terça-feira, outubro 11, 2016

Cineteratologia: a ciência dos monstros no Cinema


Assim como a Teratologia, ramo da ciência médica conhecida também como “ciência dos monstros” (o estudo de como o meio ambiente pode produzir deformações pré-natal), seria necessário um estudo sobre como as transformações dos ambientes sócio-culturais alteram as expressões da monstruosidade e a sensibilidade ao terror e o horror no cinema e audiovisual – a Cineteratologia. A partir de “A Noite dos Mortos Vivos” (1968), de George Romero, acompanhamos a quebra o paradigma da monstruosidade clássica e a criação de uma nova galeria de monstros com mudanças estéticas (não são mais “disformes”, mas agora “informes” – os chamados “monstros moles”) e éticas – o comportamento violento é inimputável de qualquer julgamento moral. São apenas manifestações virais ou predadores que lutam para sobreviver. Por que essa alteração na natureza da monstruosidade moderna?

Desde o clássico de filmes de zumbis A Noite dos Mortos Vivos (1968) de George Romero acompanhamos a criação de uma impressionante nova galeria de monstros que quebra o paradigma da monstruosidade clássica: monstros proteiformes como The Thing (1982) de Carpenter; o cruel Alien (1979) com uma morfologia híbrida envolta em gosma que serviu de modelos para todos os futuros aliens e seres híbridos resultantes de manipulações genéticas; Um Lobisomem Americano em Londres (1981) que inicia a contemporânea visão do Lobisomem centrada na transformação e instabilidade morfológica dos efeitos especiais; zumbis de todas as espécie e variações como feridas e pústulas ambulantes que deixam para trás pedaços dos próprios corpos etc.

Essa alteração do gosto e da estética da monstruosidade certamente é a expressão de uma alteração na sensibilidade cultural contemporânea.

O grande princípio fundador da teratologia, ou ciência dos monstros, é buscar estudar a irregularidade, ocupar-se da desmesura.

A monstruosidade clássica


Desde a Antiguidade até os nossos dias, os monstros são sempre vistos como aquelas criaturas excedentes ou excessivas em grandeza ou pequenez: gigantes, centauros, ciclopes; anões, gnomos, pigmeus; com muitas partes em falta como os gastrópodes, isquiópodes etc. A teratologia clássica baseava-se em categorias como o disforme, o mau, o feio, o disfórico.

Os monstros clássicos eram vistos como criaturas que fugiam das homologações de categorias de valores éticos, morfológicos ou estéticos. Em outras palavras, tinham uma forma que tendiam ou para o excesso (gigantismo e deformação) ou para a falta (a pequenês representado por anões e homúnculos). Além do hibridismo das próprias formas como a somatória de propriedades por norma inconciliáveis entre si, mas apesar de tudo ainda reconhecíveis: asas de morcego, cabeça de leão, corpo de lobo, cauda de réptil, garras de ave de rapina.


Além dessa deformidade e hibridismo, os monstros clássicos eram dotados de uma espécie de “excedência espiritual”: eram seres maus e negativos, moralmente abomináveis e comandados por desígnios malignos dos propósitos infernais. Em síntese, os monstros clássicos poderiam ser chamados de “monstros duros”, seja com uma forma híbrida ou humanoide deformada – haviam ainda parâmetros para se medir a “monstruosidade” da criatura: a morfologia e a moral. O monstro é o disforme, o mau e o feio.

O divisor de águas... ou de sangue


No cinema, até o divisor de águas (ou de sangue) de George Homero em A Noite dos Mortos Vivos temos a representação clássica do monstro como nos filmes de terror inglês da Hammer com clássicos sobre Drácula, estripadores e lobisomens ou ainda narrativas inspiradas em contos de Edgar Alan Poe.

Podemos definir a monstruosidade clássica a partir de um quadro de categorias de valores como: o disforme, o mau e o feio. Todos os protótipos de monstros vão ser construídos como desvios desse quadro de valores. Daí a origem etimológica da palavra “monstro” como aquilo que se mostra para além de uma norma (“monstrum”). São monstros antropomórficos ou quimeras mas, de qualquer maneira, com uma morfologia que pode ser julgada a partir de valores como a conformidade e beleza.

"A Noite dos Mortos Vivos", 1968

Monstruosidade atual: informes e “moles”


Ao contrário, os monstros contemporâneos, a partir dos zumbis de Romero estão longe de adaptarem-se às categorias clássicas de valores, mas suspendem-nas, anulam-nas e neutralizam-nas. São os monstros caracterizados pelas instabilidades e metamorfoses. Poderíamos chamá-los de “monstros moles”.

Para começar os monstros pós-modernos não são disformes, mas informes: eles estão se despedaçando ou se deformando e precisam devorar o outro para se reconstituir; A Coisa (1982) de John Carpenter que assumia a forma humana de cada uma das vítimas na base polar na Antártida; ou no filme espanhol REC (2007) no qual o “zumbismo” tem origem viral, isto é, o vírus como modelo de informidade por excelência: ele assume a forma que quiser de acordo com o seu hospedeiro. Há uma suspensão morfológica.

Do ponto de visto ético os monstros atuais não são nem bons nem maus: tratam-se de predadores que, do ponto de vista da performance evolutiva, são fascinantes máquinas de sobrevivência. Em Alien, por exemplo, um dos membros da tripulação tenta salvar o espécime alienígena por ser um fascinante modelo de adaptação e evolução. Há uma neutralização ética: ele não é mais um desvio da moralidade, mas o aprimoramento racional da performance de um ser que na sua evolução transforma o ser humano em presa.

Tomemos, por exemplo, filmes sobre zumbis: não podemos considerá-los como entidades moralmente más. O comportamento raivoso e violento é inimputável de qualquer julgamento moral. São apenas manifestações de um vírus mutante, um problema de epidemiologia.

"Alien", 1979

E há uma anulação estética: por um lado existe uma expressão da monstruosidade através de elementos “feios” (tentáculos, viscosidades, ruídos desagradáveis, purulências etc.), mas ao mesmo tempo há o maravilhamento do espectador pela complexidade dos efeitos especiais. Se no terror clássico a feiura estava na sugestão dos planos e no jogo de claro e escuro da fotografia que remetia à iconografia imaginária das aberrações expostas nos antigos parques de variedades, agora o detalhamento dos efeitos especiais e CGIs cria uma espécie de fascínio metalinguístico: como isso pode ser feito?

Monstros Neobarrocos

Segundo o professor italiano de Semiótica da Arte na Universidade de Siena Omar Calabrese, vivemos em um momento cuja sensibilidade estética pode ser definida como “Neobarroca”: a busca e a valorização de formas que conduzem à perda da integridade, globalidade, da troca da sistematicidade ordenada pela instabilidade, polidimensionalidade e mutabilidade.

Calabrese localiza essa recorrências estética desde as teorias científicas (catástrofes, fractais, estruturas dissipativas, teoria do caos, complexidade e assim por diante) – veja CALABRESE, Omar, A Idade Neobarroca, São Paulo: Martins Fontes, 1990.

E por que este espírito de época direcionado para o gosto neobarroco? Podemos aqui arriscar uma hipótese: se a quebra de paradigma dos monstros clássicos está na década de 1960 e vemos a radicalização virótica do Mal justamente a partir do filme Bruxa de Blair com a narrativa caótica de planos sequência que simulam tempo real e jogam o espectador na instabilidade e fragmentos, podemos relacionar essas formas neobarrocas às instabilidades sócio-políticas e sócio-econômicas.

Monstros neobarrocos

Nos anos 1960 a explosão da contracultura, conflitos raciais, ameaça nuclear etc., e, nos anos 1990, a financeirização e globalização cujas instabilidades e liquidez impõem a valorização da mutabilidade, fragmentação, jogo e a neutralização da ética e moral. Assim como os monstros predadores e virais da pós-modernidade como, por exemplo, os zumbis raivosos de REC.

Zumbis: um arquétipo moderno


Além do sintoma dessa estética neo-barroca pós-moderna o zumbi tem o seu momento de verdade, isto é, seus mitos e lendas querem também nos dizer sobre a condição humana nesse mundo. Da crítica social à luta de classes e raças ele se tornam versões em carne putrefata de robôs rebeldes.

Filmes como o expressionista alemão O Gabinete do Dr. Caligari de 1920 (onde um médico hipnotiza o jovem Cesare para induzi-lo a assassinatos) até os replicantes de Blade Runner demonstra o nosso fascínio por robôs, autômatos ou marionetes que se rebelam e lutam pela liberdade.

Victoria Nelson em seu livro The Secret Life of Puppets demonstrou como na cultura popular do século XX temos um aumento do fascínio por autômatos e bonecos com o surgimento do conceito marionete mestre (humana ou divina) inserida dentro de uma cosmologia gnóstica das relações entre homem/autômato e homem/deus.


Esse fascínio por autômatos ou marionetes dentro desse gnóstico esquema simbolizaria a maneira pela qual podemos avaliar a própria experiência humana, ou seja, como nos vemos como prisioneiros dentro de um cosmos hostil. Além disso, as marionetes se metamorfosearam, na modernidade, em figuras como robôs, ciborgues, andróides e, mais recentemente, na hibridação do corpo humano.

Extrapolando essa tese de Victoria Nelson, podemos aplicá-la no estudo da recorrência cinemática dos mortos vivos. Ao contrário dos robôs, zumbis não têm lasers ou visão infravermelha para ajudá-los. Contam apenas com garra e dentes, assim como os seres humanos.

O fascínio pelos zumbis viria dessa estranha condição de “estrangeiros” que eles parecem inspirar, fazendo nos recordar da nossa própria condição humana: nem vivos e nem mortos, lembranças familiares nos fazem vagar por esse mundo, mas, ao mesmo tempo, a dor e a fome tornam esse mundo hostil, como se não fizéssemos parte dele. A revolta deles vai além da crítica social e política. Há uma revolta metafísica e gnóstica: nem a vida e nem a morte. O zumbi nos faz lembrar que a morte não é libertação: em um sentido gnóstico apenas nos faz retornar a esse mundo por meio da reencarnação, reproduzindo um ciclo vicioso infernal.

A mitologia gnóstica vê a reencarnação como uma perversa estratégia do Demiurgo para nos manter aprisionados nesse mundo, sempre condenados a recomeçar do zero em uma espécie de “eterno-retorno”.

Por isso, os zumbis parecem querer nos lembrar que jamais escaparemos do passado, de todas as histórias que nos causaram dor e que demonstram a nossa condição “estrangeira” em um cosmos hostil.

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