quinta-feira, maio 05, 2022

Pigmaleão e o mito gnóstico do Divino Feminino no filme 'Ruby Sparks - A Namorada Perfeita'


O mito de Pigmaleão (o escultor que se apaixonou pela própria obra em busca da mulher ideal) tem atraído diversos artistas, produzindo diversas releituras. Uma delas é o filme “Ruby Sparks - A Namorada Perfeita” (2012), escrito, dirigido e estrelado por Zoe Kazan – um jovem escritor com um sucesso comercial aos 19 anos sofre bloqueio criativo para manter a imagem mercadológica de gênio. Sua musa ideal aparece em sonhos e finalmente o inspira para começar um novo livro. Até ela misteriosamente se materializar, controlada pelas palavras que o escritor datilografa em sua velha máquina de escrever. O jovem escritor é prisioneiro daquilo que a psicologia já definiu como “Efeito Pigmaleão” e “Profecia Autorrealizável”. Porém, “Ruby Sparks” vai além: conecta a mitologia de Pigmaleão com o mito gnóstico do Divino Feminino (Sophia) e com o arquétipo contemporâneo do “Viajante”. 

O leitor já deve ter visto em algum lugar a história do escultor que se apaixonou pela própria estátua que esculpiu ao tentar reproduzir a mulher ideal. Todas as variações dessa história estão no mito grego antigo de Pigmaleão, o rei da ilha de Chipre. Segundo o poeta romano Ovídio, esse rei também era um escultor e estava em busca da mulher ideal dentro de sua decisão de viver no celibato por não concordar com a postura “libertina” das mulheres sob o seu reino.

A lenda de Pigmaleão tem atraído diversos artistas, como Bernard Shaw, com a sua peça Pigmaleão – no lugar da estátua transformada em mulher, temos uma mulher pobre transformada em personalidade da alta sociedade. Depois, a peça foi transformada no musical e no filme My Fair Lady.

Esse mito é tão arquetípico (por envolver conceitos como livre-arbítrio, narcisismo e ego) que até na psicologia inspirou Robert Rosenthal a criar o conceito de “Efeito Pigmaleão”, no qual o efeito das nossas expectativas e percepção da realidade é o de realinhar a realidade de acordo com as nossas expectativas que temos dela.

 


O sociólogo Robert K. Merton estendeu esse efeito para o campo social com o conceito de “profecia auto-realizável” - quem tem expectativas ruins sobre os outros, não acredita neles ou não vê suas qualidades, costuma colher o pior dessas pessoas; já quem tem expectativas positivas, tende a obter o melhor de cada uma delas.

O filme Ruby Sparks - A Namorada Perfeita (2012), dirigido, escrito e estrelado por Zoe Kazan, é mais uma variação desse mito, sobre a estória de um escritor com bloqueio criativo cuja musa ideal, que aparece eventualmente nos sonhos, se transforma na inspiração de um novo livro. Porém, misteriosamente ela se materializa como a namorada ideal do escritor, vindo diretamente das páginas da ficção. Uma engenhosa variação de Pigmaleão por acrescentar a essa velha narrativa mitológica o appeal gnóstico – o escritor, incorporando o protagonista gnóstico do Viajante; e ela, o mito do aéon Sophia.

Não por menos, o nome do psicanalista do escritor com bloqueio criativo chama-se Dr. Rosenthal (Elliott Gold), numa alusão direta ao psicólogo que nomeou o efeito do qual o escritor protagonista sofre.

O Filme

Tendo encontrado o sucesso inicial com um romance best-seller aos 19 anos, Calvin (Paul Dano) agora subsiste como um jovem de vinte e poucos anos que sofre de um sério caso de bloqueio de escritor. Quando não está enfadado em aparições públicas promovidas pela sua editora ou olhando para uma página em branco em sua máquina de escrever, Calvin está nas sessões com seu psicanalista mal-humorado Dr. Rosenthal, tentando descrever a garota que aparece em seus sonhos. E nada de terminar seu próximo livro, sentindo a pressão dos editores que insistem em prazos, na expectativa de um novo sucesso de um autor que parece torturado pela imagem de gênio que o marketing criou para ele. 



Quando Dr. Rosenthal sugere que seu paciente escreva sobre ela, Calvin se vê a princípio aterrorizado com os resultados e depois encantado com sua criação orgânica: inexplicavelmente Ruby Sparks (Zoe Kazan) materializa-se como uma alegre e despreocupada jovem.

Ela é de uma beleza etérea e iluminada, representando seu parceiro romântico ideal, depois de Calvin ter passado por uma traumática separação. Ela é boa demais para ser real? Sim, ela é real, como o irmão incrédulo de Calvin, Harry (Chris Messina), descobre depois que ele vem ver por si mesmo. 

Calvin descobre que pode controlar essa jovem, através das palavras que datilografa em uma máquina de escrever. O detalhe do protagonista usar uma velha máquina de escrever Olympia em plena atualidade é importante: A máquina de escrever tem uma qualidade mecânica que torna seu status de recipiente para os impulsos de Calvin mais imediatamente palpável do que as associações artificiais (ou digitais) que um computador traria. Ela não é uma peça de tecnologia. A tinta nas páginas de Calvin é tão real quanto Ruby Sparks e vice-versa.

Kazan e os co-diretores Jonathan Dayton e Valerie Faris (de " Little Miss Sunshine ") usam a existência de Ruby como um dispositivo para apresentar mais personagens, que funcionam quase como um “alívio cômico” para a claustrofóbica relação entre Calvin e Ruby. Estes incluem a mãe hippie de Calvin, Gertrude (Annette Bening), seu amante artista plástico Mort (Antonio Banderas), e seu agente literário de longa data, Langdon Tharp (Steve Coogan). 



Ao longo do filme, o aspirante a romancista descobre que controlar uma mulher escrevendo sobre ela é tão fácil quanto ser aquele malabarista que mantém todos os pratos girando simultaneamente sobre bastões.

Em muitos momentos Ruby Sparks chega a ser metalinguístico: Zoe Kazan, é claro, é atriz e escritora e, em sua carreira, deve ter se sentido muitas vezes puxada para um lado e para o outro pelas fantasias e exigências dos (principalmente) homens roteiristas e que dirigiram seus papéis. Certamente uma das coisas mais temidas que uma atriz pode ouvir é: “Fizemos algumas mudanças em seu personagem”. Mas se os personagens têm vida própria na página, eles também assumem uma realidade na mente daqueles que os retratam (os atores), e o personagem final que vemos em um filme pode ser mais um compromisso do que a visão pessoal de qualquer pessoa.

Esse “Efeito Rosenthal”, somada às pressões comerciais para que Calvin confirme ao mercado sua genialidade, criam uma prisão autorrealizável para o protagonista. Calvin é um “Viajante”: ele é um escritor bem-sucedido, seguido por uma legião de fãs que o imaginam como um novo J.D. Salinger de “O Apanhador no Campo de Centeio”. Porém, falta algo, muito mais do que uma inspiração para um novo sucesso comercial.



Ao lado do “Estrangeiro” e do “Detetive” (arquétipos gnósticos contemporâneos recorrentes na literatura, cinema HQs etc. – clique aqui), o “Viajante” geralmente é alguém bem-sucedido na sua área. Mas precisa passar por uma “viagem” lúdica através de um “jogo”, no qual ficção e realidade se fundam para o personagem entrar em um estado de “suspensão” para ir além do narcisismo e do ego.

 A forma-pensamento Ruby que se materializa diante dela como uma musa etérea e esse jogo que vai mais além: ela personifica o mito do Divino Feminino de Sophia, o aéon que tenta despertar nos homens a gnose - reconectá-los à fagulha de luz espiritual interior esquecida – não é por menos o nome “Ruby Sparks”, “faíscas de rubi”, metáfora dessa luz espiritual.

Calvin é prisioneiro desse “Efeito Pigmaleão” que cria uma realidade autorrealizável, capaz de provocar nele um “descarrilhamento emocional” – Calvin atrofia a experiência do presente para viver uma espécie de hipertrofia de expectativas futuras. Esse descarrilhamento emocional de se projetar continuamente no futuro conduz a patologia da melancolia: a sensação de estar sempre chegando demasiadamente tarde ao encontro com a vida – leia MARRAMAO, Giacomo. Kairós – Apologia del Tiempo Oportuno, Ed. Gedisa, 2002.

Calvin luta continuamente para que a realidade futura se adeque ao seu ego e narcisismo – a ilusão de controle sobre Ruby o mantém sempre em estado melancólico, sem conseguir viver de forma autêntica o presente. Calvin parece sempre orientado para o futuro, numa hipertrofia de expectativas.

Ruby Sparks tem uma mensagem: enquanto estivermos vivos, estaremos sempre nos reescrevendo.




Ficha Técnica

 

Título: Ruby Sparks – A Namorada Perfeita

Diretor: Zoe Kazan, Valerie Faris

Roteiro: Zoe Kazan

Elenco:  Paul Dano, Zoe Kazan, Annette Benning, Antonio Banderas, Cris Messina, Elliott Gold

Produção: Fox Searchlight Pictures, Bona Fide Productions

Distribuição: 20th Century Fox Home Entertainment

Ano: 2012

País: EUA

 

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