A
bicicleta, tanto como prática desportiva ou meio de transporte, propicia um
duplo sentido de viagem: tanto espiritual quanto física. É sintomático que o
Dia Mundial da Bicicleta (19 de abril) nasceu após uma “viagem”: a celebração
do experimento científico do químico Albert Hofmann, o primeiro a sintetizar o
LSD e ingerir propositalmente o ácido antes de retornar para sua casa de bike.
Dois curtas celebram essa conexão entre o físico e o espiritual no ciclismo: o
curta de animação italiano “A Bicycle Trip” (2007) e o curta também de animação estoniano “Velodrool” (2016),
ambos trabalhos de conclusão de curso em cinema. O primeiro tenta recriar a
experiência de Hofmann. E “Velodrool”, o conflito entre o lúdico e espiritual
contra os interesses por trás da dopagem de atletas. Tudo em uma narrativa
delirante e surreal.
Como
os leitores mais antigos do Cinegnose
devem saber, na juventude esse humilde blogueiro foi ciclista de competição e,
ainda hoje, continua pedalando na rua e estradas deixando o máximo de tempo
possível o carro na garagem.
Por
isso, sempre fui interessado nas representações que o cinema e a cultura pop fazem sobre esse
meio de transporte e prática esportiva – sobre essas representações clique aqui (“A experiência da bicicleta na
música e no cinema”) e aqui (“A bicicleta como extensão do
homem em dez cenas do cinema”).
Nessas
postagens anteriores fizemos uma relação entre a experiência do pedalar e o estado alterado
de consciência da suspensão que propiciaria estados gnósticos de iluminação
espiritual: a bicicleta é mais do que um mero instrumento de lazer, é algo mais
próximo da declaração política. Velocidade, equilíbrio, uma certa liberdade de
espírito, manter a forma, técnica e perfeição tecnológica, na aerodinâmica.
A bicicleta é em si um
instrumento musical: o som ritmado da corrente, engrenagens, a respiração e
batimento cardíaco, tendo como fundo o som contínuo “shhhhhh” do contato do
pneu no asfalto. Tal como um mantra, confere uma “liberdade ao espírito” ao
esvaziar a mente, seja pela repetição de sons e movimento, seja pelo
esgotamento físico.
Propicia um estado alterado
de consciência que o Gnosticismo considera como “estado de suspensão”. Montar
na bicicleta e se deslocar velozmente como se estivesse suspenso e, ao mesmo
tempo, o som ritmado do corpo e do mecanismo anulando a atividade
racional/mental.
Bandas
como a inglesa Pink Floyd (a música Bike, por exemplo) e a alemã eletrônica Kraftwerk (o disco Tour de France) exploraram esses significados ao mesmo tempo físicos
e espirituais.
Por
isso, não é surpreendente as conexões que a cultura pop faz entre bikes e
“viagens” tanto geográficas como alucinógenas.
Os
curtas A Bicycle Trip (dos italianos
Lorenzo Veracini, Nandi Nambiar e Marco Avoletta) e Velodrool, do animador estoniano Sander Joon, são exemplos desse
imaginário ciclístico que perpassa o imaginário moderno.
Bike e LSD
A Bicycle Trip foi um trabalho de conclusão de
curso no Centro Sperimentale di Cinematografia em 2007, inspirado no
experimento científico do químico Alberto Hofmann em 1943 – cientista suíço
notabilizado por ser o primeiro
sintetizar e ingerir para compreender os efeitos alucinógenos e psicodélicos da dietilamida do acido lisérgico,
mais conhecido como LSD.
Descoberto
em 1938 enquanto pesquisava derivados do ácido lisérgico, Hofmann sintetizou o
LSD-25. Deixado de lado, o pesquisador retomou a descoberta
cinco anos mais tarde, depois de um súbito “pressentimento”. Realizou um auto-experimento
decisivo para determinar os verdadeiros efeitos do LSD: ingeriu 250 microgramas
do produto (hoje, uma dose limite é de 20 microgramas).
Em
pouco tempo, começou a experimentar alterações súbitas na percepção. Com medo
de ter se envenenado, pegou sua bicicleta para retornar para casa – naquele
momento o uso de veículos era restrito devido à Segunda Guerra Mundial.
No
trajeto, sua condição se deteriorou (ou “melhorou”, dependendo do ponto de
vista). Nas palavras de Hofmann, “... uma inquietude notável combinada com
prazerosa sensação de leveza”. No começo, Hofmann ficou encantado com formas
coloridas e caleidoscópicas em movimento, círculos e espirais. Alternadamente
começou a lutar contra sentimentos de ansiedade e paranoia – sentia-se
perseguido por seres fantásticos como, por exemplo, bruxas malévolas.
Chegando
em casa, Hofmann recebeu a visita de um médico que não percebeu nenhuma
anomalia física, a não ser os olhos dilatados.
Esse
dia era 19 de abril, que passou a ser conhecido como o Dia Mundial da
Bicicleta. É sintomático que celebre-se a bicicleta em um dia marcado por uma
“viagem”: em duplo sentido, a bike oferece a viagem tanto física como
experimental, e sem precisar do LSD.
Bike
e doping
Sintomaticamente,
o curta estoniano Velodrool retoma o
tema das alucinações ao tratar, dessa vez, de uma competição ciclística em um velódromo.
Mas, agora, acrescente um fator: a droga como doping, e os interesses por trás
do incremento artificial da performance do atleta.
Também
esse curta foi um trabalho de conclusão, dessa vez na Academia de Artes
Estoniana em 2016. É uma bizarra e surreal jornada de ciclistas que pedalam
atrás de uma carteira de cigarros em um velódromo.
Os
ciclistas lutam entre si, contra a ansiedade por nicotina, a interferência da
audiência na corrida, um revólver da linha de partida mortal e mafiosos em
trajes escuros em posição de destaque na arquibancada – por meio de um chapéu,
dopam um dos ciclistas.
O
curta faz uma oposição entre o prazer lúdico e momentos surreais da disputa (de
repente as rodas das bikes transformam-se em pernas ou a pista em rio no qual
os ciclistas pedalam submersos) com o doping propositalmente inserido na
competição por empresários mafiosos em busca de manipulação de resultados.
O
que faz recordar a clássica animação franco-belga-canadense As Bicicletas de Belleville (Les Triplettes de Belleville, 2003), no
qual um ciclista é sequestrado em plena Volta da França para ser explorado por
mafiosos em competições de bicicletas fixas em Belleville, megalópole
localizada além do oceano.
Se
o curta italiano é uma celebração da possibilidades físicas e espirituais da
bike, a produção estoniana mostra a exploração do prazer ciclístico pela
competição. Além de retratar a própria vida pessoal do animador Sander Joon:
ex-fumante inveterado, é atualmente um adepto do ciclismo.