Entre a versão oficial de uma fuga frustrada e o relato surreal de vozes vindas da tornozeleira, o episódio da madrugada de sábado em que Jair Bolsonaro teria danificado o dispositivo eletrônico com um ferro de solda revela-se menos como um ato isolado e mais como um espetáculo midiático calculado. No embate entre dolo consciente, surto repentino ou encenação, emerge a hipótese de um “não-acontecimento” ou “pseudoevento”: uma operação semiótica destinada a deslocar o foco das manchetes, obscurecendo o verdadeiro terremoto político-financeiro que representa a liquidação do Banco Master: a ameaça de expor as ligações perigosas entre banqueiros, empresários e o sistema de poder brasileiro. Guerra semiótica pelo controle da agenda midiática que lembra a disputa pelo foco midiático em 2012 entre o escândalo das ligações perigosas do empresário contraventor Carlinhos Cachoeira e o julgamento do Mensalão.
A mídia apresenta para o distinto público, duas razões possíveis
para explicar o gesto de Bolsonaro de danificar a tornozeleira eletrônica por
volta da meia-noite do sábado (22) com um ferro de solda.
Para o ministro do STF, Alexandre de Morais, Bolsonaro violou o
dispositivo “dolosa e conscientemente”, e pretendia fugir durante a vigília
convocada pelo filho, Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Por isso, o ministro decretou a
prisão preventiva do ex-presidente no mesmo dia.
E para Bolsonaro, em depoimento na Polícia Federal, ele disse que repentinamente
sentiu “uma certa paranoia” e “alucinação”, provavelmente relacionado a
interações medicamentosas.
O Estadão resolveu dar um toque mais sobrenatural a essa versão repercutindo
os relatos de aliados de que Bolsonaro “meteu ferro” porque ele estava “ouvindo
vozes vindas do aparelho”.
Dolo consciente ou surto?
Porém, esse humilde blogueiro vai cometer uma ousadia hermenêutica
e propor uma terceira interpretação: e se tudo for apenas uma simulação, um
não-acontecimento?
E se a inesperada prisão preventiva, com Alexandre Morais se
antecipando o cumprimento de pena alegando uma possibilidade real de fuga do
ex-presidente, ser mais um movimento de uma guerra semiótica pela disputa do
controle da pauta midiática?
Isso porque, acompanhando as sucessões de manchetes e suas
guinadas de pautas (na semana passada, o tema era a fraude financeira do Banco
Master e a prisão do dono Daniel Vorcaro; e, nessa semana, a prisão preventiva
de Bolsonaro), estamos perdendo de vista uma disputa subterrânea pelo controle
da pauta midiática. Atuando para manter preservada a estrutura principal que
mantém o poder brasileiro – banca financeira e sua articulação no meio político
do centrão e do bolsonarismo.
Para começar, peço ao leitor assistir mais uma vez ao vídeo
divulgado sobre uma confissão de Bolsonaro aos policiais que foram a sua casa de
ter violado a tornozeleira eletrônica. Uma cândida, didática e atenciosa voz
feminina começa descrevendo o número de série do dispositivo. No tornozelo do
ex-presidente, a policial manipula enquanto calmamente Bolsonaro explica que
foi “ferro quente”.
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A voz calma da policial pede mais detalhamento demonstrando uma
educada curiosidade... “O Sr. Tentou puxar a pulseira também?”, pergunta num
tom parecido daquela voz de atendimento ao consumidor quando ligamos para a
provedora da Internet tentando explicar alguma dificuldade técnica de recepção
de sinal.
“Pulseira aparentemente intacta, mas o case violado”, descreve uma
cândida voz. Em nada condizente com uma situação tensa de policiais chegando numa
residência de madrugada pelo fato de o monitoramento ter detectado tentativa de
fuga de um réu condenado...
Há no vídeo uma evidente canastrice: a desconexão entre as imagens e áudio e a evidente situação tensa de um condenado que supostamente tencionava uma fuga espetacular.
Canastrice e o timing da irrupção do acontecimento, que sobressaltou jornalistas e apresentadores que tiveram que romper com a escala de descanso do final de semana em plena manhã de sábado, são características que apontam para um não-acontecimento – um pseudoevento construído para gerar um determinado efeito semiótico: a retomada do controle da agenda midiática.
Tudo pareceu um elaborado roteiro de criação de um
não-acontecimento para tirar das manchetes e do clima de opinião pública o
incômodo escândalo da liquidação do Banco Master e da investigação da PF que
levou à prisão do banqueiro fraudador. A inquietante possibilidade de a
operação policial gerar uma metástase que contaminasse outros sistemas, muito
além do sistema financeiro.
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Guerra pelo controle da pauta
Para o bolsonarismo, foi inusitado o efeito inverso do tarifaço de
Donald Trump, tão festejado pelo filho Eduardo Bolsonaro nos EUA e pelo boné
MAGA na cabeça do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas – além de não
render um esperado impacto macroeconômico às vésperas de ano eleitoral,
alimentou ainda mais o ciclo virtuoso da agenda governamental da defesa da
Democracia e da Soberania.
O massacre policial do governador Cláudio Castro no Rio e o decorrente
debate da PL do marco legal do combate ao crime organizado no Congresso assanhou
o jornalismo corporativo que nomeou o tema “segurança pública” como um suposto
fiel da balança eleitoral para 2026. Que começou a martelar o lendário clichê
sobre a inapetência da esquerda para enfrentar o tema da segurança pública.
O contra-ataque veio com a operação da PF envolvendo o esquema
fraudulento do Banco Master cujos fios da investigação, se puxados, poderiam
levar do campo empresarial ao político e até jurídico – agora que a Suprema
Corte terá de avaliar o pedido de habeas corpus solicitado pela defesa de
Vorcaro, além de outros recursos, fica evidente o conflito de interesses dos
ministros em eventos empresariais patrocinado pelo Banco Master.
De 2022 a 2024, o banqueiro Daniel Vorcaro financiou eventos
nacionais e internacionais que contaram com a presença da cúpula do Judiciário
brasileiro – clique aqui.
E não mais que de repente irrompe uma suspeita de tentativa
espetacular de fuga de um ex-presidente e réu condenado, num conveniente timing
ao final de uma semana que termina com o escândalo das fraudes do Banco Master
chegando às privatizações a toque de caixa de Tarcísio de Freitas em SP (clique aqui), com a Bloomberg
apontando prevaricação de Roberto Campos Neto quando era presidente do Banco
Central (clique aqui) e o beneplácito do
dinheiro público de fundos de pensão de governos estaduais bolsonaristas
aplicados em letras financeiras do Banco Master – clique aqui.
Esse é o verdadeiro terremoto, o das ligações perigosas que
possibilitam o fluxo de dinheiro do sistema financeiro para o sistema político
e judiciário.
E se Vorcaro cuspir os feijões?
Por isso os mais inquietos não são os seguidores vestidos de verde-amarelo do bolsonarismo, mas os intermediários políticos, os operadores das agências de investimento da Faria Lima e empresários. A ameaça do ecossistema financeiro perder a rede de proteção que o sistema político sempre montou para os negócios arriscados da banca financeira.
O vídeo de Flávio Bolsonaro convocando os bagrinhos verde-amarelos
para uma vigília de oração ao “senhor dos exércitos” em frente ao condomínio de
Bolsonaro e o cândido vídeo da policial federal manipulando com cuidado a tornozeleira
danificada na perna do réu acabaram provocando o efeito semiótico midiático
desejado: horas e horas de canais fechados de notícias com juristas, advogados e
criminalistas oferecendo prós, contras e alternativas jurídicas numa espiral
interpretativa que cria o conhecido Efeito Firehose: a criação de uma
espiral interpretativa até o momento em que a diferença entre verdade e mentira
desaparece. Para tudo permanecer na função performática: o barulho criado, a
confusão, o escândalo etc.
Deixando em segundo plano a liquidação do Banco Master e as
ligações perigosas do banqueiro-prisioneiro Daniel Vorcaro – e as possíveis
consequências de, numa possível delação premiada, Vorcaro começar a cuspir os
feijões...
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Cachoeira X Mensalão
Tamanha disputa da pauta midiática faz lembrar outra guerra
semiótica parecida: a disputa por espaço entre as coberturas do escândalo do
empresário contraventor Calinhos Cacheira e a do Mensalão em 2012.
Carlinhos Cachoeira era um empresário conhecido por diversos
escândalos envolvendo jogo ilegal, corrupção e lavagem de dinheiro, que
culminaram em várias operações policiais e em uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI). Seus esquemas criminosos se estendiam à corrupção de agentes
públicos e ao envolvimento com grandes construtoras, como a Delta, em contratos
governamentais.
Tal como no caso do banco Master, nitroglicerina pura!
Naquele ano, até o início do segundo semestre o foco dos veículos
como jornais “O Globo”, “Folha de São Paulo”, “O Estado de São Paulo” e de
revistas como “Veja”, “Isto É” e “Época” “estava concentrado nas repercussões
das denúncias envolvendo o contraventor Carlinhos Cachoeira. O julgamento do
chamado Mensalão ainda era pouco comentado”.
Com a proximidade das eleições municipais, esse foco midiático foi
invertido: quase nada de Cachoeira e exaustiva cobertura sobre o escândalo
envolvendo o Partido dos Trabalhadores. Cachoeira permanecia envolvido em
acusações, mas já não tinha seu rosto exposto por tanto tempo na TV, jornais,
revistas e sites, tampouco era comentado nas rádios.
Foi o destino do “Caso Cachoeira” quando os sistemas midiático,
político e financeiro anteviram o efeito metástase que a cobertura do escândalo
poderia provocar.
Lá em 2012, foco no julgamento do Mensalão. Hoje, foco na tornozeleira
chamuscada sob a voz gentil de uma policial federal.
Em encher o espaço midiático com juristas e criminalistas e suas
espirais interpretativas. E as capas dos jornalões com muitas caixa-altas: “BOLSONARO
PRESO”.
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terça-feira, novembro 25, 2025
Wilson Roberto Vieira Ferreira




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