Como era de esperar, a reposta da esquerda a “O
Mecanismo” foram denúncias contra o conteúdo factual da série brasileira. Mordeu a isca jogada pelo
diretor José Padilha e suas eminências pardas da atual guerra híbrida: de que a
série era supostamente “baseada em fatos reais”. E começou a acusar o
“assassinato de reputações” ao não respeitar “o tempo que os fatos ocorreram”,
condenar a “distorção da realidade” e produzir “fake news”. Foi como se a
esquerda levantasse a bola no outro lado da rede para o adversário dar uma
violenta cortada. Como uma “obra de ficção”, a série deve ser criticada no seu
próprio campo semiótico: a Operação Lava Jato foi um mero pretexto para o
roteiro explorar a combinação explosiva de ressentimento com a meritocracia.
Combinação que fez recentemente as ruas encherem de camisas amarelas batendo
panelas. Como não consegue se descolar da visão conteudística da comunicação, a
esquerda é incapaz de lutar no mesmo campo simbólico no qual Netflix milita.
Além de oferecer mídia espontânea a uma série tosca e malfeita.
Durante
quase duas décadas nos anos 1980-90, as campanhas da marca italiana Benetton
foram provocadoras e controversas. As fotos de Oliviero Toscani para a campanha
“United Colors of Benetton” eram cada vez mais polêmicas, frequentemente
censuradas fora e dentro da Europa: as imagens do ativista David Kirby em seu
leito de morte ou a roupa ensanguentada de um soldado bósnio morto na guerra
eram altamente provocativas em um meio publicitário que, segundo Toscani, vivia
alienado e fora da realidade.
Tanta
controvérsia e escândalo das fotos-choque rendia o que os marqueteiros chamam
de “marketing de guerrilha” ou “mídia espontânea” – graças às polêmicas e os
bate-bocas com o meio publicitário, Benetton chegava a lugares que a marca
jamais conseguiria alcançar. Boa forma de economizar dinheiro: pagava-se para
uma mídia e suas peças eram vistas em todas as outras como um acontecimento
noticioso.
Dilema
midiático insolúvel: se uma mídia quiser ignorar o “buzz”, ficará por fora de
um debate público; se a mídia participar, irá cair na cilada da mídia
espontânea e dará publicidade involuntária (e gratuita) a uma marca.
O
episódio da série brasileira do Netflix O Mecanismo
foi mais um exemplo desse tipo de cilada armada para criar um dilema midiático.
Uma cilada explicitamente lançada para aproveitar o timing da prisão de Lula
(que não ocorreu graças à liminar do STF), prevista para essa semana.
Oliviero Toscani: a fórmula da mídia espontânea |
Cortada na rede
Vimos
em postagem anterior, como essa série foi articulada, desde o ano passado, como
mais uma bomba semiótica dentro do atual cenário de guerra híbrida contra a
esquerda e a própria realização das eleições nesse ano – clique aqui.
Mas
José Padilha e os estrategistas dessa guerra semiótica visaram algo mais:
provocar a esquerda e esperar que a sua histórica inépcia com a comunicação
rendesse boas tréplicas para impactar o distinto público – e principalmente
aqueles que acham que o debate atual está “muito partidarizado” e que, por
isso, se entregam a repulsa à política.
Como
era de esperar, a reposta da esquerda foi através do conteúdo factual da série.
Mordeu a isca de que a série era “baseada em fatos reais”, começou a criticar o
“assassinato de reputações” ao não respeitar “o tempo que os fatos ocorreram”,
condenar a “distorção da realidade”, inventar fatos e produzir “fake news”.
E o
que é pior. Tudo isso seria “erro de roteiro”, como disse a ex-presidenta
Dilma.
Era
tudo que Padilha e suas eminências pardas esperavam e pretendiam. Foi como se a
esquerda levantasse a bola no outro lado da rede para o adversário dar uma
violenta cortada.
Prontamente
o diretor de O Mecanismo respondeu:
“na abertura de cada capítulo diz que os fatos estão dramatizados, que é uma obra
de ficção que faz livre adaptação”. E completou ao estilo da truculência do MBL
e congêneres: “Se a Dilma soubesse ler, não estaríamos com esse problema [de
crítica].
Dilma
fala que Netflix “não sabe onde se meteu”, insinuando que a plataforma de
streaming está sendo usada para fazer campanha política. E que vai “alertar
lideranças políticas de outros países”.
Levantando a bola na rede para o adversário dar a cortada... |
Esquerda prisioneira de si mesma
Uma
empresa como o Netflix, que só em 2013 dispendeu 1,2 milhões de dólares em esforços
lobistas mirando na Casa Branca e Congresso dos EUA realmente sabe o que faz. E
pelo seu modus operandi (séries e
filmes sobre eventos que ainda estão em desdobramento), é uma empresa engajada
numa tática fundamental da guerra híbrida: a intervenção na realidade através
de produtos do gênero ficcional.
Prisioneira
que ainda está no cânone iluminista da representação, a esquerda cobra de
Padilha realismo e precisão histórica em uma obra de ficção. Mas sabemos que o
diretor, assim como personagens como Kim Kataguiri e Alexandre Frota, é um
provocador. Quer mídia espontânea para alcançar lugares que talvez jamais
chegaria. Como a Benetton de Olivero Toscani.
Como
não consegue se descolar da visão conteudística da comunicação, a esquerda é
incapaz de lutar no mesmo campo simbólico no qual Netflix milita: o campo do
imaginário e da ideologia. Prefere ficar no campo confortável (porque familiar)
do realismo e do escândalo moral (o escândalo contra a manipulação) ao ver um
produto de comunicação que não corresponde aos fatos.
Lutar no mesmo campo semiótico do Netflix
Em
geral as críticas de O Mecanismo
giram em torno do senso comum do leigo de cinema: o roteiro erra porque não é
realista. Isso é o que menos se deve cobrar da série: um roteiro deve ser
verossímil, e não realista.
Óbvio
que O Mecanismo é uma peça de
propaganda indireta. Tosca e malfeita, produzida às pressas para ser lançada no
momento da prisão de Lula.
"O Mecanismo": combinação explosiva entre ressentimento e meritocracia |
Então,
o que significa dizer que a esquerda deve lutar no mesmo campo simbólico do
Netflix? No caso particular dessa série, denunciar que o argumento ficcional se
baseia na combinação ideológica explosiva da meritocracia com o ressentimento.
E isso é uma questão de verossimilhança, e não de realismo.
O tema
de O Mecanismo não é a Lava Jato. Isso
é um mero pretexto para impor a narrativa do ressentimento, a matéria-prima de
todas as bombas semióticas detonadas nas mídias desde 2013 – sobre isso clique aqui.
Se
Padilha deve ser cobrado, é exatamente no campo do argumento e roteiro. Nas
ênfases, exageros e estereótipos.
Ressentimento e meritocracia
Como
discutíamos na postagem anterior, o ressentimento sempre foi uma poderosa arma
de propaganda política. E no caso brasileiro, quando combinado com o ideário
meritocrático, produz ódio, medo e desejo de vingança.
A
ênfase maniqueísta da série é justamente contrapor a vida sofrida, esforçada e
financeiramente contida dos servidores públicos (procuradores e policiais
figurados sempre em ambientes mais escuros e com fortes contrastes de luz e
sombra), com as cenas dos abastados e tranquilos doleiros e corruptos – cenas
mais iluminadas e sem contrastes.
MasterChef: o aprendizado cotidiano de meritocracia e ressentimento para as massas |
Didaticamente,
a grande mídia ensina para as massas brasileira a ideologia do “no pain, no
gain” do imaginário meritocrático em reality shows como, por exemplo, MasterChef ou O Aprendiz – nos ensina a ser engajados e focados, mesmo diante da
dor, humilhação e sofrimento. São valores tidos como moralmente bons, supostamente
fortalecedores da têmpera e da virtude.
Na
meritocracia todo indivíduo é ressentido, mesmo os vitoriosos. Ressentidos pelo
custo psíquico que tiveram para chegar lá.
Por
isso o discurso moralista da corrupção (a série abre com a voice over de Ruffo afirmando que “o que fode o Brasil não é o sistema de saúde falho ou a falta de educação ou juros altos... é a corrupção!”) cai como ácido nessa ferida psíquica
que nunca cicatriza.
Para o
ressentido, saúde e educação precárias não são problemas de política pública,
mas um problema moral: prender vilões corruptos que roubam o dinheiro público.
Como
Nietzsche escrevia, o ressentimento produz incapacidade para agir. Em outras
palavras, despolitiza. Falar em política pública requer agir politicamente ou,
palavrão dos palavrões, atuar partidariamente – partidos políticos, associações
classistas etc.
Mas o
ressentido não quer ação política, quer punição exemplar. Por isso delega seu
agir a vigilantes (não é à toa que Rigo, o clone de Moro na série, lê a HQ
“Vigilante Sombrio”), heróis ou qualquer personagem com caráter supostamente virtuoso
e corajoso. Dessa maneira, sempre verá com simpatia Estados policias e de
exceção.
O Mecanismo deve ser criticado do
interior seu próprio campo semiótico. Se José Padilha afirma que tudo é uma
“ficção”, é desse pressuposto que deve partir a análise: uma má ficção que,
para se sustentar, explora raiva reprimida que mais parece vinda do fígado e
vesícula biliar do que de corações e mentes dos espectadores.
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