quarta-feira, março 09, 2022

Guerra na Ucrânia: o Império vê Hitler no próprio espelho


"Parecem com a gente!”, exclamou o repórter da CBS News ao ver imagens de refugiados ucranianos. Ato falho sintomático: foi a deixa para aumentar a escalada retórica midiática da iminência de uma “guerra mundial” – afinal, guerra mundiais só acontecem quando brancos estão morrendo. No mundo real, a Segunda Guerra Mundial jamais terminou. Os Impérios nunca pararam de lutar em inúmeras guerras quentes e golpes a sangue frio por décadas. Historicamente, as guerras mundiais sempre liberam o Império Branco (América-Europa) da culpa da própria violência colonial e racismo, ao escolherem o Hitler da vez e dizer “esse era o cara mau” e “nós o pegamos”. Agora, é Putin, com todo o “physique du rôle” para o papel. O Império sempre precisa de um Hitler. Caso contrário, eles teriam que se olhar no espelho e ver sua própria hipocrisia. Há 77 anos, Aimé Césaire, no livro “Discurso Sobre o Colonialismo”, chamava de “efeito bumerangue” quando as guerras se voltam contra o próprio Império, com mesmo racismo e violência que dispensam às suas colônias. E novos “Hitlers” são necessários. A diferença é que não mais gerados pelo Cristianismo. Mas agora pela democracia liberal midiática. 

Dr. Julius No, Goldfinger, Blofeld, Scaramanga, Renard e toda uma galeria de supervilões que infernizaram a vida do espião com licença para matar à serviço de Vossa Majestade, James Bond (007), tinham lá suas diferenças: um tinha braço mecânico, outro uma emblemática pistola de ouro, um vilão tinha uma bala na cabeça que o tornava insensível à dor, outro ameaçava Bond com armas laser etc. Alguns com interesses geopolíticos de dominação do planeta... outros por puro desejo de vingança contra 007. Mas todos eles tinham um drive comum: a pura maldade manifestada pela ambição desenfreada, crueldade, o cálculo e a frieza típica dos sociopatas.

James Bond, criado pelo escritor Ian Fleming e notabilizado pela telona com Sean Connery e Roger Moore, foi um típico produto imaginário da Guerra Fria – 007 enfrentava inimigos do Ocidente escolhidos a dedo na Coréia do Norte, Moscou, China etc. 

Ao longo das décadas, o espião do serviço secreto britânico foi perdendo sua relevância na cultura pop. Não tanto pela qualidade dos filmes, mas porque o protagonista e seus vilões começaram a perder a concorrência com realidade. Ou melhor dizendo, para a maneira como a mídia relata a realidade.

Sadam Hussein com seu grosso bigode invadindo o Kwait e ameaçando fazer uma guerra com armas químicas, Bin Laden (outro vilão iconicamente perfeito) sendo caçado nas cavernas do Afeganistão. Trilhões de dólares foram gastos pelos EUA naquele país matando pessoas pobres, supostamente do Talibã, fundamentalistas que pretendiam reestabelecer o califado islâmico, no mundo todo, através do terrorismo – aterrorizar seu próprio povo e o Ocidente.



Uma piada: como uma organização que mal consegue pagar seus soldados queria dominar o mundo? Como um povo miserável pode pretender dominar um mundo unipolar com mais de 800 bases militares e cercado pela banca financeira ao redor do planeta?

Com a saída desorganizada e quase patética das forças militares americanas que ocupavam o Afeganistão, foi como se, de repente, toda a narrativa sobre supervilões como Sadam Hussein, Bin Laden, e o amorfo Talibã virassem pó. Do nada, o jornalismo corporativo Ocidental, que por décadas alimentou os perfis de supervilões ambiciosos, cruéis e sociopatas que ameaçam o mundo livre, viu seu principal plot ser destruído por um presidente democrata da potência militar que supostamente nos protege desses inimigos.



Depois da diversão...

“Sleep Joe” Biden sabia que bater em muçulmanos pobres deu certo, mas foi divertido por um tempo. Depois do Iraque, a bola da vez até seria o Irã... mas o país tem um programa nuclear... recebe urânio enriquecido da Rússia... não seria exatamente uma boa ideia.

Por isso, deu uma guinada geopolítica (já explicada por esse Cinegnoseclique aqui) na qual as estratégias “boots on the ground” seriam substituídas por guerras híbridas – guerras por procuração pelo planeta, sem mais o risco de ver muitos sacos plásticos com americanos dentro voltando para o país.

O problema é que depois de décadas da emoção com o mundo acompanhando nos telejornais as implacáveis caças dos supervilões, uma geopolítica baseada exclusivamente na guerra híbrida (por sua natureza, invisível) corria o risco de deixar as multidões entediadas.

Enquanto a OTAN avançava desde que o Pacto de Varsóvia caiu, alguns muçulmanos aleatórios, aqui e ali, serviam de álibi. A contínua expansão da OTAN para o Leste era condenada por muitos estrategistas como uma aventura perigosa. Mesmo assim, depois de muitos avisos entre 2008 e 2014 (de que estacionar mísseis cada vez mais próximo da Rússia seria tão perigoso quanto a crise dos mísseis de Cuba, em 1962), eles finalmente conseguiram uma guerra de verdade.

Depois de cutucar o urso por tempo suficiente, a Rússia acordou de sua hibernação e atacou a Ucrânia.



O Hitler russo

Agora o chamado “Deep State” (complexo industrial, militar, energético e financeiro) mal pode conter sua alegria, junto com a mídia corporativa que estava sentido-se só e abandonada: agora temos um vilão, algo para o qual todos os dedos podem ser apontados – o “Hitler russo” Putin, o supervilão com o physique du rôle perfeito: ex-agente KGB, ambicioso, frio e sanguinário, que só pensa em “dominar o mundo”, como um fim em si mesmo para o seu próprio desfrute.

O produto perfeito da propaganda ocidental. As massas foram preparadas para odiar os russos, desde a animação infantil Alceu e Dentinho (The Rocky and Bullwinkle Show, 1959-64). Enquanto filmes sobre nazistas (que até viraram um subgênero, “naziexploitation”) são produzidos todos os anos, de maneiras cada vez mais fantásticas. Por décadas o Ocidente foi preparado para a Terceira Guerra Mundial contra os nazistas russos.

O Império e sua máquina de propaganda privatizada nesse momento pede mais armas, mais sanções e até mesmo uma zona de exclusão aérea (o que na verdade significaria bombardear a Rússia e atirar em aviões fora do território). Motivam civis ucranianos a pegarem em armas para renderem novas imagens sensacionais de mortos e feridos para o prime time das TVs. Em suma, pedem a Terceira Guerra Mundial. Porque finalmente encontraram um inimigo digno.

Putin é o novo Hitler! Não é à toa que o jornalismo corporativo histericamente ressalta que a crise dos refugiados e essa guerra “é a maior desde a Segunda Guerra Mundial”. Aterrorizados, denunciam que se a Alemanha de Hitler começou com a Polônia, e agora Putin está começando com a Ucrânia.

Por que o Império sempre precisa de um Hitler? Porque, caso contrário o Império teria que olhar para o espelho e ver a própria hipocrisia.


Eugenia nos EUA: para "fazer seres humanos melhores"

O ressentimento de Hitler

Se não, vejamos... antes da Segunda Guerra Mundial o maior mal do mundo sempre foram os aliados ocidentais. A América era um pesadelo totalitário para os negros, cujas políticas eugenistas de “higiene racial” do século XIX (eliminação de futuras gerações de “incapazes”, de doenças a raças e empobrecidos) foram uma grande inspiração para os nazistas. Enquanto isso, Reino Unido, França etc., eram impérios colonialistas brutais e racistas que pisavam com suas botas no pescoço das suas colônias por todo o planeta.

Hitler olhava para esses impérios e sentia-se excluído, humilhado e ressentido – enquanto via a pilhagem do colonialismo e vendo as consequências para a Alemanha do humilhante Tratado de Versalhes (na época, o economista John Maynard Keynes foi uma das poucas vozes a alertar para o perigo político do ressentimento após um acordo que imporia um fortíssimo fardo para a Alemanha ... e estava correto!), Hitler pensou: “o que restou para a Alemanha? Apenas sucatas”, como lamentou em “Mein Kampf”.

No início, o grande projeto de Hitler era a colonização dos “eslavos sub-humanos” ao Leste – a Europa Oriental seria o mais próximo que ela chegaria para transformar a Alemanha também numa potência colonialista. Na época, a maioria da Europa “branca” não se opôs a isso, já que, para eles, russos não eram exatamente “pessoas brancas”. 

O grande pecado histórico de Hitler foi, na verdade, empurrar a violência também diretamente para os brancos, ocupando França, Países Baixos et al. Para estes, a violência racista e colonial europeia sempre foi um modus operandi bastante justo, porém, imperdoável quando aplicado à própria Europa.

Efeito bumerangue

Aimé Césaire, em seu livro “Discurso sobre o Colonialismo”, chamou isso de efeito bumerangue, quando as atrocidades coloniais voltam para a própria casa dos algozes. “A Europa é indefensável”, acusava Césaire. Para ele, Hitler nunca foi uma anomalia europeia. Ele “apenas” representava os valores europeus, voltados contra si mesmos. Em 1950, Césaire afirmava que os brancos sempre toleraram muitas atrocidades, desde que estivessem acontecendo com não-brancos. Por isso, sempre se orgulharam de si próprios. Não seria ainda do mesmo jeito? 




Dessa forma, a Segunda Guerra Mundial liberou a culpa e a vergonha europeias. Apesar de todos os séculos de colonialismo e racismo, eles puderam apontar para os 12 anos de Hitler no poder e dizer “esse era o cara mau” e “nós o pegamos”. Então, de alguma forma, eles voltaram a ser mocinhos, absolvidos de todo pecado.

Assassinos genocidas como Winston Churchill poderiam assim se tornar heróis, apesar de ter administrado campos de concentração no Quênia e causar fome genocida na Índia, também após a Segunda Guerra Mundial – clique aqui. E ainda continuam a fazer filmes e documentários sobre como Churchill era ótimo em fazer discursos, gênio cuja verve retórica mobilizou os aliados a derrotar a banalidade do mal nazista.

Enquanto os Estados Unidos conseguiram se tornar heróis antirracistas, um conto fabricado infinitamente através de seu cinema. 

Depois que o repórter da CBS News, Charlie D’Ágata, lamentou o drama dos refugiados ucranianos dizendo que “eles se parecem conosco”, subiu a temperatura do terror pela iminência de uma terceira guerra mundial. E o que é pior, dessa vez nuclear.

O ato falho do repórter mais uma vez confirma a indignação de Césaire no “Discurso Sobre o Colonialismo”: guerra mundiais só acontecem quando brancos estão morrendo.

Putin mata “gente que se parece conosco”

Na verdade, no mundo real, a Segunda Guerra Mundial jamais terminou. Os Impérios Branco e Vermelho nunca pararam de lutar, e inúmeras guerras quentes e golpes a sangue frio continuaram por décadas. Explodindo novamente depois dos ataques de 2001(false flag?) nos EUA, em um crescendo furioso, matando milhões e deslocando quase 40 milhões de refugiados nas guerras de combate ao terrorismo da América. 

Agora, conseguimos o Hitler da vez: Putin! Porque ele está matando “gente que se parece conosco”. 

Voltando a Césaire, o que se repete hoje é a mesma lógica do velho colonialismo branco europeu, agora através das ondas concêntricas dos meios de comunicação. O que Césaire disse sobre o colonialismo ainda se aplica hoje. A lógica subjacente ainda é a mesma. Em vez do cristianismo, temos a democracia liberal. Mais ideias para justificar a monstruosidade.

A questão é que o Império Branco não é a solução para nada, nem para a Ucrânia. O Império é o problema. É uma civilização doente, moralmente doente. Psiquicamente, saltam de um processo de negação para outro. Sempre chamando por Hitler como se chamassem pela própria mãe. Hitler é apenas a exteriorização psíquica, o reflexo no espelho, no qual podem ritualmente fingir derrotar.

Hitler não está no Afeganistão, na Síria ou na Rússia. Hitler está bem ali, no espelho. O Império Branco fabrica demônios há tanto tempo que eles mesmos foram possuídos por eles.

A verdade é que Hitler nunca foi derrotado. Ele está sempre voltando em novos avatares, sempre que necessário.  O Império Branco inspirou Hitler, e constantemente precisa de novos Hitlers, para distrair de suas próprias atrocidades. Sem algum outro mal extravagante, eles teriam que encarar o fato de que eles próprios são os vilões.

 

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