro homônimo
Elenco:  Rudolf Hrusinsky, Vlasta Chramostová, Jana Stehnová, Milos Vognic
Produção: Filmové Studio Barrandov, Sebor
Distribuição: Dark Sky Film
Ano: 1969
País: Tchecoslováquia

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