quarta-feira, maio 11, 2022

A releitura gnóstica do Paraíso bíblico na era das mídias sociais na série 'Bem-vindos ao Éden'


Publicidade cada vez mais se aproxima das seitas e religiões. Assim como essas, a Publicidade não oferece mais produtos, mas agora “experiências” que prometem autoconhecimento e uma nova vida, tentando “espiritualizar” o consumo. Na série Netflix espanhola Netflix “Bem-Vindos ao Éden” (2022- ), uma festa em uma ilha que aparenta ser uma ação de marketing de uma nova bebida energética para jovens selecionados nas redes sociais, revela que por trás está uma seita baseada na nova religiosidade ecumênica global: espiritualismo New Age combinado com ambientalismo que promete a “salvação” do apocalipse climático. Prisioneiros em uma ilha paradisíaca numa série que faz releitura CosmoGnóstica do Paraíso bíblico para a geração das mídias sociais. 

“Você é feliz? Eu posso ajudá-lo a ser. Eu sou Éden?”. Essa é uma mensagem sem remetente que chega a Zoa (Amaia Aberasturi) no aplicativo de mensagens instantâneas no seu celular. Uma mensagem acompanhada da imagem de um barco repleto de jovens que rumam para uma festa exclusiva e privada em uma ilha que é supostamente patrocinada por uma nova bebida energética chamada “Blue Éden”.

Essa é a abertura da nova série espanhola Netflix Bem-Vindos ao Éden (2022- ), criada por Joaquim Górriz e Guillermo López.

“Experiência imersiva” é o que promete essa aparente ação de marketing inédita, ponto de partida da série – “experiência” e “imersão”, palavras-chave da publicidade atual que procura limpar a imagem do consumo comercial, historicamente associado à crítica do consumismo, superficialidade, materialismo etc. A fase “este é o produto, agora compre-o!” foi deixada no passado para, em seu lugar, consolidar-se a prospecção dos simbolismos mais profundos da alma humana que procura apresentar o consumo como uma experiência espiritual de autoconhecimento. Este Cinegnose já definiu esse momento atual como “Ad-Gnose”, uma nova engenharia do espírito, com o objetivo de “espiritualizar” o consumo e deixar de ser um mero ato de aquisição de um produto – sobre esse conceito clique aqui.

Que as estratégias de sedução da publicidade sempre estiveram no campo da magia, do fetichismo e da crença, não é novidade. Elementos mágicos e até religiosos sempre foram mais retóricos do que propriamente místicos – no final, eram apenas álibis para a fruição do consumismo e do materialismo: do ter substituto do ser.

Porém, hoje a Publicidade e o Marketing parecem querer inverter essa fórmula: o consumo pode se transformar numa experiência de autoconhecimento, prometendo uma espécie de epifania espiritual e de felicidade.



Por isso acompanhamos desde o final do século passado, o crescimento exponencial se seitas e cultos exclusivistas. Afinal, tanto a Publicidade/Marketing quanto as novas religiões que surgem embaladas pela onda da New Age (sob os escombros das grandes religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo, Islamismo) adquirem o mesmo tom: prometem “atalhos” para a felicidade humana – sejam experiências imersivas com produtos, seja a fé cega em gurus ecumênicos.

Esse é o zeigeist no qual vai se inspirar a série Bem-Vindos ao Éden. Uma “experiência imersiva” associada a um suposto energético que liga o produto, a experiência e a festa exclusiva promocional com a própria imagem do Jardim do Éden bíblico é a isca que vai atrair um conjunto de jovens a uma estranha seita New Age. Jovens cuja vida intensa nas redes sociais compartilhando fotos, desejos e sonhos vira fantasia escapista para fugir de pais ausentes, famílias dissolvidas, vidas solitárias e sensação de alienação e angústia.

A série é basicamente uma mistura de outras séries como Lost, Round 6, The 100 ou mesmo o filme Jogos Vorazes. Um grupo de adolescentes em festas promíscuas regadas a bebidas, energéticos e dopamina, em uma ilha paradisíaca e misteriosa (locações nas ilhas Canárias), é o ponto de partida sedutor. Porque, sabemos, tanta alegria e bebidas gratuitas deverão ter um custo alto para os protagonistas – "não existe almoço grátis", como dizem os norte-americanos.



A misteriosa “Iniciativa Darma” de Lost, adolescentes cheios de adrenalina perdidos num cenário alienígena como em The 100 e disputas mortais por ascensão e prestígio como Round 6 ou Jogos Vorazes são a receita Netflix para a série espanhola – com a assinatura dos famosos algoritmos da plataforma de streaming de onde certamente vem os parâmetros de trabalho para os roteiristas.

A Série

Além do convite aparentemente aleatório que abre com a pergunta “Você está feliz?” que cem jovens recebem em seus celulares, acompanhamos que o disparo das mensagens não foi assim tão aleatório: um dos membros da trupe que administra a ilha, Maika (Lola Rodriguez), gerencia uma rede social específica que atrai jovens e adolescentes. 

Cruzando fotos e postagens e minerando big data, a chamada “Fundação Éden” seleciona a centena de convidados. Aos quais é prometida uma experiência exclusiva numa ilha misteriosa em um festival de música eletrônica “open bar”. 

Obviamente, descobriremos que não se trata de uma simples promoção de marketing travestida em festa. Apenas cinco serão escolhidos durante o evento para tomarem uma garrafa do suposto energético. Para despertarem no dia seguinte lembrando-se de pouca coisa, com muita dor de cabeça e descobrindo que o restante dos festeiros já foram embora e eles foram deixados na ilha juntos com a seita Fundação Éden. 

Também é óbvio que dirão para eles que foram escolhidos por serem “convidados especiais” e que terão a oportunidade de “mudarem suas vidas”. Ficarão um dia na ilha para decidirem se permanecem ou se retornam, enquanto aguardam o barco que os trouxe retornar.



A narrativa acompanha os principais personagens do grupo: Zoa, África (uma influenciadora de mídias sociais - Belinda Peregrín), Ibón (Diego Garisa), Aldo (Albert Baró) e Orson (Mike Manning). Todos eles com pontos em comum: famílias destroçadas, pais incompreensíveis ou ausentes, tragédias familiares, traumas etc.

São recepcionados pelos Astrid (Amaia Salamanca) e Erick (Gullermo Pfening). Líderes da Fundação que, ao longo da temporada, vamos descobrindo que se originou com um pesquisador sobre mudanças climáticas e que tentou alertar o mundo para o apocalipse ambiental que se aproxima. Até ser calado pelas grandes corporações industriais e petrolíferas.

Cada um dos cinco jovens que permaneceram na ilha tem um “elo” – um tutor que tentará seduzir o pupilo a permanecer na ilha e participar de uma verdadeira seita, fundamentada na Teoria Gaia - a ilha é um ser vivo que se comunica com os membros da Fundação e que os protegerá do apocalipse climático que se aproxima.

Logicamente, o barco jamais chegará, tornando-os virtualmente prisioneiros na ilha, restando apenas duas opções: adesão à seita ou a morte. Logicamente, um sistema totalitário suavizado pela retórica espiritualista de autoajuda, com uma carregada retórica ambientalista. Por exemplo, enquanto o grupo está almoçando em um refeitório, um membro da seita lê em voz alta notícias sobre enchentes, furacões, desmatamentos e secas que assolam o planeta. 

Zoa tenta desesperadamente retornar para sua irmã Gaby (Berta Castañe) que convive com uma mãe viciada e um pai quase sempre ausente. Ao longo da temporada, acompanhamos suas tentativas de fuga e as intrigas entre os próprios “elos” da Fundação, todos lutando para ascender na hierarquia local. A clássica manutenção dos sistemas totalitários: criar sistemas de delação e instigar a competição pela ascensão na hierarquia.



Os biodomos que compõem as instalações na ilha, sofisticadas tecnologias de vigilância, uma gigantesca antena parabólica em uma paisagem vulcânica perto da qual mora, em outro biodomo, uma enigmática criança que parece ser personagem importante da seita criam a atmosfera de ficção-científica e linha narrativas soltas que serão exploradas na segunda temporada.

Religiões líquidas

Se olharmos em perspectiva, perceberemos que no passado a escatologia (parte da Teologia e da Filosofia que pretende tratar dos últimos eventos da história do mundo ou do destino do gênero humano) girava em torno de interpretações de textos bíblicos sobre a chegada de Jesus, o “julgamento final” ou previsões de profetas como Nostradamus.

Mas hoje temos uma “Neoapocalíptica”: sem mais Deus, Jesus ou juízos finais, mas agora uma escatologia ecumênica que mistura ambientalismo, espiritualismo, autoajuda etc.

Uma nova religião que também prega a salvação, assim com as religiões salvíficas como o catolicismo ou judaísmo. Porém, religiões que se tornaram “líquidas”, parafraseando Zygmunt Bauman: mescla de fundamentalismo nostálgico com uma colcha de retalhos que vai além do sincretismo religioso. Escatologia, salvação, milenarismo e uma nova cosmogonia e teogonia (como a Teoria Gaia que vê o planeta como uma gigantesca entidade divina e senciente) numa versão liquefeita dos antigos paradigmas religiosos.  



A Fundação Éden é uma alusão à essas novas religiões/seita ecumênicas globais cuja escatologia não é mais fundamentada em livros sagrados, mas nessa neoapocalíptica científica-new age.

Além disso, a série Bem-vindo ao Éden se alinha ao recorrente tema da “Ilha” no cinema e audiovisual. Quem acreditava que a série Lost (2004-10) tinha esgotado o tema enganou-se: Swiss Army Man, The Wilds, The Red Turtle, The I-Land entre inúmeras produções nesse século.

O tema de protagonistas prisioneiros em ilhas possui um evidente sabor CosmoGnóstico: demiurgos (seitas, natureza, Deus etc.) criam microcosmos nos quais os protagonistas enfrentam a ilusão e perigos reais. 

Na série Bem-Vindos ao Éden, a ilha que é um constructo na Fundação Éden cujo nome já é uma alusão à releitura gnóstica do Genesis bíblico: o jardim do Éden - na série, a paradisíaca ilha autossustentável no qual ambientalismo e tecnociência se conciliam numa utopia que pretende criar o Paraíso na Terra. Ou uma Arca de Noé de salvação diante do iminente apocalipse climático global.  

Tal como na releitura gnóstica do Éden, o Paraíso não como a Idade de Ouro corrompida pelo pecado, mas o início da catástrofe em que se constituiu a Criação.


 

Ficha Técnica

 

Título: Bem-Vindo ao Éden (série)

Criadores: Joaquim Górriz e Guillermo López Sanches

Roteiro: Raimon Masllorens, Joaquim Górriz e Guillermo López Sanches

Elenco:  Amaia Salamanca, Tomás Aguilera, Albert Baró, Belinda Peregrin, Amaia Aberasturi, Lola Rodríguez, Mike Manning, Guillermo Pfening

Produção: Brutal Media

Distribuição: Netflix

Ano: 2022-

País: EUA

 

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