O que deveria ser uma operação psicológica de retomada do controle da agenda política, transformou-se numa crise tanto de comunicação como política, que poderá render efeitos exponenciais – a não ser que o Governo transforme a visita à China numa oportunidade para retomada de pauta. O modus operandi é previsível e recorrente: diante do debate econômico (juros, independência do BC, desenvolvimento etc.) PF e lavajatismo preparavam-se para desfechar uma operação para retomada de agenda: a volta da República de Curitiba, dessa vez não mais para combater a corrupção, mas o crime organizado – fabricar conexões entre PT e PCC, tese criada pelo Partido Militar, pelo menos desde 2017: o suposto projeto da facção tornar-se um partido político ao estilo das FARC. Mas a fala infeliz de Lula numa exclusiva a um site progressista e as cabeças batendo na estratégia de comunicação do Governo criam uma grave suspeita: Lula tem o governo, mas não o Estado.
Os bons tempos voltaram!
Infográficos em telejornais destacando frases da ordem de prisão da juíza Gabriela Hardt brilhando na tela.
O apresentador Cesar Tralli, da TV Globo e Globo News, entre a cara de pôquer e um sorrisinho no canto dos lábios enaltecendo seus contados exclusivos por whatsapp na procuradoria pública.
A indefectível expressão “policiais nas ruas” mostrando operação da PF cumprindo mandados de prisão, busca e apreensão – roupas pretas, armas grandes e reluzentes, suspeitos sendo metidos em camburões...
O show das meganhagens voltou!
E até o ex-juiz da Lava Jato, até então inexpressivo e esquecido cumprindo seu insípido mandato como senador, Sérgio Moro, de repente volta às telas e primeiras páginas de jornais. Um retorno meio canhestro, não mais como protagonista, mas como suposta vítima de um esquema tão mirabolante para matá-lo que deixaria o chefão do cartel de drogas mexicano Lalo Salamanca, da série Better Call Saul, com inveja.
Até a última quarta-feira, o Governo estava conseguindo uma rara vitória desde o golpe de 2016: numa pauta midiática dominada por temas como corrupção (Lava Jato), a meganhagem das intermináveis operações da PF e ilações midiáticas diárias sobre decisões de juízes e desembargadores, Lula conseguiu impor a agenda da crítica aos juros altos e o questionamento da legitimidade da independência do Banco Central.
Com o seminário “Estratégias do Desenvolvimento Sustentável para o século XXI”, o BNDES promoveu o retorno da pauta econômica em alto nível na grande mídia, com debates em torno das críticas à racionalidade da taxa Selic em 13.75% feitas pelo prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz e pelo economista de renome mundial Jeffrey Sachs.
Finalmente a política econômica estava voltando à ordem do dia, sobrepondo-se à judicialização e meganhagem que desde 2016 serviu de estratégia diversionista para esconder da opinião pública as reformas da previdência, trabalhista e a jabuticaba ultraortodoxa da “ponte para o futuro”.
Até tudo ser revertido nessa semana, com o judicialismo + meganhagem voltando à cena e atropelar um debate que ganhava cada vez mais força.
O timing das polícias numa neocolônia digital
Desde o golpe de 2016 aprendemos duas coisas: primeiro, que foram traçadas duas linhas vermelhas, uma diante do Banco central autônomo e a outra na frente da Petrobrás. Com o seguinte alerta: não mexam com a política do capitalismo financeiro e nem com os dividendos dos acionistas da estatal do petróleo – duas frentes inter-relacionadas no processo de financeirização da neocolônia digital brasileira.
Meganhagem e... uma camiseta vermelha |
E segundo, que as operações da Polícia Federal e Polícia Civil têm um timing midiático preciso. Por exemplo, no dia D da Reforma da Previdência (aprovação do texto da reforma na Câmara dos Deputados), o debate foi diluído por uma megaoperação da Polícia Civil por toda País caçando mais de três mil “foragidos da Justiça” – clique aqui. Ou o timing da ação da Polícia Federal na reta final segundo turno da eleição presidencial no ano passado, poucas horas antes do debate da Band (que repercutiria o sincericídio de Paulo Guedes quando falou em “desindexar” o salário-mínimo) cumprindo ordem de prisão contra o ex-deputado Roberto Jefferson com um show bizarro envolvendo tiros, granadas e a participação especial do “padre” Kelmon.
A Operação denominada “Sequaz” da PF (este departamento deve realizar intensas brainstormings para criar nomes para tantas operações...), nesta quarta-feira (22/03), repete o mesmo modus operandi. A operação para desarticular o plano do PCC de sequestrar e matar autoridades, entre elas o ex-juiz e senador Sérgio Moro teve o costumeiro timing, no caso, de precisão milimétrica.
No dia anterior, o presidente Lula tinha dado um “deslize” numa entrevista aos jornalistas do site progressista Brasil 247 (“só vai estar tudo bem quando eu fuder esse Moro”, frase tirada depois de contexto – na verdade era a reposta de Lula dava a um procurador que o visitava na prisão que perguntava: “Lula, está tudo bem?”).
O timing certamente dá no que pensar. Principalmente quando sabemos que há tempos o partido militar e seus operadores disseminam o roax de que o PCC e o PT veem trabalhando muito próximo - Denis Rosenfield, conselheiro de Michel Temer e próximo do general Sérgio Etchegoyen, comparava o PT ao PCC (clique aqui); ou em 2017, a “equipe DefesaNet” (portal de notícias especializado defesa, tecnologia e assuntos militares) afirmava que PCC seguiria o caminhos das FARC, transformando-se em partido político com envolvimento do PT e das esquerdas – clique aqui.
Até então o inexpressivo e provinciano Sérgio Moro estava esquecido em um mandato de senador que prometia ser tão insípido quanto foi sua passagem no Ministério da Justiça – ejetado depois por Bolsonaro.
Deslize de Lula antecipou a Operação da PF? |
O deslize, o timing e a armação
O deslize de Lula e, poucas horas depois, a Operação desfechada pela PF, teve a grande repercussão exclusivamente pela presença de Moro entre os alvos do PCC para sequestros e assassinatos.
Novamente uma questão de timing. A PF investigava a quadrilha há alguns meses e exigia sigilo máximo sobre a decisão. Não obstante, provocada pela declaração posterior de Lula de que tudo seria “mais uma armação de Moro”, a juíza Gabriela Hardt, cuja decisão respaldou a operação da PF, decidiu levantar o sigilo. Como sempre, desde a Lava Jato, com o foco midiático.
Também como sempre tudo começa com uma delação de uma testemunha misteriosa protegida pelo Ministério Público de São Paulo – um “dissidente do PCC” (??) e “jurado de morte” (???). O delator entregou provas que acabaram arrastando Moro para o enredo.
Esse humilde blogueiro não vai entrar em detalhes, mas vai ficar apenas nas canastrices: a primeira, um print de troca de mensagens de um casal apaixonado onde, numa incrível ingenuidade (ou conveniência para a PF), detalham um pequeno dicionário de codinomes, onde “tokio” significava “Moro” e “Flamengo” significava “sequestro”... “HOW CONVEEEEENIENT”, diria a Church Lady, personagem impagável do programa humorístico americano Saturday Night Live.
Um didatismo comovente para fazer a festa de “colonistas” e material para os criativos infográficos dos telejornais da grande mídia.
E segundo, como a decisão da juíza (responsável pela condenação de Lula – na base do recorta-e-cola de decisão anterior de Moro – no caso do sítio de Atibaia), nas entrelinhas, dá continuidade a operação psicológica do Partido Militar sobre uma suposta conexão entre Lula e PCC. Para ela, o ex-juiz chamou a atenção do PCC “pelo combate à corrupção à frente da Operação Lava Jato” – será que a prisão de Lula teria acendido o sinal amarelo entre as “sintonias” do PCC. E a animosidade teria aumentado com o desempenho de Moro no Ministério da Justiça do governo Bolsonaro.
HOW CONVEEEEENIENT!!!! |
Ora, para além do tautológico “Pacote Anticrime” (tornar “crime” coisas já tipificadas como tal, pegadinha para esconder a maldade principal: o “excludente de ilicitude”), Moro no Ministério nada mais fez do que, por obrigação de Lei, executar a logística definida anteriormente à sua posse: transferência do chefe da facção e a proibição de visitas íntimas.
Não faz sentido uma organização criminosa com vocação empresarial gastar R$ 3 milhões em investigação, espionagem, arapongagem etc. para sequestrar ou matar uma figura tão insignificante que a grande mídia tenta ressuscitar como uma espécie de kryptonita de Lula.
Matando dois coelhos com uma cajadada
Desde o ano passado a PF investigava a facção. Mas a juíza Gabriela Hardt tomou a decisão para a Operação Sequaz no sistema da Justiça Federal do Paraná às 11h49, no dia 22/03, sincronicamente minutos depois que perfis nas redes sociais começaram a comentar o deslize de Lula na entrevista ao Brasil 247.
Às 12h47 os mandados de prisão já estavam assinados, mas não eram de conhecimento. Menos para Sérgio Moro, que segundo o portal Uol já sabia das investigações há mais de um mês – clique aqui. Tanto que às 14h33, Moro já estava dando entrevista à CNN acusando que a declaração de Lula colocava a vida dele e da sua família em risco.
Lula coloca sua vida em risco... para alguns minutos depois ser revelado que o PCC também tinha um plano para matá-lo!
Na opinião desse humilde blogueiro, o modus operandi da PF apontava para outra coisa e acabou matando dois coelhos com uma cajadada.
A bombástica operação para desbaratar um plano nacional para matar autoridades e servidores públicos mirava desbancar a agenda da discussão econômica monopolizada pelo governo, desde que Lula começou a bater forte no “Bob Fields Neto” do BC, colocando na pauta a questão da irracionalidade da alta taxa de juros – porém, racional à financeirização do capitalismo, confirmado pela elevação da taxa referencial de juros nos EUA e no Reino Unido nessa semana.
A juíza e seu parceiro |
Com o fim da Operação Lava Jato, o discurso do combate à corrupção perdeu definitivamente o apelo popular. Como Moro é uma estrela sem luz própria, precisava de um empurrãozinho para impor uma nova agenda: daqui para frente será a do combate ao crime organizado – uma deixa para fuçar, armar ou fabricar alguma conexão de facções criminosas com a classe política e, principalmente, Lula e o PT.
De toda essa psyOp que o deslize de Lula talvez tenha sido o gatilho que antecipou uma operação já programada, ficam alguns pontos:
(a) Em política não há coincidências, mas sincronismos. A sugestão de Lula de que tudo seria uma “armação de Moro” certamente baseia-se numa dúvida justificada: a sequência Sérgio Moro-Gabriela Hardt-PF de Cascavel-Ministério Público de São Paulo é praticamente uma semiose – uma associação por afinidade conceitual, semântica, histórica e ideológica. Isto é, um evento sincrônico, com uma sucessão de recorrências.
(b) Mas isso cria uma bomba-relógio: se Lula provar que foi uma armação, então terá que demitir a cúpula da PF por ter participado dessa “armação” e demitir imediatamente Flávio Dino, Ministro da Justiça, por que ele declarou na quarta-feira que já sabia e acompanhava as ameaças a Moro há pelo menos 45 dias.
(c) Por outro lado, pode ser que Flávio Dino, pego de surpresa com a ação da PF do Paraná, tentou reverter a situação, apropriando-se do discurso do oponente, para trocar os sinais: na verdade, foi o governo Lula que teria protegido o senador, um inimigo político. O governo teria agido republicanamente.
(d) Se isso for verdade, seria a confirmação de um sério problema: Lula tem o Governo, mas não o Estado – militares e lavajatistas continuam na máquina do Estado, conspirando contra o Governo. No caso dos lavajatistas, principalmente depois que o juiz Eduardo Fernando Appio (ex-amigo e crítico dos métodos de Moro) assumiu a 13a Vara Federal de Curitiba.
(e) Em todo o imbróglio, mais uma vez o PT mostra como bate cabeça na questão da comunicação. Em primeiro lugar, entrevistas presidenciais devem ser eventos formais, coletivas para a imprensa. Seja para a grande mídia ou mídia progressista. Para este Cinegnose, a exclusiva ao Brasil 247 foi uma verdadeira baixa de guarda para a estratégia de comunicação governamental. Principalmente em se tratando de Lula (com um estilo de discurso, por assim dizer, “espontâneo”), numa entrevista como aquela o presidente se solta como estivesse em um ambiente informal. “Tira isso daí que eu falei”, disse Lula após a fala fatal que certamente serviu de gatilho para antecipar uma operação já programada na sede da sedição lavajatista, no Paraná.
O modus operandi do oponente já é conhecido e recorrente. Caberia à Secom já ter definido um protocolo para crises como essas.
Isso evitaria, por exemplo, a potencial crise já estabelecida entre Flávio Dino e Lula: se a operação já corria há algum tempo e já era conhecida pelo ministro da Justiça, era evidente que seria explorada, em algum ponto no futuro, pelo ex-juiz – principalmente se ele próprio já soubesse da cronologia da operação, justa à sua parceira, a juíza Gabriela Hardt.
Enquanto Flávio Dino veio no primeiro momento à público, no afogadilho, dizer que tudo foi republicano, do outro lado o presidente desconfia de armação.
E agora, a grande mídia se delicia com o banquete servido, como sempre, de bandeja para ela.