Depois do telejornalismo e do esporte, agora o tautismo (autismo+tautologia) chega às telenovelas da Globo. Em crise de audiência pelo desgaste do gênero e a concorrência das séries em streaming na Internet, a emissora apela para a autofagia tautista ao escalar os atores Luís Melo e Giovana Antonelli para o núcleo japonês de “Sol Nascente”, gerando protestos: atores brasileiros se passando por japoneses? "Yellowfaces" e preconceito?. A Globo manda às favas a verossimilhança, a própria essência de um roteiro ficcional, e prefere a sinergia entre o folhetim eletrônico e o mercado publicitário como reação desesperada à crise da telenovelas. Uma sinergia tautista que começa até a criar “coincidências significativas” e ricas de simbolismos como o ator Murilo Benício transformado em garoto-propaganda de uma empresa de investimentos. Sinal dos novos tempos: sai o Tufão (o desajeitado ícone da “Classe C” da Era Lula) e entra o investidor yuppie elegante.
No
filme Obrigado por Fumar (2005) temos
uma sequência na qual o protagonista Nick Naylor, relações públicas da
indústria de tabaco, vai à Hollywood tentando fazer um “product placement” de
cigarros em uma produção sci fi.
Pensando em co-produção de alguma marca de cigarros, o executivo do estúdio
sugere uma sequência na qual Brad Pitt e Catherine Zeta-Jones, após uma “foda
cósmica” em uma estação espacial, fumam fazendo anéis de fumaça “enquanto as
galáxias passam sobre um teto transparente”.
“Cigarros
no espaço?”, pergunta Nick espantado. “Não explodiriam numa nave cheia de
oxigênio?”, questiona. Ao que, rapidamente, o esperto executivo responde:
“Provavelmente! Mas isso se arruma com uma linha de diálogo... ‘Graças a Deus,
inventamos o aparato tal como qual’... ”.
Nesse
rápido diálogo está resumido o elemento fundamental em todo roteiro de uma obra
de ficção: a verossimilhança.
Uma
obra de ficção não tem necessariamente compromisso com o real ou o documental,
mas precisa fazer um contrato com o espectador: você sabe que tudo o que estou
contando é mentira, mas vamos fazer de conta que é verdade. Esse “fazer de
conta” é a verossimilhança, aquilo que certa fez Umberto Eco chamou de “verdade
parabólica”, a realidade filtrada pela verossimilhança.
Transformações da teledraturgia global
Com
a crise de audiência dos últimos anos e o esgotamento do gênero telenovela
(agora minimizado pelo “Bolsa Mídia” do desinterino Michel Temer – o aumento
dos repasses federais à grande mídia como reconhecimento pelo apoio ao “golpe
constitucional” do impeachment), foi visível uma dupla transformação,
aparentemente contraditória, na linguagem da teledramaturgia da TV Globo:
(a)
De um lado, o realismo das locações externas, como na novela Velho Chico, e a
compra de equipamentos como, por exemplo, um sensor super 35mm para que as
imagens fiquem mais suavizadas e a fotografia se iguale a de cinema – ecos da
concorrência das séries Netflix e HBO.
(b)
Mas, de outro, o retrocesso à linguagem melodramática e interpretações carregadas
dos atores tal como nos dramalhões mexicanos ou turcos.
Na
história da TV brasileira, o grande mérito das telenovelas globais foi a
substituição dos dramalhões latino-americanos pela encenação naturalista,
seguindo a moderna tendência da ficção literária. Porém, em meio à crise de
audiência do gênero, parece querer retornar a antigos elementos do folhetim por
achar que o público está recusando o realismo.
Tautismo ronda os carros-chefes da Globo
Sabemos
que os principais carros-chefes da TV Globo são telenovela e esporte. Como
abordado em postagens anteriores, tanto a cobertura esportiva como o
telejornalismo tornam-se progressivamente tautistas (autismo + tautologia) –
mistura de elementos ficcionais e não ficcionais com o constante
auto-referenciamento, criando um “fechamento operacional” ao mundo exterior. O
lado de fora da Globo, a realidade, passa a ser traduzida a partir de uma
descrição que a Globo faz de si mesma - mais sobre o conceito de tautismo clique aqui.
Depois
do esporte e telejornalismo (como percebido na cobertura das olimpíadas – sobre
isso clique aqui), agora o tautismo chegou à
teledramaturgia como no atual caso da telenovela do horário das 18 horas Sol Nascente.
“Yellowface” ou tautismo?
Logo
de cara a produção criou estranhamento entre críticos e telespectadores:
dividida em dois núcleos, italianos e japoneses, a emissora escalou Luís Melo
para ser o patriarca da família japonesa Kasuo Tanaka e colocou Giovana
Antonelli para viver Alice, a filha adotiva dele.
Atores
orientais e críticos questionaram o porquê da escalação de orientais para
performar protagonistas de uma família supostamente oriental. Críticas chegam a
acusar a Globo de preconceito e “yellowface” – referência ao “blackface” de
atores brancos que se passavam por negros nos primórdios do cinema pelo
preconceito hollywoodiano em contratar atores negros.
Cristina
Sano, atriz e representante do grupo Oriente-se (grupo de atores profissionais
brasileiros com ascendência oriental) afirmou que “não nos sentimos
representados”. E completou: “Na verdade os japoneses ficaram lá, perdidos na
multidão”.
É
claro que, entre as apertadinhas de olhos do ator Luís Melo para tentar
minimizar a inadequação ao papel, a narrativa tenta criar alguma
verossimilhança em linhas de diálogo, como mostrado no exemplo acima do filme Obrigado Por Fumar – na estória de Sol
Nascente o personagem de Luís Melo é apresentado como neto de um americano que se casou com
uma japonesa.
Porém,
estranhamente, no flashback no qual
mostra a juventude do personagem Tanaka, aparece representado com um ator com
traços bem orientais... Tanaka deixou de ser “japonês” ao longo dos anos?
O
próprio ator Luís Melo admitiu que “me causou certa estranheza”. E Giovana
Antonelli foi logo tentando minimizar: “Não, gente, minha personagem é
adotada...”.
O
autor do folhetim, Walther Negrão, também tentou sair pela tangente,
justificando que “não encontrou atores orientais para os papéis protagonistas”.
Telenovelas em processo “catabólico”
Assim como no telejornalismo e esportes, a
crise de audiência no carro-chefe das telenovelas despertou também o desespero
tautista como uma espécie de mecanismo de defesa televisivo global que lembra o
processo catabólico do indivíduo sob condições extremas de fome: nessas
condições, o corpo imediatamente começa a consumir seu próprio tecido muscular
na luta pela sobrevivência.
No caso de Sol
Nascente, é como se o próprio gênero telefolhetim (que fez a fama e fortuna
da emissora, convertendo-se em produto de exportação), em crise, começasse a
entrar em processo autofágico para encontrar dentro de si mesmo alguma força
para resistir.
A consequência,
é fechar-se em relação ao mundo exterior ou para a “realidade”. O que numa obra
de ficção, significa mandar às favas a verossimilhança. A tentativa canhestra
de Luís Melo tentar minimizar o inverossímil ao dizer que “as pessoas não
deveriam se apegar muito se é oriental ou se não é” faz ainda mais a telenovela
se aproximar de alguma espécie de “realismo fantástico” capenga.
É claro que o
tautismo autofágico de escalar o cast “ocidental”, sem o physique du rôle para o
papel “oriental”, é uma forma de criar sinergia com o mercado publicitário:
suas estrelas atraem contratos publicitários para figurar comerciais que irão
aparecer nos próprios intervalos do horário nobre.
Decorre que tal
conexão ficção/não ficção, telenovela/publicidade cria o que a teoria dos
sistemas chama de “fechamento operacional” onde a realidade, a História, a
sociedade é traduzida pela descrição que o sistema faz de si mesmo.
Tal fenômeno já
era conhecido com o sotaque nordestino genérico inventado pela Globo a partir
do sotaque baiano e generalizado para todas as telenovelas ambientadas em
qualquer estado da região nordeste.
Murilo Benício: evento sincromístico?
Mas também esse
fechamento operacional telenovelas/publicidade cria estranhos fenômenos
sincromísticos, como o rico simbolismo da presença do ator Murilo Benício em um
comercial da empresa XP Investimentos.
Uma sincrônica
escolha de ator para estrelar o comercial de uma empresa de investimentos que
afirma “a economia mudou”. Murilo Benício se notabilizou pelo personagem Tufão
na telenovela Avenida Brasil (2012), folhetim que surfava no crescimento da
chamada Classe C, subproduto do neodesenvolvimentismo da Era Lula.
Segundo a
crítica, Tufão era “uma Classe C que quer se ver”, retrato fiel do então novos
hábitos de consumo dos brasileiros.
“Agora vocês
conhecerão um outro Murilo Benício”, inicia o garoto-propaganda global em um
dos comerciais da XP Investimentos. É o seu lado investidor. Sai a Classe C com
o impeachment e o fim da Era Lula e entra a elite de investidores.
Agora, o mercado financeiro é quem dará as
cartas, principalmente com a PEC 241 tirando dinheiro de Saúde e Educação para
o pagamento dos juros e serviços da dívida pública. Cujos credores são aqueles
que anunciam nos comerciais do horário nobre da TV.
Além de
altamente simbólica e sincrônica, a escolha de Murilo Benício reflete essa
sinergia tautista entre telenovelas e o mundo da Publicidade. Na qual a TV
Globo se apega, agora autofagicamente, para combater a decadência de um gênero
televisivo que rendeu tantas glórias no passado.
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