sábado, março 31, 2018
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Desde o duelo mortal entre o astronauta Dave Bowman e o computador
HAL-9000 no filme “2001” de Kubrick, o cinema não havia conseguido repetir uma
luta tão icônica entre a inteligência humana e a artificial. Isso até o filme
“Inifinity Chamber” (2016), na qual o homem enfrenta a nova geração da IA: os
aplicativos e algoritmos capazes de aprender até o ponto em que poderiam saber
mais sobre nós do que nós mesmos. Um homem é raptado em uma cafeteria, para
acordar em uma cela high tech observado por uma câmera de teto: é o olho
artificial de um computador chamado Howard. Sua função: mantê-lo vivo, para
escanear suas memórias e fazê-lo repetir mentalmente em infinitas vezes o mesmo
dia em que foi raptado, para tentar achar a evidência da sua ligação com um
grupo terrorista. Um filme sobre tecnologia, sonhos e memória. Uma metáfora de
como atuais aplicativos que fazem a mediação dos nossos relacionamentos são apenas
pretextos para escanear nossos sonhos e pensamentos.
Quando
o astronauta Dave Bowman travou uma batalha com o computador HAL-9000 (a
máquina estava decidida a matar toda a tripulação da nave Discovery) no seminal
2001: Uma Odisséia no Espaço,
interações humanas com computadores ainda estavam no reino da ficção
científica.
Meio
século depois os computadores e a inteligência artificial (IA) estão
intrinsecamente ligados às nossas vidas através de sistemas ativados por voz
como Siri, Cortana ou Alexa – solicitações de pesquisas, interação com os
amigos, comprar o ingresso de um show através de computadores ou telefones
celulares que, graças aos algoritmos, aprendem e parecem conhecer mais sobre
nós do que nós mesmos.
Décadas
depois, essa é a diferença decisiva entre as conversas entre Bowman e o HAL
9000 e as nossas com iphones e sistemas de comandos de voz: lá em 2001 a
relação entre homens e máquinas era extrínseca
(máquinas existiam para dar conta de funções repetitivas – às vezes até se
rebelavam e queriam matar o seu criador).
Hoje,
nossas relações com a IA são intrínsecas:
a inteligência algorítmica aprende conosco, quer se antecipar às nossas
escolhas e decisões. Em outras palavras, pretendem mapear nosso comportamento,
escanear nossas mentes e adivinhar nossos pensamentos. No passado, a IA queria
substituir o fator humano; na atualidade, quer simula-lo a tal ponto que as
fronteiras entre homem e sistemas digitais, realidade e simulação, desapareçam.
E o homem se encontre definitivamente imerso nas interfaces e bolhas virtuais
como, por exemplo, nas redes sociais.
Mas se
no passado o conflito entre homens e máquinas tinha a ver com alguma natureza
metafísica ou épica (máquinas adquirindo alma ou inteligência), aqui em nosso
presente os algoritmos aprendem sob o comando de interesses corporativos e
políticos – vide a denúncia sobre o vazamento dos perfis do Facebook pela
Cambridge Analytics para a campanha eleitoral de Donald Trump.
Uma metáfora sobre IA atual
O
filme Infinity Chamber (2016) é uma
instigante metáfora dessa nova fase da IA: um homem aparentemente foi preso e
colocado em uma futurista prisão totalmente automatizada, controlada por um
computador chamado Howard. Na verdade, uma unidade chamada LSU – Unidade de
Suporte de Vida.
Sua
função é aprender com o prisioneiro, entrar em sua mente, devassar suas
memórias para descobrir algum segredo que interessa a um governo totalitário
chamado ISN. Aquele homem é suspeito de fazer parte do grupo de oposição
chamado de Aliança e que pretende, de alguma forma, derrubar a rede informática
que mantém o sistema de dominação do Estado.
Infinity Chamber é um filme sobre
tecnologia, sonhos e memória que em muitos aspectos lembra os temas da série Black Mirror: a morte dos meios de
comunicação social para, em seu lugar, colocarem complexos aplicativos de
namoro ou relacionamentos que são apenas pretextos para escanear nossos sonhos
e pensamentos antes de se tornarem realidade.
Um thriller
como fosse um jogo de gato e rato no qual prisioneiro e IA tentam, cada qual,
entrar na mente do outro através de um complexo jogo de criação de falsas
memórias com objetivos opostos – para o protagonista, a fuga daquela prisão; e
para a LSU Howard, extrair o segredo da mente do prisioneiro.
O Filme
Tudo
começa quando Frank (Christopher Soren Kelly) está em um cafateria observando
algumas fotografias enquadradas em uma parede. Somos chamados a atenção para
uma luz vermelha, como algo que está escaneando todo aquele ambiente. De
repente, Frank é nocauteado por algum tipo de arma neutralizadora disparada por
dois homens.
Ele
acorda em um cela de prisão futurista e estéril – a única coisa que se aproxima
de alguma ideia de conforto é uma poltrona de veludo cinza. Superada a confusão
inicial, Frank começa a conversar com uma voz humana proveniente de uma câmera
de segurança de teto.
Frank
é informado que está sendo “processado” e que é suspeito de estar envolvido em
alguma trama terrorista high tech. Para o espectador, todo os contexto social e
político é informado de forma fragmentada através de detalhes nas cenas.
A voz
aparentemente humana chama-se Howard. Diz que o seu trabalho é apenas
supervisionar o prisioneiro e mantê-lo vivo. Frank protesta sua inocência, mas
a voz diz que não tem mais nenhuma informação para dar.
Frank
vai descobrindo mais detalhes: há uma estranha máquina no fundo da cela,
girando, e que de alguma forma está prospectando suas memórias de uma forma
insidiosa – Frank é obrigado a reviver infinitas vezes aquele dia em que foi
nocauteado na cafeteria. Parece que todo aquela prisão é um dispositivo para
encontrar alguma prova do seu crime nas suas memórias.
E
Howard é essencialmente um aplicativo comum de fala mansa que abra e fecha a
porta do banheiro e fornece para Frank café, sucos e alimentos, como fosse uma
máquina de venda automática.
Com o
tempo, Frank começa a compreender os mecanismos de funcionamento da cela, de
Howard (ele parece periodicamente ser reiniciado) e do loop das memórias. Assim
como Howard, Frank aprende com elas e tenta transformar as memórias em uma
espécie de sonho lúcido: começa a interagir com Gabby (Cassandra Clark) para
tentar alterar o curso dos acontecimentos que já ocorreram. Para dessa maneira
criar falsas memórias e enganar a máquina que monitora seus neurotransmissores
e os impulsos químicos que criam as memórias.
De
fato, Frank tem algum segredo a guardar. E parece ser relacionado a uma pen
drive que esporadicamente aparece em seu loops de memória.
Porém,
a situação fica ainda mais complexa quando percebemos o dispositivo de
monitorar as memórias (ou será o próprio Howard?) também é capaz de criar
falsos loops inspirados no maior desejo de Frank: escapar daquela cela.
Fica a
sensação que todo o aparato seria uma gigantesca máquina de interrogatório
automatizada e senciente: como no mundo real, Howard e a máquina de manipulação
de memórias fariam o papel do “bom policial” e do “mal policial”, personagens
clichês nos interrogatórios policiais. Um é pior do que o outro ou serão apenas
partes de um mesmo programa?
IA hipo-utópica
Infinity Chamber é mais um exemplo do
tom atual da ficção científica: a hipo-utopia – no sentido de “futuro
insuficiente”, no qual o futuro nada mais é do que uma projeção hiperbólica das
características atuais. Sobre as distinções entre os conceitos de utopia,
distopia e hipo-utopia, leia o artigo científico desse humilde blogueiro na
revista “Cosmos e Contexto” - clique aqui.
Há
metáforas do vazio por trás das nossas interações diárias com as máquinas, lembrando
muito o tema do filme Ela (Her, 2013, clique aqui) – a criação de ambiente
aparentemente agradáveis com vozes pré-gravadas. A frieza digital no lugar das
interações humanas.
A
América governada pelo sistema totalitário da ISN formado por uma rede de
máquinas (scanners, câmeras de vigilância etc.) representa o novo arquétipo do
século XXI: Frank somos nós aqui no presente – silenciosamente sondados por
aplicativos e pelos algoritmos dos motores de busca.
Infinity Chamber possui uma narrativa
ambígua e com um final aberto que sugere que, ao final, as falsas memórias de
Howard venceram e finalmente conseguiu localizar na mente de Frank o local onde
escondeu a pen drive com um poderoso vírus, capaz de derrubar toda a rede da
ISN.
Três leituras possíveis – Aviso de
Spoilers à frente
Na
verdade, há três possíveis leitura para o destino de Frank: na primeira, para
espectadores mais otimistas, a segunda fuga foi verdadeira: desta vez ele
escapa por montanhas nevadas. Frank volta para o mundo real como um homem livre
e vai à procura de Gabby. Descobre que seu nome real é Madeline. Está feliz e
joga fora a pen drive que estava escondida por trás de uma fotografia na
parede. O governo totalitário da ISN caiu e ele não precisa mais do vírus
informático. Senta-se numa mesa como Madeline e vemos uma câmera de vigilância
de teto. É Howard ou apenas mais uma câmera de segurança? Tendemos a acreditar
na segunda opção para termos um final feliz.
A
segunda leitura é pessimista: na verdade a segunda fuga também foi uma falsa
memória e Howard estava vigilante no interior da mente de Frank: finalmente
descobre a localização da pen drive e prova o envolvimento de Frank com o
atentado terrorista da Aliança.
A
terceira leitura é niilista: Frank é um paciente ligado a uma Unidade de Suporte
de Vida, assim como o seu pai: Frank tem lembranças recorrentes do pai mantido
artificialmente vivo por anos em um hospital. Não há Aliança, ISN, células
terroristas, cela ou Howard. Frank é um homem moribundo que quer fazer um
acerto de contas com suas memórias e sentimentos de culpa. Nenhum evento do
filme é real. Tudo são devaneios da mente de um homem mantido artificialmente
vivo.
Dessa
maneira, Infinity Chamber tem um
evidente sabor gnóstico: além de borrar as fronteiras entre a ilusão e a
realidade, constrói uma narrativa ambígua e irônica. Que também borra a
fronteira entre aquilo que o espectador vê na tela e o seu significado real.
Cinegnose participa do programa Poros da Comunicação na FAPCOM
Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo?
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros.
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Domingo, 30 de Março
Bem Vindo
"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo.>>> Leia mais>>>
"O Caos Semiótico"
Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>