O “hit
de verão” começou nos estádios argentinos, como protesto contra suposto
favorecimento do Boca Junior na Federação de Futebol pela influência do
presidente Mauricio Macri. Um canto ofensivo que ultrapassou o futebol e nos
últimos dias se propagou para eventos culturais, shows de rock, memes e redes
sociais. Se há apagão ou um trem do metro quebra, indignados os argentinos
começam a cantar o “hit do verão”, canalizando o descontentamento. Um pequeno
conto sobre guerra simbólica na política: como o protesto transcende o futebol
e se transforma numa bomba em potencial. Enquanto isso no Brasil, um apagão de
quase uma hora no Pacaembu fez crescer um coro anti-Globo da torcida do Santos,
ao vivo na TV. Prontamente retalhado com a demonização da organizada “Torcida
Jovem” nos telejornais da emissora. Apenas a esquerda brasileira não percebe
esses sintomas simbólicos do descontentamento e como a grande mídia contra-ataca
sempre ganhando por WO a guerra semiótica. “Somente se ataca símbolos a partir
do simbólico”, afirma o pesquisador argentino Javier Bundio. Mas nunca as
esquerdas pensaram em ocupar esse plano da sociedade. Será que o papel da
derrota e da vitimização sempre lhes cai bem na velha narrativa de luta e
resistência?
“Somente
se ataca os símbolos a partir do simbólico”. Essa frase faz parte da conclusão
do argentino Javier Bundio, doutor em Ciências Sociais do Conselho Nacional de
Investigações Científicas e Tecnológicas sobre o verdadeiro “hit de verão” que
invadiu a Argentina.
Começou
com torcedores do time do San Lorenzo del Almagro, se estendeu para outras
torcidas de futebol e agora vem se alastrando por manifestações políticas,
eventos culturais e shows de rock. Além das redes sociais.
“Mauricio
Macri la puta que te parió!”, cantam para canalizar o descontentamento contra o
governo do presidente Maurício Macri, ex-presidente do Boca Junior de 1995 a
2007. O “hit” vem ocupando os mais inusitados espaços. Como, por exemplo,
quando uma composição do metrô quebrou em Buenos Aires e os usuários,
revoltados, passaram a entoar o canto ofensivo.
A
fagulha foi acesa na torcida do San Lorenzo em um jogo contra o Boca, num
protesto contra supostas falhas da arbitragem, transformando o ex-presidente e
sócio honorário do clube adversário no alvo da indignação. Porém, o calor dessa
fagulha foi canalizado para o crescimento do descontentamento contra o atual
governo e suas medidas neoliberais de pulverização dos direitos e garantias
sociais.
Claro
que torcidas de outros clubes como Independiente, River Plate e outros,
começaram a repetir o “hit do verão” pela suspeita de que, nas altas esferas
esportivas, o Boca estaria sendo favorecido pela influência do presidente
Macri.
Do futebol para a sociedade
Mas o
principal nesse pequeno conto sobre guerra simbólica na política é como esse
cântico de protesto está nos últimos dias indo muito além das quatro linhas do
campo do futebol argentino.
Apesar
do potencial explosivo dessa relação entre política e futebol, o pesquisador
Javier Bundio não vê uma imediata motivação política no episódio: “num campo de
futebol as pessoas aderem por diferentes motivos: temos aqueles que aderem
porque são contra o Boca; há aqueles que são kitchineristas e são opositores a
Macri; e há aqueles que aderem porque veem em tudo isso algo cômico e
burlesco”.
Mas
Bundio adverte que a capitalização política desse fenômeno de massa segue
crescendo: “Já se transformou em uma espécie de burla em nível nacional, com
memes em redes sociais. Em qualquer lugar que esteja ocorrendo algo de errado,
seja uma composição de metrô que para ou o serviço de luz que seja
interrompido, imediatamente as pessoas começam a cantar. Creio que isso se
possa transformar em uma manifestação política contra governo. Por hora, o que
temos é uma expressão do mal-estar”.
Bundio
termina ressaltando o potencial explosivo dessa canalização de mal-estar: “o
presidente é uma figura simbólica. E o símbolo só pode ser combatido a partir
do simbólico”.
Torcida do Santos contra TV Globo
Aqui
no Brasil, isso é ainda incompreensível para as esquerdas, imersas na sua
“síndrome de Brian” (sobre isso clique aqui) à espera de que Lula, à semelhança
de Gramsci, escreva as “Cartas do Cárcere”, dessa vez diretamente das masmorras
de Curitiba.
Como
sempre, desde a ditadura militar a direita ocupa por WO o campo semiótico da
sociedade: da doutrinação do IPES-IBAD nos jornais, rádio, cinema e TV que
prepararam o terreno simbólico para a derrocada de Jango e o golpe militar em
1964, passando pelas incursões dos generais-presidentes no futebol brasileiro
até chegarmos a bem-sucedida e milimétrica Guerra Híbrida de 2013 a 2016 que...
deu no que deu.
Enquanto
no Brasil as esquerdas ainda veem o campo simbólico do futebol como alienante,
ocupado por “Neymarketings” e política de pão e circo, na Argentina pelos menos
há uma reflexão do potencial político de um fenômeno de massa que surgiu a
partir de uma rixa entre torcidas. E como um episódio de simples burla pode se
converter num canal de descontentamento contra o governo Macri.
Aqui
surgem episódios isolados e esporádicos, como a repercussão do desfile da
escola Paraíso do Tuiuti no carnaval do Rio (o carro alegórico do “Temer
vampirão”) ou o recente coro de protesto no clássico Santos e Corinthians no
Pacaembu: diante do black-out que interrompeu por quase uma hora o segundo
tempo da partida, a torcida começou a entoar o coro “Globo vai tomar no c*”.
Enquanto o prefeito Doria Jr. se retirava do estádio numa situação tensa; assim
como o presidente “vampirão” censurou sua própria representação no desfile das
campeãs do Rio.
Em um
gesto previsível, a Globo partiu para a contra-ataque: demonizar torcidas
organizadas. No dia seguinte, deu destaque em todos os telejornais a prisão de
torcedores do Santos, supostamente da “Torcida Jovem” (sem mencionar de qual
fonte veio essa informação – dos torcedores presos? Da própria Torcida Jovem?),
envolvidos em um confronto com corintianos e que resultou em uma morte. E quase
nada sobre os motivos da recorrência de apagões em jogos no Pacaembu.
Cultura midiática de contágio
As
esquerdas falam em ocupar ruas, praças, avenidas com seus tradicionais
caminhões de som e palanques de centrais sindicais, com palavras de ordem
repetidas como se ainda vivêssemos na velha ordem da cultura midiática de
propaganda – ordem baseada na estratégia da repetição e inculcação.
Enquanto,
há muito tempo, superamos a sociedade do espetáculo de Guy Debord, para
ingressarmos numa cultura midiática de contágio.
O
fenômeno de massas no “hit do verão” argentino se propaga de forma viral para
além dos campos de futebol. Enquanto isso vemos no Brasil pipocar, lá e cá,
seja no carnaval ou no futebol, manifestações de mal-estar que acabam em si
mesmas... como meros sintomas. As esquerdas não conseguem (ou nem pensam nisso)
transformar a origem desses sintomas em metástase. Simplesmente porque parecem
ficar mais confortáveis na narrativa da “luta e resistência”.
Impregnadas
ainda com velhos ícones dessa narrativa (vista aérea das massas ocupando ruas,
policiais espancando jovens numa prova cabal do arbítrio - mais “síndrome de
Brian” – discursos encolerizados repetindo que “a luta continua” ou de que
“fascistas não passarão” etc.) não percebem a importância de ocupar esse plano
simbólico ou semiótico no qual a grande mídia vence não porque é poderosa e
monopolista: ganha por WO mesmo! Não tem adversário!
E não
se fiem por movimentos como “Diretas Já!” ou “cara pintadas” que supostamente
teriam impichado o presidente Collor de Mello pela pressão das ruas ou
derrubado a ditadura militar. Foram movimentos que, ao final, foram abraçados
pela grande mídia, fazendo tais movimentos ocuparem o campo simbólico da
sociedade rebocados pela mídia corporativa.
Na
verdade, foram partes de um movimento histórico de “modernização” brasileira
que nesse momento vemos o desabrochar em flor da abertura final do País à ordem
internacional da globalização neoliberal.
Movimentos
que, assim como as “Jornadas de Junho” em 2013, foram de início incompreendidos
pela grande mídia, até cair a ficha do sentido e direção real das coisas –
direção e sentido determinados pela geopolítica do Departamento de Estado norte-americano.
Jornadas de Junho de 2013: como sempre, no início, a grande mídia não entendeu nada... para depois assumir o campo semiótico |
Quem corre de gosto não se cansa...
Até
hoje no Brasil, nenhum movimento de esquerda ou progressista ocupou ou sequer
considerou a ocupação desse plano simbólico a que se refere o estudioso Javier
Bundio. De fato, os movimentos políticos só acontecem no País quando a grande
mídia faz a sua aposta e, se for o caso, até permite que personagens
progressistas figurem em suas pautas.
Talvez
seja por isso que Lula será preso ainda acreditando nas instituições, no
Judiciário e na verdade. E porque, mesmo diante do cadafalso, ainda dê uma
entrevista para um jornalão como Folha de
São Paulo – que aliás ainda o colocou em foto na primeira página em gesto
para lá de ambíguo, sugerindo algo entre saudação nazi ou gesto de líder de
governo ditatorial... O mesmo jornal que, em plena Guerra Híbrida, publicava na
primeira página a fake news de que milhões de brasileiros morreriam de gripe
suína.
De
tudo isso, uma questão atormenta esse humilde blogueiro: a esquerda nunca criou
estratégias de ocupação desse campo simbólico por ignorância? Ou será que o
papel da derrota e da vitimização sempre lhe cai bem na velha narrativa de luta
e resistência? É fatalidade ou má-fé?
Como
dizia meu avô, “quem corre de gosto não se cansa”.
Com informações da "Deutsche Welle Argentina", "Clarín" e "Pagina 12".
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