sexta-feira, outubro 14, 2016

Curta da Semana: "A Bicycle Trip" e "Velodrool" - Bikes e a viagem física e espiritual


A bicicleta, tanto como prática desportiva ou meio de transporte, propicia um duplo sentido de viagem: tanto espiritual quanto física. É sintomático que o Dia Mundial da Bicicleta (19 de abril) nasceu após uma “viagem”: a celebração do experimento científico do químico Albert Hofmann, o primeiro a sintetizar o LSD e ingerir propositalmente o ácido antes de retornar para sua casa de bike. Dois curtas celebram essa conexão entre o físico e o espiritual no ciclismo: o curta de animação italiano “A Bicycle Trip” (2007) e o curta também de animação estoniano “Velodrool” (2016), ambos trabalhos de conclusão de curso em cinema. O primeiro tenta recriar a experiência de Hofmann. E “Velodrool”, o conflito entre o lúdico e espiritual contra os interesses por trás da dopagem de atletas. Tudo em uma narrativa delirante e surreal.

Como os leitores mais antigos do Cinegnose devem saber, na juventude esse humilde blogueiro foi ciclista de competição e, ainda hoje, continua pedalando na rua e estradas deixando o máximo de tempo possível o carro na garagem.

Por isso, sempre fui interessado nas representações que o cinema e a cultura pop fazem sobre esse meio de transporte e prática esportiva – sobre essas representações clique aqui (“A experiência da bicicleta na música e no cinema”) e aqui (“A bicicleta como extensão do homem em dez cenas do cinema”).

Nessas postagens anteriores fizemos uma relação entre a experiência do pedalar e o estado alterado de consciência da suspensão que propiciaria estados gnósticos de iluminação espiritual: a bicicleta é mais do que um mero instrumento de lazer, é algo mais próximo da declaração política. Velocidade, equilíbrio, uma certa liberdade de espírito, manter a forma, técnica e perfeição tecnológica, na aerodinâmica.

A bicicleta é em si um instrumento musical: o som ritmado da corrente, engrenagens, a respiração e batimento cardíaco, tendo como fundo o som contínuo “shhhhhh” do contato do pneu no asfalto. Tal como um mantra, confere uma “liberdade ao espírito” ao esvaziar a mente, seja pela repetição de sons e movimento, seja pelo esgotamento físico.


Propicia um estado alterado de consciência que o Gnosticismo considera como “estado de suspensão”. Montar na bicicleta e se deslocar velozmente como se estivesse suspenso e, ao mesmo tempo, o som ritmado do corpo e do mecanismo anulando a atividade racional/mental.

Bandas como a inglesa Pink Floyd (a música Bike, por exemplo) e a alemã eletrônica Kraftwerk (o disco Tour de France) exploraram esses significados ao mesmo tempo físicos e espirituais.

Por isso, não é surpreendente as conexões que a cultura pop faz entre bikes e “viagens” tanto geográficas como alucinógenas.

Os curtas A Bicycle Trip (dos italianos Lorenzo Veracini, Nandi Nambiar e Marco Avoletta) e Velodrool, do animador estoniano Sander Joon, são exemplos desse imaginário ciclístico que perpassa o imaginário moderno.

Bike e LSD


A Bicycle Trip foi um trabalho de conclusão de curso no Centro Sperimentale di Cinematografia em 2007, inspirado no experimento científico do químico Alberto Hofmann em 1943 – cientista suíço notabilizado por ser o primeiro  sintetizar e ingerir para compreender os efeitos alucinógenos e  psicodélicos da dietilamida do acido lisérgico, mais conhecido como LSD.

Descoberto em 1938 enquanto pesquisava derivados do ácido lisérgico, Hofmann sintetizou o LSD-25. Deixado de lado, o pesquisador retomou a descoberta cinco anos mais tarde, depois de um súbito “pressentimento”. Realizou um auto-experimento decisivo para determinar os verdadeiros efeitos do LSD: ingeriu 250 microgramas do produto (hoje, uma dose limite é de 20 microgramas).


Em pouco tempo, começou a experimentar alterações súbitas na percepção. Com medo de ter se envenenado, pegou sua bicicleta para retornar para casa – naquele momento o uso de veículos era restrito devido à Segunda Guerra Mundial.

No trajeto, sua condição se deteriorou (ou “melhorou”, dependendo do ponto de vista). Nas palavras de Hofmann, “... uma inquietude notável combinada com prazerosa sensação de leveza”. No começo, Hofmann ficou encantado com formas coloridas e caleidoscópicas em movimento, círculos e espirais. Alternadamente começou a lutar contra sentimentos de ansiedade e paranoia – sentia-se perseguido por seres fantásticos como, por exemplo, bruxas malévolas.

Chegando em casa, Hofmann recebeu a visita de um médico que não percebeu nenhuma anomalia física, a não ser os olhos dilatados.


Esse dia era 19 de abril, que passou a ser conhecido como o Dia Mundial da Bicicleta. É sintomático que celebre-se a bicicleta em um dia marcado por uma “viagem”: em duplo sentido, a bike oferece a viagem tanto física como experimental, e sem precisar do LSD.

Bike e doping

Sintomaticamente, o curta estoniano Velodrool retoma o tema das alucinações ao tratar, dessa vez, de uma competição ciclística em um velódromo. Mas, agora, acrescente um fator: a droga como doping, e os interesses por trás do incremento artificial da performance do atleta.

Também esse curta foi um trabalho de conclusão, dessa vez na Academia de Artes Estoniana em 2016. É uma bizarra e surreal jornada de ciclistas que pedalam atrás de uma carteira de cigarros em um velódromo.


Os ciclistas lutam entre si, contra a ansiedade por nicotina, a interferência da audiência na corrida, um revólver da linha de partida mortal e mafiosos em trajes escuros em posição de destaque na arquibancada – por meio de um chapéu, dopam um dos ciclistas.

O curta faz uma oposição entre o prazer lúdico e momentos surreais da disputa (de repente as rodas das bikes transformam-se em pernas ou a pista em rio no qual os ciclistas pedalam submersos) com o doping propositalmente inserido na competição por empresários mafiosos em busca de manipulação de resultados.

O que faz recordar a clássica animação franco-belga-canadense As Bicicletas de Belleville (Les Triplettes de Belleville, 2003), no qual um ciclista é sequestrado em plena Volta da França para ser explorado por mafiosos em competições de bicicletas fixas em Belleville, megalópole localizada além do oceano.


Se o curta italiano é uma celebração da possibilidades físicas e espirituais da bike, a produção estoniana mostra a exploração do prazer ciclístico pela competição. Além de retratar a própria vida pessoal do animador Sander Joon: ex-fumante inveterado, é atualmente um adepto do ciclismo.



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