Enquanto EUA e URSS disputam a corrida espacial dos anos 1960, um excêntrico milionário financia sua própria viagem espacial buscando quebrar o recorde de permanência solitária em orbita da Terra. Mas um irritante “beep” de mau funcionamento do sistema somado à claustrofobia e delírio no interior de uma minúscula cápsula ameaçam a missão. Esse é o curta “Waltz For One” (“Valsa para Um”, 2012), lançado pelo coletivo de artistas “Intellectual Propaganda”. É muito mais do que uma paródia aos cânones de filmes do gênero (entre eles, “2001” de Kubrick): é uma melancólica desconstrução do gênero ficção científica, enfraquecido na pós-modernidade porque perdeu a própria essência que o constituía - a visão confiante e utópica no futuro. O sintoma de uma sensibilidade atual marcada pela incerteza e temor em relação ao futuro.
Em uma alternativa década de 1960, enquanto americanos e soviéticos
se engalfinhavam em uma competição política pela conquista da vanguarda na
corrida espacial, um excêntrico milionário chamado Arthur Whitman procura por
sua própria conta a glória estelar. Através de uma viagem espacial
autofinanciada, Whithman pretende quebrar o recorde de permanência no espaço ao
tentar ficar em órbita da Terra por uma semana, solitário em uma claustrofóbica
cápsula.
Cair nas profundezas do espaço já é perigoso o suficiente,
ainda mais solitário e ainda mais quando as coisas começam a dar errado: no
meio da tensa contagem regressiva das horas pelo painel da cápsula em seu teste
de resistência, Whitman perde diversas vezes contato com a base e um irritante
aviso sonoro de mau funcionamento do sistema toca continuamente. Whitman mal
consegue se mexer ou respirar na apertada cápsula.
“É a luta do homem contra as forças da natureza e contra as
forças mais poderosas que estão dentro da psique”, afirma o release do curta.
“Waltz For One” é uma produção da Intellectual Propaganda, grupo de artistas
norte-americanos baseado em Atlanta (EUA) liderados por fotógrafo e
cineasta David Torcivia que já produziu vídeos para ESPN e MTV. O curta foi lançado no dia em que se comemorou o 49º aniversário do mais longo vôo espacial solitário na história feito pelo cosmonauta Valery Bykovsk. O curta foi produzido com uma verba de menos de 700 dólares.
O Curta
A narrativa descreve a claustrofobia, tensão, stress, até
chegar ao delírio onde o ritmo do irritante “beep” e os cliques dos botões do
painel (Whitman começa aleatoriamente a apertar os interruptores do painel) e
do botão de uma caneta vão unindo-se até se ajustarem com o compasso da valsa
“Danúbio Azul”, referência explícita ao clássico de Kubrick “2001: Uma Odisséia
no Espaço”.
Dois elementos do argumento desse curta chamam a atenção
para quem estuda as obras audiovisuais da premissa de que são documentos da
sensibilidade cultural ou do imaginário de uma determinada época: por que criar
uma década de 1960 alternativa? E por que essa experiência de claustrofobia e
delírio do solitário astronauta culmina ironicamente com a referência máxima de
qualquer sci fi, “2001” de Kubrick?
A primeira vista podemos qualificar o curta como uma parodia
aos temas e clichês do gênero ficção científica, mas há algo de estranho na
atmosfera da narrativa: primeiro, a inverossimilhança de, em plena época da
Guerra Fria entre duas superpotências, um milionário “privatiza” a corrida
espacial, torna-se astronauta e faz uma viagem “free lancer”; e depois o
insistente contraste que as imagens fazem entre a imensidão do espaço exterior
e a claustrofóbica cápsula onde Whitman sente-se como um enterrado vivo de
algum conto de Edgar Allan Poe.
Há um tom estranhamente híbrido, simultaneamente irônico e
realista que incomoda. O que difere do tom da paródia, sempre irônica, cínica e
surreal.
Se toda paródia é uma homenagem e crítica a um gênero que
ainda é simbolicamente forte (lembre-se de paródia como “Apertem os Cintos Que
o Piloto Sumiu”, paródia ao gênero disaster
movie, ou “Tem Um Louco à Solta no Espaço” de Mel Brooks ao gênero space opera de “Star Wars”), no curta
“Waltz For One” temos uma espécie de desconstrução de um gênero (o sci fi) que está enfraquecido no
pós-moderno porque perdeu a própria essência que o constituía: pensar o futuro.
O Futuro do Passado
Em um seminal texto sobre o gênero no pós-moderno, Nelson
Brissac Peixoto argumentava que a ficção científica atual perdeu a visão de
futuro: primeiro ao mostrar o futuro como pós-apocalipse (como catástrofe,
lixo, saturação e decadência) ou como passado, um olhar nostálgico
contemporâneo retro, o ímpeto pela vivência intensa de uma época quando a aspiração
pelo futuro foi formulada. Em síntese, o futuro do passado.
“Ficção científica sugere de imediato uma visão de futuro. Planetas desconhecidos, robôs e tecnologia ultra-sofisticados, inacessíveis ao tempos atuais. Mas e se esta perspectiva do que está para vir tiver sido feita há muitos anos? Há algo de estranho e perturbador nos filmes sci-fi dos anos 50: eles apresentam uma ideia do futuro que é de uma outra época, distinta da nossa” (PEIXOTO, Nelson B., “O Futuro do Passado” In: Pós-Modernidade, Editora da UNICAMP, 1987, p.75-76).
“Waltz for One” mostra esse olhar nostálgico para esse
“futuro do passado”: o início da corrida espacial, o astronauta como o herói
pioneiro. Um olhar da atualidade onde a aventura espacial entrou em crise
porque os custos e riscos tornou inviável essa utopia.
A ficção científica representava a modernidade no seu estágio mais avançado e final - foto: poster do filme "Planeta Proibido", 1956. |
A utopia espacial dos sonhos épicos de conquistas e
descobertas perdida nos sonhos dos turistas milionários atuais que veem o
espaço como mais um parque temático terrestre.
Claustrofobia do Futuro
Outro ponto que impressiona no curta é a experiência
claustrofóbica do protagonista. Ao lado do futuro o espaço e a viagem eram
temas recorrentes do gênero sci fi: o espaço profundo, o infinito, grandes
extensões percorridas por naves de design arrojado, retilíneo e funcional. A
partir de “Alien” de 1979 vemos os protagonistas confinados em espaços
claustrofóbicos, sujos, úmidos e insalubres.
Se no passado o espaço e a viagem representavam a
modernidade no estágio mais avançado e último do pós-guerra (cidades se
alastrando, auto-estradas, o carro como símbolo de uma época em que tudo é
extensão e movimento), hoje a experiência claustrofóbica é a projeção seja no
passado ou no futuro da crise do presente: crise econômica, urbana e ecológica
representado pela experiência do pânico e confinamento.
Hoje o design das naves é neobarroco, labiríntico e
disfuncional como se simbolizasse a ausência dessa utopia do espaço: não há
mais mundos para descobrir, a não ser enfrentar os próprios fantasmas e
demônios da psique. “Solaris” (1972) de Tarkovsky é um caso exemplar dessa renúncia do
gênero às aventuras épicas. Astronautas se defrontam não mais com o espaço
desconhecido, mas com suas próprias fantasias e desejos materializados pelo
estranho mar de um planeta desconhecido.
E, no final, a valsa “Danúbio Azul”, uma referência irônica,
engraçada, mas também melancólica a Kubrick. O filme “2001” talvez tenha sido a
última ficção científica modernista com todos os elementos fortes do gênero:
utopia, futuro, espaço e design sofisticado. O sonho de que o desenvolvimento
tecnológico nos conduziria ao encontro com nossos deuses para surgir um novo
homem, como o “star child” que observava a Terra no enigmático final do filme
de Kubrick.
O curta “Waltz For One” é um sintoma desse esvaziamento
contemporâneo da utopia espacial. O sintoma de uma sensibilidade atual marcada
pela incerteza e temor em relação ao futuro.