A produção Netflix “Sombra Lunar” (In the Shadow of the Moon, 2019) é peculiar. Primeiro, que é impossível fazer uma análise sem incorrer em spoilers, pela sua natureza: reflexo do zeitgeist político atual de cismogênese. Segundo, porque o filme é um mush-up arriscado: imagine cruzar o filme “Seven” com o “Exterminador do Futuro”. Por isso, “Sombra Lunar” vai do típico trillher policial noir para a ficção científica. Em 1988, um policial, aspirante à detetive, depara-se com uma série de assassinatos estranhos e simultâneos. Enquanto sua esposa está na maternidade tendo sua filha. Fatos cujas consequências marcarão o restante da sua vida. Série de assassinatos que se repetirão a cada nove anos, acompanhando o ciclo da chamada “Lua sangrenta”. Quanto mais os ciclos se sucedem, mais profunda é a decida pela toca do coelho.
Sombra Lunar (In the Shadow of the Moon, 2019) é daqueles filmes impossíveis para este Cinegnose analisar sem incorrer em spoilers. Principalmente porque ele está conectado ao espírito do seu tempo: a vitória de Trump em 2016 (e a ascensão de um tipo bem particular de extrema-direita, a alt-right) nos EUA e no mundo, dando o ponto de partida para um tema recorrente no cinema e audiovisual dos últimos anos: a fratura social em guerras civis, da série Hand Maid’s Tale ao recente filme Guerra Civil.
Para começar, digamos que Sombra Lunar seja um curioso cruzamento de gêneros, que vai do filme Seven, passando pela atmosfera de um clássico policial noir, até chegarmos ao argumento de ficção científica ao estilo O Exterminador do Futuro. Um mush-up de gêneros que não termina bem, segundo a crítica especializada no momento quando a produção foi lançada.
Como pular de um filme policial sobre detetives que investigam os crimes de um assassino serial para o poço de ficção científica mais deslavado? Virando uma espécie de Exterminador do Futuro do bem? Ao invés das máquinas do futuro que querem matar o mocinho, aqui temos o inverso.
Claro, pelo zeitgeist marcada pela época pré-pandemia em que o filme foi produzido: segunda metade do governo Trump e a percepção de que a América cada vez mais se dividia – a crise da pandemia e a invasão do Capitólio no final só confirmaram isso.
Na parte na policial noir, Sombra Lunar possui muitos tropos do gênero: paisagens noturnas, detetives de sobretudo, a aridez da vida de um policial honesto, as frágeis fronteiras entre os sonhos da realização familiar e a dureza da rotina policial etc.
Mas é na parte da ficção científica que o diretor Jim Mikle perde a mão no equilíbrio de tons tão díspares. Embora ele tenha conseguido em filmes anteriores como We Are What We Are e Cold in July, aqui as coisas desandam. Um assassino em série “do bem” que emula, com os sinais invertidos, a máquina Arnold Schwarzenegger que vem para o passado para exterminar o herói do futuro.
Principalmente, quando os furos do roteiro desandam: se um assassino vem do futuro trazendo dispositivos mortais sofisticados (isótopos e uma seringa hightech), como os detetives colocam tudo em um saco de evidências sem se perguntarem o que aquelas coisas estão fazendo ali, em 1988?
Assim como os saltos no mush-up, a narrativa salta a cada nove anos: 1998, 1997, 2006 e assim por diante. Por que no final de cada período, temos a chamada “Lua de sangue” – a conjunção de um eclipse lunar com a fase da Lua cheia no momento quando o satélite está no ponto mais próximo do planeta. Momento perfeito para o salto no tempo, segundo um físico obscuro em 1988, mas cuja teoria impactará o futuro que já está repercutindo no passado, ou seja, o presente do físico.
A questão é que Sombra Lunar é tão conservador quanto os radicais extremistas que destruirão a América numa guerra fraticida: simplesmente ignora as implicações quânticas nas tentativas em melhorar o passado, isto é, exterminar toda a linhagem daqueles que serão responsáveis pela tragédia nacional futura.
Efeito borboleta, interpretação dos muitos mundos, as implicações teóricas da experiência do “gato de Schrödinger”, sobreposições quânticas etc. são conceitos da atual abordagem da viagem no tempo que Sombra Lunar solenemente ignora – Jim Mikle apenas considera o tempo como uma única flecha temporal. Ainda está preso a inconsistência lógica do “paradoxo do avô”.
Apenas dessa forma a lógica de Sombra Lunar pode funcionar.
O Filme - alerta de Spoilers à frente
A primeira cena é de 2024, uma breve provocação sobre um futuro repleto de janelas de escritório destruídas e ruas tomadas por escombros e caos ardente. Um estranha bandeira do EUA cai diante dessa cena, sugerindo um futuro politicamente trágico para o país.
Então saltamos para 1988. Boyd Holbrook interpreta Tom Lockhart, um policial da Filadélfia cuja vida muda em uma noite daquele ano. Pouco antes de sua esposa (Rachel Keller) entrar em trabalho de parto, Tom se depara com o caso mais estranho da história da cidade. Um motorista de ônibus, um pianista de concerto e um cozinheiro de boteco morrem exatamente ao mesmo tempo - seus cérebros literalmente se liquefazem, saindo de seus olhos, ouvidos e bocas. Lockhart e seu parceiro (Bokeem Woodbine) logo rastreiam uma mulher suspeita (“Rya” – Cleopatra Coleman), que parece saber muito sobre Tom, incluindo que sua esposa está prestes a ter uma menina. É quase como se eles já tivessem se conhecido antes.
Aparentemente ela morre atropelada por um trem após uma perseguição em uma estação de metrô.
Então avançamos para 1997, quando parece que um imitador está repetindo os mesmos crimes de nove anos antes. Mas e se não for? E se for a mesma pessoa de 1988, trazida de volta ao ciclo de nove anos da lua de sangue? A cada nove anos, Lockhart vai mais fundo na toca do coelho do caso que muda não apenas sua vida, mas o futuro de toda a nossa civilização.
O problema de Sombra Lunar é que na medida em que o tempo avança, o filme fica menos interessante porque rapidamente vamos respondendo às perguntas. Depois de Exterminador do Futuro, o enigma proposto pelo filme é facilmente solucionado pelo espectador, sem grandes plot twists – o pressuposto temporal linear do filme facilita as coisas.
Se a América futura será destruída por supremacistas brancos numa guerra civil fraticida, a solução aparentemente simples é: matar toda a linhagem familiar que pariu as lideranças desse movimento – matar os autores, antes que tenham a ideia.
Primeiro, no aspecto da atual abordagem da viagem no tempo no cinema e audiovisual, o argumento é muito simplista: matar pessoas no passado apenas criaria linhas de tempo alternativas, muitos mundos possíveis. Não conseguindo eliminar o problema: de qualquer forma, em alguns desses muitos mundos, a guerra civil ocorreria com resultados imprevisíveis.
Além do que tantas mortes certamente chamariam a atenção das autoridades em cada época. O que não ocorre: inexplicavelmente, os investigadores decidem fechar os casos, simplesmente colocando os indícios anômalos (objetos fora de época carregados por Rya) em sacos de evidências e esquecendo nos arquivos do departamento de polícia de Filadélfia.
Teoricamente, as mortes ocorreriam simultaneamente no presente (o assassinato pela injeção de um isótopo radioativo que liquefaz o cérebro da vítima) quanto no futuro – seus descendentes simplesmente desapareceriam. O que chamaria a atenção das autoridades.
Embora o filme proponha que suspendamos a descrença por uma questão de ficção convincente, Sombra Lunar tem um núcleo oco e frágil, que desmorona em uma análise mais detida, derrubando sua própria integridade fílmica junto com ele.
Porém, a virtude do filme é ser o reflexo do espírito de época dos nossos tempos: a recorrência de produções sobre o tema de uma guerra civil próxima no EUA, parece até ser uma elaborada estratégia de agenda setting: normalizar na opinião pública sobre um conflito supostamente inevitável.
Ficha Técnica |
Título: Sombra Lunar |
Diretor: Jim Mickle |
Roteiro: Gregory Weidman, Geoffrey Tock |
Elenco: Boyd Holbroock, Cleopatra Coleman, Bokeem Woodbine |
Produção: 42, Automatik Entertainment, Netflix |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2019 |
País: EUA |