sexta-feira, março 30, 2018

Episódio "O Mecanismo" revela a inépcia da esquerda com a comunicação


Como era de esperar, a reposta da esquerda a “O Mecanismo” foram denúncias contra o conteúdo factual da série brasileira. Mordeu a isca jogada pelo diretor José Padilha e suas eminências pardas da atual guerra híbrida: de que a série era supostamente “baseada em fatos reais”. E começou a acusar o “assassinato de reputações” ao não respeitar “o tempo que os fatos ocorreram”, condenar a “distorção da realidade” e produzir “fake news”. Foi como se a esquerda levantasse a bola no outro lado da rede para o adversário dar uma violenta cortada. Como uma “obra de ficção”, a série deve ser criticada no seu próprio campo semiótico: a Operação Lava Jato foi um mero pretexto para o roteiro explorar a combinação explosiva de ressentimento com a meritocracia. Combinação que fez recentemente as ruas encherem de camisas amarelas batendo panelas. Como não consegue se descolar da visão conteudística da comunicação, a esquerda é incapaz de lutar no mesmo campo simbólico no qual Netflix milita. Além de oferecer mídia espontânea a uma série tosca e malfeita.

Durante quase duas décadas nos anos 1980-90, as campanhas da marca italiana Benetton foram provocadoras e controversas. As fotos de Oliviero Toscani para a campanha “United Colors of Benetton” eram cada vez mais polêmicas, frequentemente censuradas fora e dentro da Europa: as imagens do ativista David Kirby em seu leito de morte ou a roupa ensanguentada de um soldado bósnio morto na guerra eram altamente provocativas em um meio publicitário que, segundo Toscani, vivia alienado e fora da realidade.

Tanta controvérsia e escândalo das fotos-choque rendia o que os marqueteiros chamam de “marketing de guerrilha” ou “mídia espontânea” – graças às polêmicas e os bate-bocas com o meio publicitário, Benetton chegava a lugares que a marca jamais conseguiria alcançar. Boa forma de economizar dinheiro: pagava-se para uma mídia e suas peças eram vistas em todas as outras como um acontecimento noticioso.

Dilema midiático insolúvel: se uma mídia quiser ignorar o “buzz”, ficará por fora de um debate público; se a mídia participar, irá cair na cilada da mídia espontânea e dará publicidade involuntária (e gratuita) a uma marca.

O episódio da série brasileira do Netflix O Mecanismo foi mais um exemplo desse tipo de cilada armada para criar um dilema midiático. Uma cilada explicitamente lançada para aproveitar o timing da prisão de Lula (que não ocorreu graças à liminar do STF), prevista para essa semana.

Oliviero Toscani: a fórmula da mídia espontânea

Cortada na rede


Vimos em postagem anterior, como essa série foi articulada, desde o ano passado, como mais uma bomba semiótica dentro do atual cenário de guerra híbrida contra a esquerda e a própria realização das eleições nesse ano – clique aqui. 

Mas José Padilha e os estrategistas dessa guerra semiótica visaram algo mais: provocar a esquerda e esperar que a sua histórica inépcia com a comunicação rendesse boas tréplicas para impactar o distinto público – e principalmente aqueles que acham que o debate atual está “muito partidarizado” e que, por isso, se entregam a repulsa à política.

Como era de esperar, a reposta da esquerda foi através do conteúdo factual da série. Mordeu a isca de que a série era “baseada em fatos reais”, começou a criticar o “assassinato de reputações” ao não respeitar “o tempo que os fatos ocorreram”, condenar a “distorção da realidade”, inventar fatos e produzir “fake news”.

E o que é pior. Tudo isso seria “erro de roteiro”, como disse a ex-presidenta Dilma.

Era tudo que Padilha e suas eminências pardas esperavam e pretendiam. Foi como se a esquerda levantasse a bola no outro lado da rede para o adversário dar uma violenta cortada.

Prontamente o diretor de O Mecanismo respondeu: “na abertura de cada capítulo diz que os fatos estão dramatizados, que é uma obra de ficção que faz livre adaptação”. E completou ao estilo da truculência do MBL e congêneres: “Se a Dilma soubesse ler, não estaríamos com esse problema [de crítica].

Dilma fala que Netflix “não sabe onde se meteu”, insinuando que a plataforma de streaming está sendo usada para fazer campanha política. E que vai “alertar lideranças políticas de outros países”.

Levantando a bola na rede para o adversário dar a cortada...

Esquerda prisioneira de si mesma


Uma empresa como o Netflix, que só em 2013 dispendeu 1,2 milhões de dólares em esforços lobistas mirando na Casa Branca e Congresso dos EUA realmente sabe o que faz. E pelo seu modus operandi (séries e filmes sobre eventos que ainda estão em desdobramento), é uma empresa engajada numa tática fundamental da guerra híbrida: a intervenção na realidade através de produtos do gênero ficcional.

Prisioneira que ainda está no cânone iluminista da representação, a esquerda cobra de Padilha realismo e precisão histórica em uma obra de ficção. Mas sabemos que o diretor, assim como personagens como Kim Kataguiri e Alexandre Frota, é um provocador. Quer mídia espontânea para alcançar lugares que talvez jamais chegaria. Como a Benetton de Olivero Toscani.

Como não consegue se descolar da visão conteudística da comunicação, a esquerda é incapaz de lutar no mesmo campo simbólico no qual Netflix milita: o campo do imaginário e da ideologia. Prefere ficar no campo confortável (porque familiar) do realismo e do escândalo moral (o escândalo contra a manipulação) ao ver um produto de comunicação que não corresponde aos fatos.

Lutar no mesmo campo semiótico do Netflix


Em geral as críticas de O Mecanismo giram em torno do senso comum do leigo de cinema: o roteiro erra porque não é realista. Isso é o que menos se deve cobrar da série: um roteiro deve ser verossímil, e não realista.

Óbvio que O Mecanismo é uma peça de propaganda indireta. Tosca e malfeita, produzida às pressas para ser lançada no momento da prisão de Lula.

"O Mecanismo": combinação explosiva entre ressentimento e meritocracia

Então, o que significa dizer que a esquerda deve lutar no mesmo campo simbólico do Netflix? No caso particular dessa série, denunciar que o argumento ficcional se baseia na combinação ideológica explosiva da meritocracia com o ressentimento. E isso é uma questão de verossimilhança, e não de realismo.

O tema de O Mecanismo não é a Lava Jato. Isso é um mero pretexto para impor a narrativa do ressentimento, a matéria-prima de todas as bombas semióticas detonadas nas mídias desde 2013 – sobre isso clique aqui.

Se Padilha deve ser cobrado, é exatamente no campo do argumento e roteiro. Nas ênfases, exageros e estereótipos.

Ressentimento e meritocracia


Como discutíamos na postagem anterior, o ressentimento sempre foi uma poderosa arma de propaganda política. E no caso brasileiro, quando combinado com o ideário meritocrático, produz ódio, medo e desejo de vingança.

A ênfase maniqueísta da série é justamente contrapor a vida sofrida, esforçada e financeiramente contida dos servidores públicos (procuradores e policiais figurados sempre em ambientes mais escuros e com fortes contrastes de luz e sombra), com as cenas dos abastados e tranquilos doleiros e corruptos – cenas mais iluminadas e sem contrastes.

MasterChef: o aprendizado cotidiano de meritocracia e ressentimento para as massas

Didaticamente, a grande mídia ensina para as massas brasileira a ideologia do “no pain, no gain” do imaginário meritocrático em reality shows como, por exemplo, MasterChef ou O Aprendiz – nos ensina a ser engajados e focados, mesmo diante da dor, humilhação e sofrimento. São valores tidos como moralmente bons, supostamente fortalecedores da têmpera e da virtude.

Na meritocracia todo indivíduo é ressentido, mesmo os vitoriosos. Ressentidos pelo custo psíquico que tiveram para chegar lá.

Por isso o discurso moralista da corrupção (a série abre com a voice over de Ruffo afirmando que “o que fode o Brasil não é o sistema de saúde falho ou a falta de educação ou juros altos... é a corrupção!”) cai como ácido nessa ferida psíquica que nunca cicatriza.

Para o ressentido, saúde e educação precárias não são problemas de política pública, mas um problema moral: prender vilões corruptos que roubam o dinheiro público.

Como Nietzsche escrevia, o ressentimento produz incapacidade para agir. Em outras palavras, despolitiza. Falar em política pública requer agir politicamente ou, palavrão dos palavrões, atuar partidariamente – partidos políticos, associações classistas etc.

Mas o ressentido não quer ação política, quer punição exemplar. Por isso delega seu agir a vigilantes (não é à toa que Rigo, o clone de Moro na série, lê a HQ “Vigilante Sombrio”), heróis ou qualquer personagem com caráter supostamente virtuoso e corajoso. Dessa maneira, sempre verá com simpatia Estados policias e de exceção.

O Mecanismo deve ser criticado do interior seu próprio campo semiótico. Se José Padilha afirma que tudo é uma “ficção”, é desse pressuposto que deve partir a análise: uma má ficção que, para se sustentar, explora raiva reprimida que mais parece vinda do fígado e vesícula biliar do que de corações e mentes dos espectadores.

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