“Mais do que a morte, o que mais tememos é a solidão”, dizia Freud em 1921. O século XX teria criado a “multidão solitária”, vivendo o mal-estar da alienação. Porém, era ainda uma sociedade presencial, substituída no século XXI pela comunicação espectral, na qual a solidão se transformou em incomunicabilidade. Paradoxalmente, na era das comunicações globais em tempo real. O filme sul-coreano “Aloners” (2021) faz um perfeito diagnóstico dessa nova forma de solidão moderna onde, hipnotizada pela rotina mecânica do dia a dia, fezemos tudo para criar bolhas solipsistas. “Aloners” acompanha uma jovem que trabalha em um call center – o típico lugar sem alma, a própria expressão do paradoxo tecnológico entre a comunicação espectral e a incomunicabilidade. E como os fantasmas, imaginários e às vezes até reais, vão aos poucos furando a sua bolha de isolamento e revelando sua condição de alienação.
O sentido clássico dado à solidão está na tese de Freud que salta das páginas de “Psicologia de Massas e Análise do Ego”, de 1921: mais do que a morte, o que a espécie humana mais teme é a solidão. Para Freud, o que uniria uma sociedade não seria o poder hipnótico de um líder ou a maquinação da propaganda política. Mais do que isso, é o “amor a eles”, aos outros que formam seja a massa, seja um grupo.
David Riesman (1909-2002), no livro clássico “A Multidão Solitária”, de 1950, confirmava essa tese freudiana no campo sociológico ao perceber a ascensão das personalidades “alter-dirigidas” (orientadas quase exclusivamente para o entorno social). Como Riesman escreveu, “Mais do que ser estimado, a personalidade Ater-dirigida quer ser amada, não necessariamente para controlar os outros, mas para se relacionar com elas”. Esse “amor” aos outros estaria na base dos movimentos de massas: a busca do amor faria o indivíduo seguir aquilo que ele acha que a maioria estaria fazendo ou pensando.
Porém, tanto Freud como Riesman ainda pensavam a questão em sociedades cujas relações majoritárias eram do tipo face-a-face, presencial, relacional. Riesman ainda viveu para testemunhar a ascensão da “comunicação espectral” na qual o outro é substituído pela mediação de espectros: o rosto é substituído pelo avatar, juntamos as frases do outro e simulamos sua presença através de informações que reunimos na memória e a intensidade da vivência não é mais através dos sentidos presenciais (audição, tato, olfato etc.) – é substituída pela quantidade de redes nas quais participamos (“rede oscilatória”) e como o nosso ego passa a ser um nó de relações – Leia MARCONDES FILHO, Ciro. O Princípio da Razão Durante: O conceito de comunicação e a epistemologia metapórica, Paulus, 2010.
O que acabou criando o paradoxo da incomunicabilidade: nunca uma tecnologia foi capaz de unir e ao mesmo tempo dividir pela incomunicabilidade espectral – por trás da simulação presencial criada pelos dispositivos móveis e comunicação em tempo real, oculta-se uma situação em que a solidão clássica foi substituída pela incomunicabilidade. Em última instância, emissores e receptores não são mais rostos, mas espectros formados por pixels e bytes.
Incomunicabilidade que muitas vezes acaba criando uma zona de conforto: aumenta produtividade no trabalho e passamos a viver confortáveis em bolhas solipsistas. Substituindo as clássicas sensações de alienação e estranhamento da antiga solidão.
O filme sul-coreano Aloners (2021), a estreia da roteirista e diretora Hong Sung-eun, é um perfeito diagnóstico dessa nova forma de solidão moderna: a incomunicabilidade. Também é a estreia, após vários papéis na TV, da atriz Gong Seung-yeon, que interpreta uma jovem de 20 anos que trabalha em um call center de uma empresa de cartão de crédito – um típico lugar sem alma, a própria expressão do paradoxo tecnológico entre a comunicação espectral e a incomunicabilidade. Cujo slogan corporativo “Sua Vida Feliz!”, estampado na parede da empresa, tenta florear a miséria psíquica com a retórica motivacional.
Uma protagonista tão solitária e incomunicável que acabou criando sua bolha existencial confortável, tornando-se eficiente, com auto-rendimento que a torna a favorita da gerente. Mora sozinha, almoça sozinha, trabalha só em sua estação de trabalho na empresa, sem amigos, além de ter se distanciado dos pais. Enquanto se isola do mundo através dos inseparáveis fones de ouvido e Iphone.
Alienação e estranhamento ou medo da solidão não são mais diagnósticos possíveis para ela e sua geração millennial. Aloners faz uma observação aguda, metódica e detalhista dessa nova condição da incomunicabilidade tecnológica, a nova figuração da velha solidão humana.
O Filme
Jina (Gong Seung-yeon) é supereficiente em seu trabalho e aparentemente sem distrações – até mesmo não afetada – pela morte muito recente de sua mãe. Jina mergulha em seu celular e fones de ouvido quando não está lidando com as necessidades de clientes rabugentos, exigentes e às vezes simplesmente perturbados. Enquanto isso, ela está de olho em seu pai de luto (Park Jeong-hak) – embora de uma distância muito fria – observando-o na webcam que ela instalou secretamente no apartamento de seus pais há muito divorciados, mas depois reunidos. Sua mãe morreu recentemente e seu pai organiza na sua casa um serviço religioso em homenagem à esposa falecida.
Em seu pequeno apartamento, Jina assiste TV e consome mecanicamente refeições no micro-ondas em seu quarto claustrofobicamente estéril, e faz questão de manter distância de todos – comendo sozinha na hora do almoço e evitando um vizinho do sexo masculino (Kim Mo-beom) que costuma ser encontrado fumando na sacada de seu bloco de apartamentos.
Surpresa, descobre que o jovem era outra pessoa solitária como ela quando, no único toque surreal do filme, ele foi esmagado até a morte por uma pilha de revistas e fitas pornográficas que caíram sobre ele no seu apartamento.
Enquanto isso, a chefe estressada do call center (numa caracterização bem ácida de Kim Hannah) anuncia que Jina está encarregada no treinamento de uma nova funcionária do escritório – uma jovem ingênua chamada Sujin (Jung Da-eun), cuja simpatia ansiosa para com Jina não recebe uma recepção calorosa – longe de qualquer convívio social, tenta recusar uma situação de contato pessoal com uma estranha. Mas a gerente é direta: ou isso, ou a demissão.
O problema é que o talento de Sujin e, profissionalmente, sua falha fatal, acaba por ser sua empatia com clientes tão difíceis como um homem perturbado que afirma ter construído uma máquina do tempo para levá-lo de volta a 2002 e quer saber se seu cartão de crédito funcionará no passado. Enquanto a eficiência de Jina é exatamente em ser o oposto de Sujin – por isso é a campeã em gastar menos tempo conversando com os clientes, seguindo à risca o protocolo da empresa.
Aloners nos apresenta à lógica do capitalismo global e o sentido do desenvolvimento da comunicação espectral: aumentar a produtividade das comunicações até chegar ao seu vanish point: a incomunicabilidade.
A tal ponto que em dado momento, Aloners sugere se transformar numa estória sobre fantasmas, quando Jina acredita ter visto o vizinho fumando na sacada do seu bloco após ser dado como morto. Ou quando descobre um cartão de memória com as imagens de web cam mostrando os momentos finais da sua mãe antes de ser encontrada morta pelo seu pai.
O centro do filme está na performance cativantemente evasiva das ações de Jina, sugerindo ao mesmo tempo uma mulher hipnotizada pela rotina mecânica do dia a dia e alguém que fez tudo ao seu alcance para erguer barreiras entre o mundo e ela mesma.
A grande questão de Aloners é essa: até onde vai essa situação aparentemente confortável da incomunicabilidade, que reduz o outro ao espectro, negando a alteridade? Em que momento o mal-estar da alienação e estranhamento pode irromper, estourando a bolha solipsista tecnológica?
O filme aponta para uma certa moral, indicando medidas necessárias para resistir ao efeito de desgaste da alma do capitalismo urbano contemporâneo: a necessidade de voltarmos a nos conectarmos presencialmente com estranhos, cuidar da própria família e, também, não negligenciar os mortos – participar dos rituais que homenageia os mortos, tornando-os vivos em nossas memórias.
Às vezes no filme a mensagem é passada para o espectador de forma direta. Como, por exemplo, em uma notícia que ouvimos de passagem na TV do apartamento de Jina sobre “mais e mais pessoas não conseguem encontrar seus lugares na sociedade”.
No entanto, o final aberto, discreto e silencioso passa aquilo que poderia ser o início da transformação da protagonista: quando finalmente emerge a necessidade de conexão com a realidade trazida pela dor da alienação.
Ficha Técnica |
Título: Aloners |
Diretor: Hong Sun-eun |
Roteiro: Hong Sun-eun |
Elenco: Gong Seung-yeon, Park Jeong-hak, Jung Da-eun, Kim Hannah |
Produção: KAFA (Academia Coreana de Artes Cinematográficas |
Distribuição: The Coup, MUBI |
Ano: 2021 |
País: Finlândia, Suécia |