sábado, novembro 01, 2025

Já faz muito tempo que é o fim do mundo em 'Sirât'



“Já faz muito tempo que o mundo está acabando”, diz um personagem no filme “Sirât” (2025, Prêmio do Juri em Cannes e indicado pela Espanha ao Oscar de Filme Estrangeiro), de Oliver Laxer e produzido por Almodóvar, que transforma raves e desertos em uma travessia do fim: “Sirât” acompanha uma caravana de corpos e veículos pelo Marrocos em busca de uma última festa — e, talvez, de algo que ainda pareça futuro. Entre batidas eletrônicas, paisagens em Super 16 mm e notícias de uma guerra indeterminada no rádio, o road movie se desloca da aventura para uma meditação lenta sobre morte, perda e luto, onde a rave vira rito coletivo e o deserto, uma catedral vazia do século XXI. No centro da jornada, um pai e um filho procuram a filha desaparecida; ao redor, uma comunidade improvisada tenta dançar enquanto a ponte para o inferno se estreita.

Em determinado momento um personagem pergunta a um companheiro de viagem o que ele pensa sobre como seria o fim do mundo. O amigo pondera a pergunta antes de responder, meio sem convicção: "Já faz muito tempo que o mundo está acabando." 

Esse sentimento assombra Sirât (2025), novo filme de Oliver Laxer, que aparentemente se passa em um futuro próximo, quase apocalíptico, e acompanha um grupo de frequentadores de raves em sua jornada pelo deserto marroquino em busca de uma última festa.

O lar dessa turma é uma caravana de trailers, SUVs e jipes desgastados, abastecidos com comida, água, drogas sintéticas e outros suprimentos. A comunidade é formada por qualquer pessoa que encontrem nas festas ou a caminho delas. E, quando ligam o rádio ou pequenos monitores de TV, as notícias alertam sobre a escalada de uma guerra global indeterminada, recursos escassos e o rompimento das relações diplomáticas.

Logo no início, o filme explica o conceito islâmico de Sirât: ponte sobre o inferno, tão estreita quanto um fio de cabelo e afiada como uma lâmina, sobre o inferno, cuja travessia é obrigatória a todos no dia do Juízo Final. Quem cai, perde-se para sempre.

A travessia dessa ponte é um road movie que vai muito mais além de estradas, velocidade ou perseguições, como nos clássicos norte-americanos. Este road movie é uma travessia lenta, longa e penosa que se transforma numa longa meditação sobre morte, perdas e luto.

Raves, suas músicas eletrônicas e as imagens espetaculares em panorâmica do deserto com fotografia em Super 16 mm são os simbolismos centrais em Sirât.

O filme acompanha Luis (Sergi López) e seu filho Esteban (Bruno Núñez Arjona) em busca de Marina, filha e irmã desaparecida que lastreia toda a jornada. O percurso — de rave em rave, pelas trilhas secas do deserto marroquino, envolto em ruído político, rumores de uma Terceira Guerra e a dissolução de toda promessa de futuro — serve de plataforma simbólica para uma análise do deserto como “Nowhere” (lugar-nenhum): esse espaço de suspensão, vazio, onde cultura, identidade, comunidade e horizonte de sentido parecem se evaporar.




A rave é o elemento mais pop e reconhecível que faz essa ponte entre o espectador e a jornada de meditação e suspensão sensorial para a qual Oliver Laxer nos convida.

“Já faz muito tempo que o mundo está acabando” é uma tese que pode muito bem ser aplicada à cultura das raves – surgem da cena acid house e da cultura de dança do final dos anos 1980 na Inglaterra (Manchester, 1987–88), espalhando-se rapidamente por Berlim e outras cidades europeias; o termo “rave” veio a nomear festas com música eletrônica repetitiva, locais não convencionais (galpões, campos) e um ethos de celebração coletiva.

Mas que também recebeu manchetes criminalizadoras dos jornais e repressão policial contra drogas e contravenções.

Aos poucos, as redes migraram de áreas urbanas para os desertos (Coachella, Burning Man, por exemplo), adquirindo um ethos místico e religioso: não se busca escutar, mas dançar — o gesto corporal é o último vínculo comunitário antes do isolamento definitivo. Tal como o sufismo, tradição mística islâmica com a qual Oliver Laxe se aproxima, o transe é processo e não finalidade, e o êxtase só se alcança no ritmo do corpo em movimento, na repetição — o deserto se torna a última catedral do século XXI, mesmo se condenada ao fracasso iminente.

Historicamente, a cultura das raves surge no cenário das subculturas ou tribalização nos anos 80 como resposta ao fim do movimento de contracultura dos anos 1960-70. Com o fim da Guerra Fria e a percepção de “fim da História”, as raves adquiriram um aspecto de “espetáculo do fim do mundo” – em meio ao Nowhere do deserto, uma tentativa precária de rito coletivo: música, movimento, dança, drogas e ilusão de horizonte compartilhado.




Sirât é notável por captar o espírito do tempo do século XXI: um zeitgeist de crise e colapso, tensão política mundial, refugiados e deslocados, limites ambientais, jovens fugindo para comunidades alternativas, enquanto guerra, luto ambiental e catástrofe econômica rondam o rádio e a paisagem.

Como repete-se no filme, “o mundo já acabou há algum tempo”. O deserto contemporâneo é, ao mesmo tempo, eco da devastação real (mudança climática, conflitos do Oriente Médio, crise migratória) e metáfora de uma experiência coletiva de desamparo e deslocamento.

O Filme

Uma série de alto-falantes surrados está sendo montada no deserto marroquino. Embora ofuscados pelas espetaculares paredes empoeiradas do cânion próximo, o som que produzem rivaliza com a grandiosidade do panorama rochoso. Batidas pulsantes e drones techno.

De repente, o deserto vazio se enche de corpos contorcidos e giratórios, belamente e fielmente filmados pelo diretor de fotografia Maruo Herce. Suas tatuagens antigas e cicatrizes de sol, suas tranças, brincos e camisetas rasgadas enfatizam que esses não são apenas turistas tirando selfies no Coachella, nem aspirantes a frequentadores do Burning Man.

Uma atmosfera de êxtase, de aceitação e euforia bacanal reina; a única maneira de se destacar aqui seria aparecer com um visual de uma pessoa “normal” (normcore).

E então essas pessoas surgem. Entram em cena Luis (o veterano espanhol Sergi López, um dos poucos atores profissionais no elenco) e seu filho Esteban, ambos quase a definição de normalidade da classe média, embora sua missão seja peculiar e triste.

Indo de pessoa em pessoa entre os frequentadores da rave, eles distribuem fotos da filha de Luis, Mar, de quem não têm notícias há mais de cinco meses. Seguindo uma pista que sugere que ela possa fazer parte desse meio das raves, eles ficam desapontados por ninguém a reconhecer. Até que Jade (Jade Oukid), uma participante simpática com tatuagens punk de linhas pretas no rosto, conta a Luis que outra rave está marcada para breve, em um local distante, do outro lado do deserto, já perto da Mauritânia.

Então, nesse momento os militares chegam em um comboio fortemente armado, ordenando a evacuação imediata. Dessa maneira descobrimos que a civilização está à beira da Terceira Guerra Mundial – há alguma crise global indeterminada.




Durante a primeira hora do filme conhecemos os outros membros do grupo de Jade.  Steffi (Stefanian Gadda), Josh (Joshua Liam Henderson), Tonin (Tonin Janvier) e Bigui (Richard Bellamy), que juntos perderam um braço e uma perna e aparentemente vivem em seus caminhões-trailers, viajando de festa em festa no deserto. Talvez, em busca daquele final do mundo que nunca chega.

Tornam-se, a contragosto, uma família substituta para Luis e Esteban, quando o primeiro decide escapar dos militares e seguir o grupo de Jade para essa segunda rave quase mítica.  Onde espera encontrar a sua filha desaparecida.

É assim que se sente o fim do mundo?

Segue-se na primeira hora uma comédia dramática leve quando a minivan de Luis se mostra inadequada para o terreno acidentado, e quando a cachorrinha de Esteban, Pipa, é acometida por uma doença passageira. Cuja causa suspeita é excremento com LSD.

E com momentos suficientes de carinho entre os personagens para nos convencer de que o filme se desviou da premissa da garota desaparecida para se tornar um road movie peculiar, com música eletrônica e uma história de família encontrada.



Mas cada vez mais Sirât vai entrando num território cada vez mais selvagem, bizarramente existencial e alegórico. 

O tom de devastação crescente (que culmina num clímax absurdo, quase ridículo, que é simultaneamente uma das sequências mais tensas e angustiantes da memória recente) nunca arrefece até o final.

"É assim que se sente o fim do mundo?", pergunta Bigui em certo momento, e sim, de certa forma é. Mas, embora o momento desesperador e peri-apocalíptico que evoca seja aquele em que tudo está acabando, desmoronando, se consumindo, explodindo, virando pó e morrendo, Sirât é algo novo no subgênero road movie.

Sirât tornando-se uma amálgama de Mad Max, O Salário do Medo e aproximadamente metade da produção de Michelangelo Antonioni das décadas de 60 e 70 – a criação de cenários purgatoriais da modernidade tardia, carregado de tensão existencial e política.

O filme é a travessia rumo ao nada, nunca oferecendo redenção — é puro sadismo do vazio: ninguém pode atravessar a ponte “Sirât” e sair do inferno.

Porque o inferno, agora, é o próprio mundo.


 

 

Ficha Técnica

Título:  Sirât

Diretor: Oliver Laxer

Roteiro: Santiago Fillol, Oliver Laxer

Elenco: Sergi López, Bruno Nuñez Arjona, Stefania Gadda

Produção: El Deseo, 4 a 4 Productions, Movistar Plus

Distribuição: Retrato Filmes (Brasil)

Ano: 2025

País: Espanha, França

 

Postagens Relacionadas

 

O ardil semiótico de Trump: o "Big Stick" como farsa, América Latina e "No Kings"

 

 

As aventuras semióticas em um ano pré-eleitoral

 

 


Tarifaço, Tarcísio e Dr. Fantástico: tiro sai pela culatra semiótica da grande mídia

 

 


Grande mídia sente o golpe e reage com a semiótica Nem-Nem

 

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review