Será mesmo um estádio lotado com 20 mil pessoas para assistir ao show de um ícone pop o melhor lugar para se prender um homem desconhecido? Para M. Night Shyamalan, sim! Todo roteiro ficcional faz um pacto de suspensão da incredulidade com o espectador. Através da verossimilhança. Mas “Armadilha” (Trap, 2024) força muito a barra – o FBI transforma um estádio em uma grande armadilha para capturar um notório serial killer. Com referências a Hitchcock e Brian De Palma, Shyamalan parece ter transformado o seu último filme em veículo para sua filha, cantora e compositora. Ainda assim, “Armadilha” suscita dois temas do século XXI: a transformação das celebridades em influencers e a ausência simbólica do pais pelo aumento do gap geracional.
Polêmicas em torno de Taylor Swift. Quem ela apoia, afinal: Trump ou Kamala? Seu silêncio está causando polêmica, depois de ter “ficado no lugar certo da História” e ter apoiado Biden em 2020 – P.S.: Parece que ela finalmente se decidiu e anunciou o apoio a Kamala...
Depois, a polêmica do cancelamento de seus shows em Viena pela ameaça de supostos atentados terroristas.
Certamente o século XXI inaugurou uma nova fase para os artistas pop e celebridades: ou viram influencers, ou tornam-se personagens híbridos que transitam entre o palco e os pitacos em temas mais midiáticos dos momentos.
Sintonizado com essa evolução, o cineasta N. Night Shyamalan encontrou o argumento para o seu novo filme Armadilha (Trap, 2024): um thriller no qual três quartos do filme passam num estádio lotado repleto de fãs adolescentes enlouquecidos pela artista pop chamada Lady Raven (Saleka, filha de Shyamalan) – explicitamente ecoando o fenômeno pop Taylor Swift.
Acompanhada pelo seu pai chamado Cooper (Josh Hartnett), que leva a filha para o show se esforça em compreender o glossário das gírias e expressões dos adolescentes, Riley (Ariel Donoghue) repete como um mantra ao longo das linhas de diálogo: “Pai, este é literalmente o melhor dia da minha vida”. Na verdade, um prêmio para sua filha pelas ótimas notas na escola. Então... como presente, o melhor lugar, sentados, diante do palco.
Mas algo de mal anda à espreita: um serial killer chamado “O Açougueiro”, que tem o péssimo hábito de sequestrar pessoas, escondê-las em bunkers para no final cortá-las em pedacinhos para o horror da opinião pública – e até dos policiais mais veteranos.
Então, como o título nos informa, o show de Lady Raven é uma imensa armadilha para prender o assassino serial. Com todas saídas cercadas por policiais, uma investigadora especializada nesse tipo de criminoso terá que encontrá-lo no meio de 20 mil espectadores que gritam freneticamente.
O filme nos faz lembrar alguns clássicos de Hitchcock (o nome da cantora e a ponta do diretor no filme são alguns exemplos) e, principalmente, a clássica sequência de um assassinato em uma luta de box em um ginásio lotado em Olhos de Serpente (1998), de Brian de Palma.
Um pai de meia idade levando sua filha ao show de um ícone pop, imergindo na cultura pop adolescente e tentando acompanhar o entusiasmo de Ryan. Aparentemente a narrativa clássica do abismo geracional.
Shyamalan começa, então, a acumular uma série de temas: do abismo geracional passa para um abismo ainda maior. Ao perceber o cerco policial no entorno do show, o pai começa a ficar mais tenso e disperso. “Pai, por que você está tão estranho?” é uma questão que Ryan repete para o pai que tenta manter o foco na felicidade da filha.
Talvez a filha não conheça verdadeiramente quem é seu pai – parece que tudo ali na verdade não gira em torno de Lady Raven. Mas em torno de Cooper, que se sente cada vez mais como um animal acuado que tentará fugir do cerco.
Para além do gap geracional, há um gap ontológico: Cooper vive uma vida dupla como um atencioso pai de uma família em um típico subúrbio de classe média e como um implacável assassino em série com um histórico traumático de relação abusiva materna – transformou culpas e traumas num impulso assassino para tentar se livrar do fantasma da mãe.
É um tema sociológico clássico: como a cultura das celebridades um sintoma da ausência simbólica dos pais – o ego ideal não é mais oferecido pela família, mas pelas celebridades promovida pela indústria do entretenimento. Como conceituava David Riesman, como o ego intra-dirigido familiar é substituído pelo alter-dirigido da sociedade de massas – leia RIESMAN, David, A Multidão Solitária.
No caso de Ryan e Cooper a ausência é mais do que simbólica – e através da própria banalidade do mal
Esse é apena um dos temas que se acumulam em Armadilha.
O Filme
Armadilha abre com a ansiosa Ryan, acompanhada de seu pai, chegando ao estádio para o show de Lady Raven – uma estrela pop moldada em alguém como Taylor Swift.
Logo após a chegada, e com o mínimo de desenvolvimento do personagem, Cooper percebe uma forte presença policial no local, incluindo homens fortemente armados em todas as portas. Através de um breve ato de gentileza, ele ganha a confiança de um vendedor de camisetas promocionais (Jonathan Langdon) que revela o segredo restrito somente aos funcionários - os policiais e os federais estão lá porque sabem que um notório assassino em série chamado “O Açougueiro” está no prédio. E Cooper é esse homem.
Ele é a própria encarnação da banalidade do mal: enquanto deixa sua filha extasiada com Lady Reaven, Cooper vai ao banheiro para acompanhar no celular pela internet sua nova vítima, presa em algum bunker em lugar desconhecido. Em pânico aguardando o seu algoz.
Riley está em êxtase por estar num dos melhores lugares do estádio diante do seu ícone pop favorito. A atenção da adolescente está no palco. E o do espectador está no pai dela, que está tendo uma dificuldade visível para se concentrar no show. Ele está cronometrando as câmeras, as saídas, o número incomum de policiais murmurando em seus walkie-talkie.
O plano do FBI é parar todos os homens que saem do prédio e basicamente para erem inqueridos pela Dra. Grant (Hayley Mills), uma psiquiatra forense que tem o perfil genérico físico e psicológico do assassino.
Aqui Shyamalan cobra do espectador um esforço de suspensão da incredulidade – será mesmo um estádio lotado com 20 mil pessoas o melhor lugar para se prender um homem desconhecido? É uma premissa inverossímil que obrigatoriamente temos que compactuar com o diretor. Em nome do entretenimento.
Por outro lado, há uma energia inegavelmente única em um show para uma grande estrela pop, um lugar onde as pessoas gritam (geralmente com alegria), a iluminação pode ser imprevisível e alguém na multidão pode não ser tudo o que parece ser. É um cenário inteligente para um thriller, e onde a maior parte de Armadilha se desenrola.
Por isso, há duas inegáveis inspirações em Shyamalan no trabalho com as câmeras e enquadramentos nas sequências do show no estádio: Hitchcock e De Palma.
Na medida em que Armadilha avança, vamos entrando na cabeça de Cooper: as motivações, traumas e fantasmas.
Mas continuamente Shyamalan cobra de nós a suspensão da incredulidade, pela maneira como vamos descobrindo que até a estrela pop Lady Raven participa do plano do FBI para prender o serial killer – imagine Taylor Swift participando da caça aos terroristas islâmicos que planejavam explodir seus shows em Viena!
Para chegarmos ao ápice em que a rainha pop (presa num banheiro e ameaçada pelo assassino), ao invés de ligar para a polícia, conecta o Instagram Live para, com a ajuda dos fãs, encontrar o bunker em que a última vítima de Cooper se encontra preso.
A sensação geral que temos ao final é que participamos de uma espécie de karaokê de Hitchcock e De Palma. Nunca conseguimos ficar completamente dentro das premissas de Armadilha.
Todo roteiro de ficção para dar certo depende desse pacto entre as premissas e o espectador: “sei que é tudo mentira, mas vamos fazer de conta que é verdade”. Para acontecer isso, é necessária a verossimilhança para estabelecer o pacto. É o que falta em Armadilha.
Às vezes ficamos pensando se o filme foi apenas um veículo para promover a própria filha do diretor, Saleka Shyamalan, cantora e compositora.
Ou, pela ascendência indiana do diretor, fez algum tipo de paródia dos filmes de Bollywood – filmes veículos para os cantores pop nacionais, com verdadeiros vídeo clipes inseridos arbitrariamente dentro dos filmes.
Ficha Técnica |
Título: Armadilha |
Diretor: M. Night Shyamalan |
Roteiro: M. Night Shyamalan |
Elenco: Josh Hartnett, Ariel Donoghue, Saleka Shyamalan, |
Produção: Blinding Edge Pictures |
Distribuição: Warner Bros. Pictures |
Ano: 2024 |
País: EUA/Canadá |