Depois de explorar o apocalipse silencioso da precarização do trabalho em Não Espere Muito do Fim do Mundo (2023), o diretor romeno Radu Jude retorna ao tema em sua nova comédia de humor negro, Kontinental ’25 (2025). Desta vez, a sátira foca na normalização da gentrificação e da desigualdade na Romênia pós-socialista, acompanhando a crise moral de Orsolya, uma oficial de justiça que testemunha o suicídio de um homem durante uma ação de despejo que ela própria executava. O incidente lança a protagonista numa espiral de culpa, forçando-a a confrontar sua cumplicidade em um sistema difuso e sem rosto, fundado no dilema entre Lei e Moralidade.
No seu filme anterior Não Espere Muito do Fim do Mundo (Nu
astepta prea mult de la sfârsitul lumii, 2023), o diretor romeno Radu Jude
fez uma sátira cínica e minimalista propôs uma visão diferente para o
apocalipse, menos hollywoodiana: e se já estivermos passando por um processo
apocalíptico e ainda não percebemos isso graças à nossa capacidade de
normalizarmos ou racionalizarmos situações absurdas.
Jude retratava uma assistente de produção de vídeos exausta,
precarizada, vivendo as maneiras pelas quais o capitalismo do século 21 está
cada vez mais apertando as cordas que nos prendem e sufocam a vida das pessoas
comuns - trabalhadores estão constantemente sendo solicitados a fazer mais por
menos.
Na versão de Jude do apocalipse, a luz se apagará tão sutilmente
que não perceberemos até que tudo esteja escuro como breu.
No seu filme mais recente, Kontinental ’25 (2025), uma
satírica comédia de humor negro, Jude retorna ao tema da normalização da
precarização apocalíptica do cotidiano. Numa Romênia pós-socialista, agora com
uma paisagem urbana dominada por enormes outdoors prometendo lançamentos
imobiliários luxuosos e grandes marcas globais sobrepondo-se a fachadas
históricas.
O título faz referência a Europa '51, o filme de Roberto
Rossellini de 1951 que teve uma influência fundamental na formação
cinematográfica de Jude.
Nesse filme, Ingrid Bergman interpreta a esposa rica e insensível
de um industrial, que tenta uma mudança humanitária após uma tragédia pessoal.
Essa trajetória é espelhada em Kontinental '25, embora os
detalhes sejam bem diferentes: para a oficial de justiça de meia-idade Orsolya
(Eszter Tompa), é o suicídio de um desconhecido, em uma ação de despejo, que a
leva a uma espiral de vergonha por sua cumplicidade com o acelerado processo de
gentrificação na cidade de Cluj, Transilvânia.
O filme de Jude pinta um quadro sombrio da desigualdade sistêmica,
intocada por ações individuais. Que acabam racionalizando ou justificando um
apocalipse silencioso ao redor: a má-fé e o mau gosto reinante, levando-nos a
uma espécie de tour arquitetônico pela decadência romena onde expõe o racismo,
o nacionalismo (o conflito histórico entre húngaros, romenos e russos) e a
obsessão fútil das classes dominantes do país com a especulação imobiliária promovidas
por construtoras e incorporadoras multinacionais.
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Por isso, o filme se encerra com uma montagem ácida de conjuntos
habitacionais populares degradados justapostos a condomínios fechados para uma
classe média ascendente numa Romênia que está se inserindo na ordem do
capitalismo global.
Kontinental'25 coloca o
espectador diante de uma colisão entre legalidade e moralidade. O filme não
oferece uma resposta fácil; antes, expõe como ações juridicamente corretas
podem gerar danos morais irreparáveis. Essa tensão é o núcleo dramático: a
protagonista cumpre um dever público e, simultaneamente, torna-se testemunha e
agente de uma tragédia – o suicídio em uma ação de despejo.
Por trás da execução burocrática de um oficial de Justiça em mais dum
dia de trabalho, as forças anônimas do capital transnacional que rapidamente
está destruindo a memória arquitetônica da Romênia enquanto cria um violento
abismo social – que acaba se misturando com o ódio nacionalista contra russos e
húngaros.
O que leva a um impasse entre a Lei e a Moral: A lei define
procedimentos, prazos e legitimidade institucional. A moralidade exige
percepção do efeito humano dessas normas, avaliação emocional e disposição para
sacrificar eficiência por compaixão.
O filme acompanha como a protagonista age corretamente dentro do
sistema e, ao mesmo tempo, vive a experiência da má-consciência, mostrando que
cumprir normas não absolve da culpa moral.
Para Radu Jude, essa é a essência desse apocalipse silencioso que
nos cerca - um tecido social que normaliza expulsões e invisibiliza os
excluídos. A responsabilidade aparece difusa, sem rosto: proprietários,
promotores, burocratas, comunidade e consumidores da gentrificação urbana que
lucram com a transformação impiedosa da cidade.
Essa responsabilidade sem rosto institucionaliza a violência
simbólica, tornando moralmente aceitável o que seria inaceitável em nível
pessoal. Insuportável para Orsolya.
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O Filme
Kontinental ’25 abre com um
sem-teto caminhando por um parque temático decadente nos arredores de Cluj – um
parque emula alguma coisa como um Jurassic Park de baixo orçamento.
Ele caminha arrastando os pés por trilhas cobertas de folhas,
procurando algo de comestível ou com valor no lixo. Enquanto isso, os
dinossauros animatrônicos rangem e rugem estridentemente. A abertura cria
imagens que encapsulam a fricção entre a comédia e a tragédia, o banal e o
bizarro, entre o real e o artificial.
A abertura é emblemática: um “Parque Jurássico” obsoleto e de
baixo orçamento não causa espanto para quem conhece a obra do diretor e
roteirista Radu Jude e sua crítica contundente à decadência do sistema social
numa economia pós-socialista. Agora, a humanidade pode se autodestruir sem
problemas.
A protagonista é Orsolya Ionescu (Eszter Tompa), uma
oficial de justiça na cidade de Cluj, na Transilvânia. Ela é encarregada de
executar o despejo desse sem-teto chamado Ion Glanetasu (Gabriel
Spahiu), um ex-atleta olímpico romeno que viveu as glórias esportivas dos
tempos do regime comunista. Agora, sem mais o apoio estatal, vive como morador
de rua no porão de um prédio abandonado que acabou ocupando
O imóvel será demolido para dar lugar a um novo empreendimento
imobiliário, de uma construtora e incorporada chamada “Kontinental”. Ela
espalha outdoors pela cidade anunciando novos condomínios para a nova classe
média em ascensão. Destruindo a memória arquitetônica e aumentando o abismo
social.
Orsolya tenta conduzir o despejo com empatia: oferece tempo para
que Ion organize seus pertences e promete que ele será realocado para um
abrigo. Ion, resignado, aceita e pede uma hora para se preparar. No entanto,
após esse intervalo, ele comete suicídio dentro do porão, deixando Orsolya
devastada.
A cena do suicídio e sua descoberta marcam o filme: Orsolya
presencia as consequências imediatas de um ato que ocorreu sob sua
responsabilidade profissional.
Após o incidente, o filme segue Orsolya tentando viver com a
culpa. A atordoada Orsolya não consegue, pois nos dias seguintes, ela relata o
incidente a absolutamente qualquer pessoa que esteja disposta a ouvi-la, desde
sua amiga compreensiva Dorina (Mardare Oana) até sua mãe mais rígida (Annamária
Biluska) e seu padre (Serban Pavlu), que a assegura com indiferença que ela não
precisa se sentir culpada, pois ninguém está isento de pecado.
Ela é igualmente absolvida no trabalho, onde os colegas insistem
que ela foi "mais do que humana" ao desempenhar suas funções — embora
nada disso alivie a consciência de Orsolya, pois a sensação de que simplesmente
fazer seu trabalho era o problema em primeiro lugar a corrói.
Ela recusa sair de férias com a sua família: seu marido e filhos
saem para as férias de verão na Grécia. Simplesmente, a culpa aterradora está
paralisando a vida de Orsolya. Principalmente pelo fato de que ela é também
integrante dessa nova classe média ascendente. E mora num condomínio fechado
que, provavelmente, também foi construído pela Kontinental.
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Um encontro fortuito com o entregador de aplicativo Fred (Adonis
Tanta) é mais estimulante: um ex-aluno de seu antigo emprego como professora de
direito, ele reage de forma tão original ao seu trauma, com uma mistura de
filosofia zen superficial e niilismo irreverente, que ela é momentaneamente
arrancada de sua autocomiseração.
Fred, ele próprio, é o comentário irônico do filme sobre a precarização
e abismo social: formado em Direito, teve que sobreviver como biker entregador
por aplicativo.
As confissões de seu “pecado” para amigos e conhecidos não
aliviam; ao contrário, expõem cada nova tentativa como insuficiente. O único
alívio momentâneo da culpa é quando ela faz doações para a caridade através de
aplicativos no celular. Que acaba funcionando a curto prazo como uma espécie de
dopamina moral.
Filmado de forma rápida e despojada com um iPhone 15 — tão
rápido, aliás, que os espectadores mais atentos podem notar um pôster do
lançamento do filme Prime Video We Live in Time no fundo de uma cena —
as imagens do filme são ásperas e decididamente pouco atraentes,
distanciando-se do charme turístico de Cluj.
Em vez disso, extensas montagens são dedicadas à profusão de novos
projetos de construção na cidade, nenhum deles destinado a abrigar os pobres.
Enquanto as estátuas urbanas de vários estadistas há muito
esquecidos, agora são insignificantes diante dos tijolos e da argamassa do
progresso.
Além de seus retratos humanos devastadores, Kontinental '25
funciona como um instantâneo de uma cidade tão fragmentada e angustiada.
Além disso, a denúncia da hipocrisia do discurso da “empatia”, tão
salientado e repetido como a solução ética para um mundo em que a empatia fica
impotente diante do dilema entre Lei e Moral – vira uma espécie de
“performatividade moral”: respostas sociais (religiosas, institucionais,
pessoais) aparecem como formas insuficientes ou cênicas diante do dano real de
um sistema difuso e sem rosto normalizado.
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Ficha Técnica |
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Título: Kontinental
‘25 |
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Diretor: Radu Jude |
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Roteiro: Radu Jude |
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Elenco: Eszter Tompa,
Annamária Biluska, Marius Damian, Adonis Tanta |
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Produção: Saga Film,
UPFAR ARGOA |
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Distribuição: 1-2
Special |
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Ano: 2025 |
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País: Romênia |
quarta-feira, novembro 05, 2025
Wilson Roberto Vieira Ferreira





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