O século XX construiu a sociedade do espetáculo e a cultura das celebridades, na qual as estrelas do cinema e TV eram representados como fossem deuses do Olimpo, divindades distantes, porém, modelos de felicidade para os mortais – fãs que se engalfinhavam por autógrafos ou, os mais ousados, roubavam da celebridade algum souvenir que transferisse magicamente para eles um quantum do sucesso midiático.
De pinups como Marylin Monroe a galãs como Brad Pitt, destacava-se o sorriso estereotipado, o look photoshopado e revistas sobre ricos e famosos mostrando o cotidiano das celebridades entre festas, piscinas e residências suntuosas. Ao distinto publico restava amar à distância ou projetar nelas seus desejos, sonhos; ou ressentimentos e pesadelos – como demonstrou a trágica morte de John Lennon, assassinado por uma fã em 1980.
O século XXI trouxe as tecnologias de convergência e dispositivos móveis e uma mudança da natureza das celebridades: se no passado, o ser conhecido para ser feliz se concentrava nas mídias de massas e no mundo restrito dos olimpianos, agora, ser conhecido para ser feliz está ao alcance de cada Iphone, tablet ou laptop – o número de seguidores no Instagram, Twitter ou “amigos” no Facebook cada vez mais se torna a medida da própria identidade do indivíduo. Na qual a vida real acabou misturando-se com categorias como “fama”, “sucesso”, “desportividade”, “entretenimento”, “escapismo” etc.
E a busca dessa celebrização de si mesmo implica em um novo ascetismo, dessa vez mundano: esforço diário em cultivar uma rede de “amigos”, esforços logísticos em criar acontecimentos que atraiam a atenção de todos (e se possível da própria grande mídia), dedicação e esforço em focar seu pensamento ao sucesso, capacidade em desprezar fatos reais que entrem em contradição com a imagem que o indivíduo quer criar para todos etc. Tudo isso cria uma luta brutal contra si mesmo, em negar a própria solidão e insatisfação através da hiperatividade voltada ao mundo exterior.
A co-produção sueco-polonesa Sweat (2021), dirigida pelo sueco Magnus von Horn, talvez seja a produção mais afiada, perspicaz e, em última análise, implacável sobre a vida sob o jugo das mídias sociais. O filme acompanha uma bem-sucedida influenciadora digital no mercado de fitness que comercializa um tipo de feminilidade aspiracional: vende a ideia de que qualquer pode se parecer com ela com algumas flexões e shakes de proteína de seus patrocinadores.
Com um deslumbrante sorriso permanente fazendo parecer uma boneca Barbie viva, Sylwia vive nos bastidores esse ascetismo mundano que corresponderia a uma espécie de uberização do ego, como discutido em postagem anterior sobre o filme Spree (clique aqui): ao contrário das celebridades do século XX, o custo físico e psíquico da celebridade digital (o “influencer”) é de outra natureza – como um empreendedor, deve arcar com todos os esforços de por conta própria ampliar seus 600 mil seguidores no Instagram, transformando a própria vida cotidiana em lives excruciantes.
Durante a maior parte do filme, podemos sentir que Sylwia está em um precipício – mesmo que nem sempre tenhamos certeza do que deve vir a seguir. A perfeição de seu físico não pode superar o vazio de sua auto-obsessão. Apesar da personalidade brilhante que ela retrata online, há sempre uma tristeza por trás de seus olhos – nada mais do que sua confissão com lágrimas nos olhos pelo seu desejo de ser amada por alguém, a certa altura da narrativa.
A grande virtude didática de Sweat é apresentar didaticamente o auto-sacrifício e a dor por trás da estética selfie das novas celebridades. O fenômeno do ascetismo mundano.
O Filme
A cena inicial engana o espectador: somos apresentados a Sylvia Zajac (Magdalena Kolenisk) com uma energia borbulhante fazendo uma de suas aulas públicas de aeróbica em um shopping center, acompanhada por um séquito de fãs. Com um longo rabo de cavalo loiro, equipamento atlético neon rosa e um deslumbrante sorriso ela demonstra alguns movimentos fáceis e cospe frases motivacionais concisas, mas vazias - “Trabalhe com o corpo que você tem, não com o que você quer ter”, proclama. Ela dá um tapinha nas costas de uma mulher e diz alegremente que “você poderia me substituir”.
Uma piada cruel. Por trás dessa feminilidade aspiracional que vende a imagem que qualquer um pode se parecer com ela, esconde um tipo de trabalho punitivo que está fazendo com ela mesma nos bastidores.
Depois dessa abertura alegre, energética e com alto astral, acompanhamos a sua vida cotidiana. A câmera frenética, muitas vezes portátil, examina Sylwia em close-up extremo, olhando para ela de lado ou acompanhando-a por trás. Ela é linda, adorada e sozinha. Ela não tem amigos ou sexo ou sequer pode acompanhar a família em uma simples festa de aniversário – ela tem sua própria comida, regrada, e jamais pode comer uma simples fatia de bolo.
No entanto, o filme não é uma simples paródia; mostra compaixão por Sylwia e sua busca por autodefinição – por sua solidão, seu trabalho penoso e seu esforço físico.
Na única vez em que ela tenta superar a lacuna entre a autenticidade da vida online e a estética selfie, ela é repreendida pelo seu agente: ela publica um vídeo em que ela chora por ser solteira, solitária e não ter ninguém para compartilhar seus sentimentos. O vídeo viraliza, ameaçando o patrocínio da “Nutrição Olimpo”. “Eles estão preocupados em associar o produto com esse tipo de contexto”, repreende o agente que está tentando encaixá-la em um programa matinal de TV.
Ao longo do filme acompanhamos a sua crescente solidão. Principalmente porque sua imagem de felicidade e energia transbordantes impede que ela consiga compartilhar algum tipo de emoção diferente.
Inclusive com a própria família, como percebemos na cena da dolorosa visita que Sylvia faz à pequena festa de aniversário da sua mãe (Alexandra Konieczna). Acompanhamos como a imagem egocêntrica sufoca a própria Sylwia: a família coloca na TV um DVD das aulas de aeróbica dela. E ninguém dá ouvidos às queixas dela sobre o outro lado “sombrio” da vida de uma influenciadora digital – como a sua imagem atrapalha a vida amorosa e a negligência emocional é remediada com o seu trabalho intenso.
E desse “lado sombrio” faz parte um stalker: um fã obcecado que fica parado dentro de um carro em frente ao condomínio em que mora. E que às vezes se masturba escandalosamente ao vê-la. Ao lado da sequência em que Sylvia é abordada por uma fã que se abre com sobre um aborto espontâneo, ela percebe que está vivendo a fase terminal dessa dissociação, mercantilização e despersonalização que as redes sociais causam.
Sylvia sente que não está emocionalmente preparada para lidar com isso. A disciplina e autocontrole do corpo e espírito exigidos pela cultura da celebridade digital (o ascetismo mundano) levam ela, ao final do filme, fazer uma confissão crua e não filtrada diante das câmeras de TV: “pessoas fracas e patéticas são as mais bonitas”.
Diante dela, os fãs expõem suas vulnerabilidades, emoções e fraquezas. Algo negado para ela, para manter os fãs retornando e pedindo por mais.
A grande virtude de Sweat é figurar essa nova cultura das celebridades digitais de uma forma não moralista ou inquisidora. Mostra Sylwia sempre oscilando entre o artifício e a vulnerabilidade que constitui ela própria. Enquanto a versão de si mesma que vende é exatamente o oposto. O truque é convencer o público que não há diferença entre os dois. Como demonstrou o seu vídeo que viralizou, a mídia social é obcecada pela autenticidade, porém condicionada pelos filtros das fotos embelezadoras.
A grande ironia desse ascetismo mundano é que acaba criando uma nova e paradoxal moralidade: essa fé pela disciplina e autocontrole não conduz mais à ascese que no passado criava o caminho em direção de Deus. Agora, a ascese conduz à construção de uma imagem tão poderosa e vibrante de si mesmo que acaba por encontrar não mais Deus, mas a si mesmo soterrado pelo peso da auto-imagem.
Ficha Técnica |
Título: Sweat |
Diretor: Magnus von Horn |
Roteiro: Magnus von Horn |
Elenco: Magdalena Kolesnik, Julian Swiezewski, Aleksandra Konieczna, Tomasz Orpinski |
Produção: Lava Films, Zentropa International Sweden, Film i Väst |
Distribuição: MUBI |
Ano: 2020 |
País: Suécia, Polônia |