Em um cenário distópico num mundo em crise energética e ambiental, um
engenheiro cria uma máquina que produz energia ilimitada. Mas que também produz
um efeito colateral imprevisto: o tempo ilimitado – um loop temporal que
aprisiona todos os personagens em uma torsão tempo-espaço. Esse é a produção
Netflix “Arq” (2016), um inteligente mix de “Feitiço do Tempo”, “Contra o
Tempo” e “Efeito Borboleta”. Mas o moto-contínuo de “Arq” é muito mais do que
uma máquina do tempo: os personagens são prisioneiros da própria “gravidade
quântica” – o mesmo acontecimento repetido diversas vezes cria uma “nuvem” de
possibilidades, assim como elétrons em torno do núcleo de um átomo. E somente a
memória e “déjà-vus” poderão tirar os protagonistas dessa nuvem, fazendo
emergir a seta do tempo nesse filme CronoGnóstico.
Para o espanto
dos cientistas, a mecânica quântica mostrou que as leis fundamentais da física
não seguem apenas uma direção – no mundo microfísico, partículas podem tanto ir
para frente ou para trás no tempo. No entanto no mundo macrofísico, não importa
quantas vezes se olhe no espelho, você nunca ficará mais jovem. Se no mundo
quântico, o tempo é uma variável tão flexível, por que experimentamos a
realidade como uma seta do tempo estritamente apontando para o futuro?
Para muitos
físicos, a resposta está que o próprio tempo relaciona-se diretamente com a
natureza do observador. Mais precisamente com a sua memória – a capacidade de
preservar informações sobre eventos experimentados. Lembrando e aprendendo,
fazemos o tempo andar do passado para o futuro.
Porém há algo
mais além do observador: lá fora não há um tempo tiquetaqueando do passado ao
futuro. Há a “gravidade quântica” e o “colapso da função da onda” que continuam
sendo o maior mistério não resolvido da ciência – conceitos que, segundo a famosa
“interpretação de Muitos Mundos” de 1957, abririam as portas para a existências
de realidades alternativas ou mundos paralelos. Além de tornarem incompatíveis
o mundo macro da teoria da relatividade e o mundo micro da mecânica quântica.
O moto-perpétuo
Agora imagine
alguém que construa uma máquina originalmente planejada para criar uma forma de
energia alternativa em um mundo em ruínas por algum tipo de catástrofe
nuclear-ambiental. A realização do velho sonho da Ciência: a descoberta do
moto-perpétuo, cuja energia é sempre renovada.
Mas ocorre um
imprevisto efeito colateral: um loop tempo-espaço foi criado, prendendo todos
em um dia que se repete ad infinitum, onde todos se confrontarão com a
“gravidade quântica” que governa o mundo microfísico, mas que agora se manifesta,
diante deles, na realidade macro.
A princípio, o
filme Arq lembra um mix de Feitiço do Tempo (Groundhog Day,
1993) com o filme Contra o Tempo (Source Cod, 2011): o inventor
de uma máquina revolucionária de produção de energia vê dois grupos rivais
invadirem sua casa para roubá-la. Eventualmente ele morre no final dessas
tentativas, para acordar depois na sua cama acreditando ter vivido um pesadelo.
Até cair em si que está preso em um estranho loop temporal.
Prisioneiros do
tempo, memória e déjà-vus: temos em Arq todos os ingredientes de
um filme CronoGnóstico. Além de apresentar esse conflito do Tempo quântico com
o Tempo ordinário: preso no loop, o protagonista pode reviver e experimentar as
consequências de cada uma das suas opções como fosse uma “nuvem” de
possibilidades sem nunca engrenar em uma direção temporal. Ou “decaimento
quântico”.
O protagonista
está prisioneiro em um emaranhado de possibilidades. E a memória é a única
esperança de fazer a seta do tempo ir para frente.
O Filme
Arq começa em
plena ação: Renton (Robbie Amell) e sua namorada Hannah (Rachael Taylor) são
despertados por um grupo de homens armados e com máscaras de gás. Arrastam os
dois para serem amarrados em um cômodo onde se encontra uma máquina com um
cilindro metálico que gira cada vez mais rápido. O grupo quer que Renton lhes
dê créditos e dinheiro.
Renton tenta
escapar, rola abaixo as escadas e... acorda na mesma cama outra vez. Novamente
os mesmos homens com máscaras de gás invadem o quarto. Mas Renton lembra do
loop anterior e está preparado para matar os invasores. Renton leva um tiro
e... acorda novamente na mesma cama, pouco antes de chegar mais uma vez o
ameaçador grupo mascarado.
O que está
causando o loop? Aos poucos o espectador vai juntando os indícios em cada volta
no tempo e criando o cenário: parece que estamos em um mundo pós-apocalipse
onde não há uma crise energética num cenário de desastre econômico após algum
tipo de catástrofe nuclear. E a saída da crise está nas mãos de um gigantesco
conglomerado: a Torus, que privatiza, controla e vigia os cidadãos.
Mas há a
resistência: o “Bloco”, grupo de terroristas que enfrentam a Torus e seus
soldados robôs. E no centro de tudo, a “Arq”, máquina criada por Renton,
engenheiro da Torus.
A certa altura,
Hannah descreve de forma feliz o Arq: “uma máquina de energia ilimitada que
também produz tempo ilimitado”.
No início,
Renton é o único que consegue lembrar dos loops anteriores e tentar tirar
proveito antecipando as ações dos inimigos. Porém as coisas evoluem, quando aos
poucos cada personagem começa a lembrar e a ter déjà-vus desenvolvendo
as ações ao longo do tempo, mesmo que a situação seja a mesma outra vez.
Como um
moto-contínuo, a máquina recicla as células de combustível que a alimentam. Mas
também Arq recicla o próprio tempo ao seu redor mantendo todos prisioneiros da
torsão temporal.
Tempo “em nuvem”
Mas por que a
Torus e o Bloco querem roubar a invenção de Renton? Na guerra entre os dois
grupos, a máquina criaria a cena perfeita de batalha: repetir a mesma situação
até que todas as ações do inimigo sejam previstas.
Arq, portanto, é
mais do que uma máquina do Tempo. Significa que poderíamos conhecer as
consequências possíveis de cada ato ou escolha. Veríamos todas uma cena “em
nuvem”, da mesma maneira como na mecânica quântica vemos uma nuvem de
possibilidades das posições dos elétrons em torno do núcleo do átomo.
A evolução
temporal seria aquilo que a teoria quântica chama de “função de colapso da
onda”: dentro da nuvem de possibilidades, uma será escolhida pelo observador.
Nesse momento temos a “decoerência” que supera o emaranhado de possibilidades.
Uma teoria do déjà-vu
Para entender o
problema, pense na luz de seu quarto. O senso comum nos diz que a luz pode
estar ligada ou desligada, mas não ambos ao mesmo tempo. No entanto, no mundo
microfísico a mecânica quântica permite essas situações bizarras de
sobreposição de dois estados – ligado e desligado.
Essa situação
bizarra é a torsão temporal vivida pelos personagens do filme Arq. O
espectador perceberá que surge no filme uma interessante teoria do déjà-vu
como a lembrança de uma outra opção realizada dentro da nuvem de possibilidades
que, repentinamente, se sobrepõe a um outro estado.
O que abre a
possibilidade da existência de mundos paralelos, como feita por Hugh Everett em
1957 na Universidade de Princeton – a chamada “Interpretação de Muitos Mundos”
(Many Worlds Interpretation – MWI). Mundos novos se abrem constantemente a cada
leque de opções que se abre: todas essas opções coexistem “em nuvem”. Às vezes
poderiam se sobrepor, criando um déjà vu. O efeito colateral do Arq é sobrepor
em loop esses mundos paralelos.
O que acaba
criando uma armadilha para os personagens.
Um filme CronoGnóstico
Mas Arq
insere o elemento complementar ao Tempo: a memória. Tema recorrente dos filmes
gnósticos, em particular nos CronoGnósticos: o esquecimento nos aprisiona,
condenando-nos à repetição, erro e encarceramento em um mundo inautêntico.
A seta do tempo
(do passado para o futuro) só poderá emergir se Renton lembrar e aprender. Mas
outra coisa ameaça o nosso herói de Arq, o mesmo perigo que o filme Efeito
Borboleta (2004) apresenta ao protagonista: tirar proveito do conhecimento
apenas para si mesmo pode criar consequências exponenciais e catastróficas.
Ficha Técnica |
Título: Arq
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Diretor:
Tony Elliot
|
Roteiro: Tony Elliot
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Elenco: Robbie Amell, Rachael Taylor,
Shaun Benson
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Produção: Lost City, XYZ Films
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Distribuição:
Netflix
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Ano:
2016
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País: EUA
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